Os rappers Criolo e Emicida se unem em gravação hi-tech de DVD em show no Espaço das Américas e recebem a inédita adesão musical de Mano Brown (foto Ênio César – divulgação).

 

Parece que um vilão de bangue-bangue norte-americano entrou no recinto. O rosto escondido pelo lenço vermelho explode no telão do Espaço das Américas: quem é esse sujeito musculoso que invadiu o show conjunto de Criolo e Emicida no sábado, 8 de setembro?

O show, já na parte final, vem de um pot-pourri retumbante de (auto)homenagem à história do hip-hop nacional, com trechos de hits históricos de Pepeu (“fiquei sabendo, tem um tal de Pepeu/ que canta rap bem melhor do que eu”), Thaíde & DJ Hum (“que tempo bom/ que não volta nunca mais“), Doctor MC’s (“tik-tak, o tempo vai passando e a gente aqui sentado no banquinho conversando“), Xis (“os mano, pow!/ as mina, pá!“) e Sabotage (“rap é compromisso, não é viagem, se pá fica esquisito“)? Antes que a máscara caia, já dá para desconfiar quem está por trás do lenço de bandido de do velho oestre e do colete de homem brasileiro da lei.

 

O líder dos Racionais faz entrada-surpresa no palco de Emicida e Criolo - fotos Ênio César

 

Sim, é hora de o pot-pourri homenagear os Racionais MC’s, e o homem maduro por trás do pano vermelho é um dos Racionais, o mais eloquente deles: Mano Brown. O gesto do encontro explicita gigantesco simbolismo: pela primeira vez numa situação de grande envergadura e exposição, o homem mais importante do hip-hop brasileiro abençoa os dois artistas que vêm reconfigurando, junto à chamada grande mídia (habitualmente preconceituosa), o cenário e os propósitos do gênero musical mais relevante da maior cidade do país.

É saboroso acompanhar as reações dos anfitriões à chegada do convidado peso-pesado. Emicida, 27 anos, não faz nenhum esforço para ocultar a incredulidade por estar dividindo o mesmo palco com seu ídolo e pai artístico, e ainda reitera verbalmente o impacto e a felicidade que o encontro de igual para igual significam para ele.

Artista de enormes energia e carisma em cima do palco, Criolo, 36 anos, parece intimidar-se diante do colega que é poucos anos mais velho (Brown tem hoje 42), mas se faz ouvido há muito mais tempo. O rapper mestiço e híbrido que cravou o hino “Não Existe Amor em SP” no coração de SP leva uma relação messiânica com seu público. Costuma se comunicar muito mais diretamente com quem o adora do chão firme que com os companheiros de palco. Só durante a passagem de Brown, Criolo se encolhe perante o público – e parece menos desconectado de Emicida e da formidável banda reunida pelo diretor Daniel Ganjaman para compor o encontro inédito.

O show em dupla certamente já tem lugar de honra na história da música brasileira, de modo geral, e da música popular paulistana que o hip-hop encarna como ninguém nestes nos 2000, em particular. Um DVD será gerado da reunião transgeracional, e foi registrado em pique hi-tech, por cerca de 40 minicâmeras “go pro”, de qualidade HD, 18 delas acopladas em microfones e nas cabeças dos artistas e dos integrantes da banda. Seja o que venha a ser, o resultado evidentemente não será convencional.

Nesse aspecto, o futuro chegou ao rap paulistano, pelas mãos de uma equipe de matriz carioca. A direção do DVD é de Andrucha Waddington (Conspiração Filmes), Paula Lavigne e Ricardo Della Rosa. Não é de hoje que Paula, ex-esposa e empresária de Caetano Veloso, tem se aproximado de Mano Brown e do rap paulista. As implicações dessa sociedade ainda não são muito visíveis, mas é possível especular se não estaria acontecendo nos bastidores um investimento, talvez a retribuição de um presente, de Caetano à “Sampa” que acolheu sua revolução tropicalista em 1967-1968.

Chefes de palco, Criolo e Emicida lideram o movimento de agora, cada qual à sua maneira. Criolo, micróbio do rap, injeta ginga, suingue, melodia e sensualidade no hip-hop, em geral um tanto fechado para tais atributos. Veste camisa justa com babados, a calça sem cueca, e causa furor no público via corpo e via música que ainda é hip-hop, mas já é mais que só hip-hop.

Emicida é rapper mais tradicional, de camisetão (vermelho) fabricado em casa e rimas angulosas em batidas quebradas. É menos catártico na relação com o público, mas é muito mais valente em termos textuais, de palavras de ordem – é mais líder, sem ser messiânico. Cita as 32 favelas incendiadas em 2012 em São Paulo até aquela data (naquela madrugada, queimaria mais uma). Canta o “Dedo na Ferida” de referência direta a Pinheirinho, Cracolândia, Favela do Moinho etc.

Enquanto Criolo o faz com o corpo (e as palavras), Emicida estabelece com o cérebro (e as palavras) as pontes com a classe média/alta que costuma frequentar a megaplateia de 8 mil pessoas do Espaço das Américas. Eis aí outro ambiente em pleno movimento de transformação.

Um dos dois (excelentes) MCs que dão suporte ao show, DanDan (o outro é Rael da Rima) cita a guerra de classes subjacente à (re)tomada de poder cultural pelos rappers da periferia. Provoca a plateia presente chamando-a de “classe média altíssima”, em formidável ato (não-)falho de devolver à classe “altíssima” ônus de atraso e conservadorismo que a sociedade costuma repetidamente jogar no colo da “média”.

A plateia multicultural paulistana festeja Criolo e Emicida - foto Fernanda Negrini

 

Seja ou não de “classe média altíssima”, a plateia do show é incomumente multicultural. Casais multirraciais coroam um ambiente amistoso à mistura étnica e socioeconômica que não se vê comumente em plateias da elite branca paulistana como essa do Espaço das Américas (artistas tipo Morrissey costumam lotá-la).

Em meio ao fumacê, um segurança dá uma dura num rapaz que fuma um cigarro ao lado da namorada. “É maconha?”, pergunta o segurança. O rapaz abre a mão e expõe o baseado. É. O segurança (negro) apreende o cigarro de maconha do rapaz (branco) e ensaia uma brevíssima bronca. “The times are a-changing”, diria Bob Dylan, se ele fosse um rapper e nós fôssemos os Estados Unidos da América. A história brasileira dá piruetas enquanto se desloca para territórios novos e muito mais justos que os que habitávamos até aqui.

 

Emicida abraça Criolo diante do público do Espaço das Américas, nos estados unidos do Brasil - foto Fernanda Negrini

 

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

 

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