“Dedo na Ferida” é um rap de Emicida, músico popular paulistano, daqueles que prometem o que cumprem: mete o dedo do rap bem no meio da ferida da polícia paulistana, paulista e brasileira. “Foda-se vocês/ foda-se suas leis”, o rapper afirma em sua prosódia particular, numa canção de protesto dedicada “às vítima do Moinho, Pinheirinho, Cracolândia, Rio dos Macaco, Alcântara e todas as quebrada desvastada pela ganância, certo?”.
Hoje, 13 de maio de 2012, aniversário da abolição da escravatura no Brasil, Emicida foi preso pela polícia de Belo Horizonte (MG). Ele próprio deu a notícia, via Twitter @emicida: “Fui preso por desacato a autoridade após o show em BH por causa da música ‘Dedo na Ferida’“. No videoclipe da dita cuja, ele se exibe fazendo gestos obscenos, papo reto por sobre imagens de destruição cometida pela polícia contra moradores do Pinheirinho.
Em 24 de janeiro passado, entrevistei Emicida a convite da revista Living Alone, a propósito de uma pauta em que um rapper e um policial teceriam impressões cruzadas um sobre o outro. Em seu Laboratório Fantasma, no bairro paulistano de Santana, Emicida falou longamente sobre a polícia. Falou sem censura, e sem meias palavras. Como você verá abaixo, nada vem mais a calhar que trazer a público a íntegra da entrevista, no dia da prisão do rapper, no dia da abolição da escravatura, num país onde, segundo um dos chefões máximos da principal rede de TV, “não somos racistas”.
A conversa aconteceu apenas dois dias após a (des)ocupação do bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos, pela polícia do governador Geraldo Alckmin , do PSDB. Emicida já começou se expressando livremente, desde que anunciei o propósito e o formato da pauta (os grifos do texto são meus, de trechos que me chamaram especial atenção):
Emicida: Eu tô no pior momento com a polícia. Os últimos três enquadros que tomei, tomei com arma na cabeça. Tá pior ainda, muito ridículo. O carro do Fióti (Evandro Fióti, seu irmão e produtor) foi roubado, a gente tava do lado do carro, em frente à minha casa. Os caras desceram, perguntaram: “Cadê seu documento?”. Falei: “Pô, mano, você vai me desculpar, estou na frente da minha casa, não vou catar carteira pra descer na calçada”. O cara ficou sem graça, me reconheceu. Eu fico mais puto ainda quando os caras me reconhecem, porque muda totalmente o jeito que lida com as pessoas. Se eu fosse uma pessoa normal, ainda tinha ouvido um monte.
Pedro Alexandre Sanches: Isso está acontecendo frequentemente?
E: Pra você ver, fazia muito tempo que eu não tomava enquadro, mas nos últimos quatro meses tomei uns três, e ó que eu nem saio na rua. Perto da minha casa é deserto. Aqui, escureceu, a polícia tá na fita…
PAS: Por todas as razões eles parecem enlouquecidos, da USP à Cracolândia.
E: O bagulho do Pinheirinho anteontem foi foda. E eu ia lá, tava pra ir. Eu troco ideia com os caras do sindicato, falo com eles toda semana. Eu estava em Salvador fazendo show, vi no Twitter, não entendi. Falaram que Eduardo Suplicy foi lá e foi preso, caralho. Agiram na sombra, 5h da manhã, diz que já sabiam quem eram os caras que organizavam a parada, foram certinho na casa de cada um, prenderam eles antes. Você pega os caras que organizam, o povo não sabe o que fazer. Tá foda. A gente tá vivendo um momento esquisito da história. Por um lado tem uma puta abertura, uma ideia de abertura, de coisas que estão progredindo, mas isso muitas vezes me soa como uma fachada pra várias outras coisas que tão acontecendo. Vejo umas ideias que não condizem com o tempo que a gente vive. Entro no YouTube e vejo os caras xingando os outros, “seus esquerdistas impuros”. Mano, que porra é essa? É a primeira vez na minha vida que bato de frente com esse tipo de coisa de uma maneira tão popular. A opinião das pessoas tá bagunçada. Na USP é os maconheiros, o centro inteiro virou a Cracolândia.
Cê vê, bem no dia que cê vem pra falar da polícia, a gente tava ali no mercado, um moleque roubou sei lá o quê. Dois seguranças pegaram o moleque e tentaram levar ele pro quartinho, que é onde eles espancam os moleques que tão roubando. O moleque começou a gritar, fez o maior escarcéu. Aí o povo se juntou e separou os seguranças, chamaram a polícia pra não deixar o segurança espancar o moleque. Nunca vi acontecer isso. A polícia chegou, educada, ouviu o povo, falou pro segurança: “Você tá errado, não pode agredir as pessoas, o certo é a gente conduzir ele”.
PAS: O menino era negro?
E: Não, era um menino branco. Mas a postura com nós é diferente em tudo quanto é lugar. Vou no banco com o Tiago (companheiro de trabalho, branco, que está no escritório), estou no Bradesco, a primeira com quem a menina fala é o Tiago, “em que posso ajudar”. Tiago fica sem graça, “não sou cliente, o cliente é ele”. Saca? Antigamente eu não circulava por esses lugares, comecei a entrar no banco há dois ou três anos. Sinto nessa esfera aí, nas relações que tenho, mas tiro a minha base, se indo lá tão pouco vejo tudo isso, imagina quem frequenta há muito tempo. E eu passo na televisão ainda, saca? Sempre me ponho no lugar das pessoas anônimas, meus parentes, primos, irmãos. Hoje é muito rápido, me reconhecem, mesmo que não saibam meu nome, “ah, é o cara que foi na Marília Gabriela”, “o cara que foi no Jô Soares”. Mesmo que não tenham referência musical, sabem que sou uma pessoa que trabalha na TV ou alguma coisa do tipo.
PAS: Começando a entrevista, onde você mora atualmente?
E: No Tucuruvi, mas vou mudar pra Água Fria, aqui em cima, a dez minutos do Tucuruvi.
PAS: Você, sua esposa e sua filha?
E: É, comprei uma casa, cara. Vou morar numa casa própria, minha filha vai crescer tendo uma casa. É a primeira vez na história da minha família, sem ter treta de reintegração de posse, sem ter que ver esses bagulhos. Minha mãe mora, a casa dela é dela, mas a gente passou um inferno ali.
PAS: Como foi essa história?
E: Quando a gente mudou pro Cachoeira, que minha mãe conseguiu comprar o terreno, toda a área foi loteada e vendida pros moradores como se pertencesse a uma outra pessoa. E de repente aparece o verdadeiro dono.
PAS: Sua mãe tinha comprado, achava que era dela?
E: Sim, todo mundo estava pagando as prestações. Não era barato, não, é o procedimento comum que ocorre nos loteamentos legais. Os caras tinham um puta plano, uma maquete, uma documentação quente. A gente morava em dois cômodos muito espremidos, em seis pessoas. Chegamos a mudar, construímos um espaço maior e mudamos.
PAS: É aquele lugar onde entrevistei vocês, no Cachoeira?
E: É, só que era bem diferente. Passaram alguns meses, chegou uma carta de ordem de despejo, porque o terreno pertencia a um cara que, se não me engano, se chamava Amaury Cacciacarro. E ia ter uma reintegração de posse, isso assustou todo mundo. Não tinha luz na rua.
PAS: O termo era esse mesmo, reintegração de posse?
E: Acho que sim. Não lembro exatamente, mas acho que era, sim. E causou um alvoroço no bairro, que todo mundo que tinha suas casas ia ter que sair de lá. Fala-se muito de construção em área de manancial, esse era o argumento principal. E pra nós, morando ali no Jardim Brasil Novo, é muito bizarro, porque você olha pra Serra da Cantareira e tem uma pá de mansão no meio das árvores mesmo. Cada vez abrem-se mais clareiras, de noite tem uma pá de luz acesa no meio da floresta. A gente tinha uma cachoeira, os caras cercaram e a cachoeira virou o quintal de alguém.
PAS: E aí veio a ordem de despejo?
E: Chegou, a gente entrou em choque, fodeu. A primeira notificação dizia que a área pertencia a outra pessoa, e todos os caras que pertenciam à organização que vendia os terrenos sumiram por um tempo. Nem tantas pessoas tinham se mudado ainda, e como a gente era uma quantidade menor a gente resolveu sair também, e nessa época que a gente saiu todas as casas foram demolidas. Todas.
PAS: A de vocês foi demolida?
E: Foi. A gente foi morar na Vila Zilda, na casa do meu padrasto, que era zoada, muito ruim. Passado um tempo, a gente simplesmente resolveu voltar. Viu que era uma coisa natural de todos os moradores, voltar. Foi foda, porque, na intenção de assegurar o lugar que a gente tinha pago pra morar, foi quando os moradores se organizaram, começaram a se comunicar, e aí a gente arrumou uns madeirites, todo mundo fez as barracas de madeirite, o bagulho estourou mesmo. Totalmente improvisado, luz irregular, água irregular, todo mundo com equipamento eletrônico queimando porque a eletricidade oscilava pra caralho. Não tinha água, esgoto, a rua era literalmente de terra, e muito íngreme, qualquer chuva abria erosão, não dava pra subir de carro, afundava na lama. Escurecia, não dava pra ver nada na rua.
PAS: Como regularizou a situação?
E: A associação de moradores começou a se comunicar com o proprietário real do terreno. Entraram em contato com um neto dele, acho, e aí nasceu um diálogo, e os caras realmente tinham esse desejo de tornar aquilo um bairro. E foi quando começou a acabar nosso medo de que amanhã a prefeitura vai vir aqui derrubar. Pra gente, cada coisa que acontecia no sentido de trazer estrutura pro bairro era uma puta conquista. Lembro que a gente fez uns cordões humanos pros caminhões levarem cascalho, jogar pedra nas ruas. Depois, colocou a luz, regularizou. O asfalto chegou praticamente agora, é novo. Com essas coisas, a gente viu que tava rolando uma urbanização, e foi o que deixou a gente mais tranquilo. Hoje em dia é muito bagunçado, chegou gente nova, já não sei como funciona.
PAS: Mas sua mãe e seu padrasto têm a escritura?
E: Eles têm as provas de que estão pagando aquilo ali. Nem sei se ainda pagam, mas pagaram durante um tempo. Uma escritura do terreno eu sei que minha mãe não tem, e acho que ninguém tem, porque foi interrompido esse processo de pagamento. Minha mãe deu uma entrada lá.
PAS: Quem garante que o cara que vocês têm como verdadeiro dono seja mesmo?
E: Pois é. Tudo o que o verdadeiro dono apresenta agora é o que o antigo dono apresentou da outra vez.
PAS: E você acompanhava a comunidade do Pinheirinho por se identificar?
E: A minha mulher é de Jacareí, que é do lado de São José dos Campos. Tenho vários amigos no Vale do Paraíba. Uma hora ou outra os caras comentam. Mas o que me fez ter dimensão foi o dia que vi a foto dos caras com aqueles tambores cortados no meio. Caralho, isso aí é foda, fiquei feliz de ver o povo unido daquele jeito. Isso tinha que acontecer muito mais. Em geral uso meu site pra avisar de show, mas dessa vez resolvi cutucar.
PAS: Deu muita repercussão, né?
E: Pra caralho. Eu já venho me preocupando muito mais, tenho desespero de quando você faz um trabalho na música – meu barato tem que virar, preciso fazer show, tenho uma empresa funcionando, todas essas pessoas pra cuidar. A gente precisa aparecer, tocar, fazer música nova, e às vezes você cumpre demais as funções midiáticas e se esquece do princípio um: cê começou a fazer música porque queria mudar essa porra toda. É isso que tem acontecido, tenho dado um breque nas coisas. A carreira vai ficando mais sólida, você vai aprendendo a fazer, e vê que não precisa aparecer tanto mais. Tem que fazer música boa, e a coisa vai andando por si só. Comecei a me achar muito alienado também, via as notícias com um conhecimento extremamente superficial. Aí falei: não, tô todo errado, cara. Fui buscar, comecei a ler pra caralho de novo, coisas sobre política, porque até então tava lendo só quadrinhos.
PAS: Lê com prazer, ou por obrigação?
E: Leio por obrigação, porque acho que tenho obrigação, mas tenho prazer, porque passo a entender o que tá acontecendo hoje. É fundamental.
PAS: Que tipo de contato você tem com a comunidade do Pinheirinho?
E: Isso se intensificou muito mais quando a gente divulgou um pedaço de uma música no VMB (premiação da MTV), que a gente ganhou como artista do ano, e eu recitei um verso que falava do Movimento Sem Terra. Os caras do MST me mandaram um salve. Eu já vinha acompanhando uma pá de situação delicada, tipo a parada do Rio dos Macacos, da Marinha com os quilombolas. Fui ver outras histórias de quilombolas. Fui pra Pernambuco, em Porto de Galinhas vi o litoral virando hotel. Tinha ido há dez anos, era muito diferente. Pra onde vão aquelas pessoas? Todos esses pontos foram me ligando a essa questão, e culminou que isso reacendeu a minha origem. Eu sou uma dessas pessoas que um dia foram expulsas de um lugar.
PAS: Vendo essas histórias você lembra da sua?
E: Olho pra isso aí e é a única coisa que eu penso. Eu sou uma dessas pessoas. Hoje tô aqui, outro dia tava ali, a gente fez um cordão humano pra parar os caminhões lá, do mesmo jeito. Só não teve essa repercussão toda, mas quantos não têm repercussão?
PAS: Veio polícia? O que é parecido e o que é diferente no Pinheirinho?
E: Sim. Graças a Deus, o que foi diferente é que a gente não teve um ataque da polícia. Só no dia da demolição a polícia veio. Quando foi levar a notificação o cara veio com uma viatura, mas nunca teve um confronto com a polícia. Quando vieram demolir, a gente já tinha saído. Mas a gente já tinha visto isso várias vezes, no Jardim Filhos da Terra, confronto dos moradores com a polícia. Era tudo mato, e a gente ia nas reuniões do movimento. Só que eu era recém-nascido. A gente passava as noites embaixo da lona lá. Cercava o terreno com linha e ficava ali esperando, porque tava todo mundo brigando pra ter uma casa. Minha mãe fazia parte do barato mesmo, de passeata pra Brasília.
PAS: Vocês iam pra esses lugares em solidariedade?
E: Não, a gente não ia por solidariedade. A gente também não tinha casa. A gente tava junto, na mesma situação. É uma história que foi recorrente na minha vida. No Jardim Fontales a gente viu um pouco disso. No Jaçanã, antes de ter os predinhos que chamam de pombal foi isso. Filhos da Terra foi isso. No Cachoeira, depois, também.
PAS: Em todos esses lugares vocês moraram?
E: Sim. Quer dizer que somos azarados pra caralho (ri). Não, na verdade é porque é uma coisa muito comum de acontecer, infelizmente.
PAS: Empurram os pobres pra mais longe, vão ocupando, e um dia querem de volta.
E: Sim, é o que aconteceu agora. Tá acontecendo na Favela do Moinho. Teve todos esses pontos. Me parece um erro bizarro em ano de eleição, um tiro no pé. Os caras tão atacando a população diretamente, dando todos os argumentos que o adversário precisa. E parece que não têm receio nenhum, “a gente não gosta de pobre mesmo”. Hoje, pra mim, a imagem que tenho da política do governo em São Paulo é essa. Aí vejo o Gilberto Kassab se aproximando do PT, penso: o que vai resultar dessa parada? Pô, não dá pra gostar do Kassab, sabe?
PAS: Por que a polícia é tão mal vista na periferia?
E: Eu ia concluir a história do polícia. A gente tava saindo do mercado e tinha um moleque que falou assim pro polícia: “Polícia não presta”. Um moleque de quatro anos, molequinho, de mão dada com a mãe. Ele estava na mesa do lado da gente na lanchonete, quando virei o policial tava falando pra ele: “Tá errado isso aí, o polícia é seu amigo”.
PAS: Por que a polícia atrai esse tipo de frase de uma criança de 4 anos?
E: Porque é o que a família dele diz e vive. A atmosfera não possibilita que se fale outra coisa da polícia. Realmente, ações que façam a polícia ter uma boa imagem são muito raras.
PAS: Qual é a imagem que você faz da polícia hoje?
E: Cara, eu não gosto de polícia. Tem coisas que são involuntárias em mim, que me fazem ficar muito mal. Até hoje eu vejo uma viatura e fico receoso. E eu nunca devi nada pra polícia. Mas todas as vezes fui extremamente maltratado. Até quando tomei o enquadro na frente de casa, o cara me reconheceu e falou: “Porra, você canta os raps xingando a polícia?”. Falei: “Ah, mano, eu canto rap falando a verdade”. “Você já teve experiência ruim com a polícia?” “Só tive experiência ruim com a polícia.”
PAS: E ele?
E: Ficou sem graça, “é que nem todo mundo é assim”. É, né? Mas tava a duas ruas daqui, no escuro, e tomei um soco nas costas. Não tava com droga, com arma, com nada.
PAS: Do nada?
E: Sabe qual foi meu erro? Porque falo na gíria. Ele perguntou: “Você tá armado?”. Falei: “Não, mano”. Ele falou: “Não sou seu mano”. E me meteu um soco nas costas.
PAS: Esse policial era de que cor?
E: Branco (ri). Pra começar, a abordagem foi bizarra. Os caras vieram andando do meu lado durante um tempo, falei: não vou parar, o cara não me pediu pra parar. De repente, do nada, os caras jogam a viatura em cima da calçada e já sacam a arma no meu peito.
PAS: Isso faz pouco tempo?
E: Não, eu tava na escola, foi meu primeiro enquadro. O primeiro já foi com um oitão cromado no peito, “e aí, encosta”. Nunca alguém tinha colocado uma arma no meu peito.
PAS: Você tinha que idade?
E: Tinha 14.
PAS: Foi sua primeira experiência com polícia, com a autoridade?
E: Foi a primeira. Até então minha imagem de polícia era tipo: a polícia cuida da cidade. Você tem boato de fulano que apanhou, coisa que aconteceu, mas parece que são casos isolados, mesmo que aconteça todo dia. Quando não tá vendo dessa forma, você não consegue ligar os fatos. Eu não tive coragem de falar pra minha mãe, fiquei olhando pra ver se tinha ficado com alguma marca no meu corpo. Eu não queria humilhar a minha mãe, falar que eu tinha apanhado de um policial na rua.
PAS: Não contou pra ela?
E: Não. Voltei pra casa e fiquei em choque, com o corpo quente. Essa foi minha primeira experiência com abordagem policial. Depois daí, teve outras piores, eu e Fióti no Cachoeira, no ponto de ônibus, indo pro cinema. Um camarada nosso tinha sido morto no Filhos da Terra, e todo mundo falou que foi polícia, o bairro inteiro. Ninguém viu, mas todo mundo disse que tinha uma viatura lá e ouviram os tiros. A gente ficou pra baixo pra caralho, e todo mundo contou a história que os polícias mandaram ele por a mão na cabeça e virar. Quando ele virou, os caras atiraram. E a gente estava no ponto de ônibus, de repente vejo o Fióti com as duas mãos pra cima. Ouvi o polícia gritando: “Levanta a mão! Mão na cabeça!”. Quando vi, a gente tava com a arma na cabeça e o cara mandando nós virar. Puta, mano, os caras vão matar nós. Deserta a rua. Não tem luz na rua, dois polícias, nós desarmados de costas com a mão na cabeça.
PAS: O jovem da cor de vocês acha que vai morrer na hora quando isso acontece?
E: Sim. E pra quem você vai reclamar? Pra corregedoria, que também é polícia? Não existe um diálogo, vou reclamar do polícia pro polícia? Muita gente leva isso pra casa pensando “é foda, os caras são filhos da puta”. Essa é a imagem que a gente tem. Teve até um mano que veio me perguntar na entrevista: “O Mano Brown deu entrevista n’A Liga, ficou falando mal de polícia, você acha que tem necessidade de fazer um negócio desse?”. Porra, mano, dá um pião de madrugada entre o Corisco e o São João, você vai ver, três enquadrinhos que tomar você vai ver o que vai estar pensando da polícia.
PAS: Quantas vezes você passou por isso na vida até hoje?
E: Pra caralho. A gente tem que filmar, tomo enquadro famoso, os caras enquadram nós e ficam com vergonha, “puta, você é o Emicida” (voz de bobo). A gente teve um show cancelado em Pelotas (RS), por pilantragem do contratante, que não quis pagar. Chamaram a polícia. Chegou, a primeira coisa que a polícia fez foi olhar pra nós e pro dono da casa e perguntar pra ele: “O que esses caras estão fazendo?”. Mano, esse maluco é que tá errado, ele é que tá fazendo bosta. O polícia ainda veio pra cima de nós, pôs o dedo na minha cara, eu também pus o dedo na cara dele, agora eu quero que se foda também. Tava lá com dez pessoas viajando, quer saber? Já deu a bosta, não vou fazer o show. O polícia pôs o dedo na minha cara e falou “fica quieto”. Falei “fica quieto você”, ele deu um soco no meu braço e já levantou o cassetete pra me bater. Os caras entraram na frente, separaram. Imagina, já tem a disciplina da polícia, imagina disciplina da polícia numa cidade de colonização alemã.
PAS: Os caras sabiam que você era conhecido?
E: Não faziam ideia que eu era um artista. Mas, enfim, se eu fosse um cidadão comum você deveria me respeitar.
PAS: Amigos seus viraram policiais?
E: Já, sim.
PAS: Uns vão pra lá e outros pra cá, e você é obrigado a virar inimigo do cara que é igual a você?
E: Então, você vê que bagulho muito louco. Tenho dois camaradas que viraram polícia. Eu gosto deles pra caralho, e nunca mais encontrei eles depois que viraram polícia. A gente trabalhou junto, eles vêm de uma família de polícia, e viraram policiais mesmo.
PAS: Por que não encontrou mais? Não procurou? Podia encontrar por acaso?
E: Não sei, podia encontrar, mas nunca mais encontrei. A gente cresceu nos mesmos lugares, jogando bola no mesmo lugar, falando as mesmas merdas. Durante o treinamento dos caras, as ideias deles mudaram pra caralho. Os moleques que riam com nós, cresceram com nós, de repente ficaram em outra postura, começaram a chamar os moleques de vagabundo. Mas esses vagabundos também fomos nós um dia.
PAS: E isso porque você foi pra um lado honesto, legal, tudo bacana.
E: Sim. Você não pode definir quem é traficante no olho.
PAS: É como se, na cabeça do policial, todo mundo fosse?
E: É. O mais bizarro é que você define quem é traficante no olho quando vai pra periferia. É o mesmo bagulho do Pinheirinho, quando os ricos têm um problema que afeta vários deles, sei lá qual, sempre é uma falha burocrática, e eles vão resolver. Quando tem um problema dos pobres, sempre é falha de caráter, “ah, esse povo é desse jeito mesmo”. E hoje isso tem gritado muito mais. Quando teve aquela onda de ataque aos nordestinos na internet, você vê pelos comentários das pessoas, o quanto as pessoas têm esse intelecto, as próprias pessoas que vão apanhar da polícia, que vão ser discriminadas. Então é isso, a cabeça dos camaradas mudou quando começaram a treinar.
PAS: É constrangedor pras duas partes encontrar? É como se estivessem em times diferentes, sabendo que são as mesmas pessoas.
E: A gente foi a mesma parada, só que chega hoje, você não tem assunto.
PAS: Compartilho do que você falou, a gente prefere nem chegar perto da polícia, porque a sensação é ruim. Mas, partindo do pressuposto de que é necessária, que ela precisa existir, qual é sua avaliação sobre o modo como a polícia é hoje? De uma maneira geral, a Polícia Militar é mais violenta do que deveria? Qual é o lado bom e qual é o lado ruim dela?
E: Pelas minhas experiências de vida, eu não consigo pensar num ponto positivo pra falar sobre a polícia. Mas existe uma parcela da população que se sente segura.
PAS: Uma parte da população pode até não assumir, mas gosta da polícia.
E: Gosta. Aqui na zona norte tem isso pra caralho, várias pessoas gostam. É uma região de polícia, tem academia aqui perto.
PAS: Você pode ter parentes até, sua mãe ou seu pai pode gostar da polícia.
E: Tipo isso. Eu sei que a minha avó não tem problema nenhum com a polícia, “tem que bater nesses meninos mesmo, que eles estão na rua”. Se você for perguntar, é tipo isso. Minha avó cresceu no meio da ditadura, já era adulta. Se hoje, com toda informação circulando, é assim, imagina ontem, que ninguém sabia e podia falar nada.
PAS: Tem policial que é mais violento, esses que te dão dura e deixam você com raiva, mas…
E: Eu já vi, já fui abordado por policial que fez o trabalho direito. E achei do caralho. Se essa fosse a postura, a imagem da polícia mudaria. Quando lida com cidadão comum, tem que respeitar o cidadão. E eles têm isso, “vocês me obedecem”.
PAS: Conta algum episódio positivo, em que você foi bem tratado por eles.
E: Uma vez a gente tava ouvindo som alto na porta de uma escola no Tucuruvi, de dia. O policial veio andando, sem sacar arma, sem colocar mão na arma ou demonstrar qualquer tipo de intimidação. Chamou a gente e falou: “Ó, isso não pode ser feito aqui nesta área, vou pedir pra vocês abaixar o volume ou se retirar”. Deu bom-dia e tudo, “obrigado pela compreensão”. A gente desligou o som e saiu fora.
PAS: O que passou pela sua cabeça?
E: Nós saímos dando risada, caralho, mano, que raridade. O cara é uma exceção dentro das exceções.
PAS: Eu já levei dura também, muito menos que você, e também já tive situações como esta que você está contando agora. De qualquer jeito, você sai com raiva dos caras. Eu também não consigo gostar de polícia.
E: Não tem uma parada que você fale: “Pô, representou, hein, seu guarda?”. Não. Eu estando certo ou existindo a possibilidade de eu estar errado, é sempre com esta que eles trabalham: de eu estar devendo alguma coisa. O tratamento é horrível. E se estou certo e vou numa delegacia? É a mesma fita. No bagulho com o taxista racista, eu com a razão, fico das cinco da tarde às onze da noite na delegacia, sendo que não tem ninguém lá, eu esperando. Quando o cara vê que não vou embora mesmo, me chama lá, fala: “Não, isso aí não é racismo, não. Racismo é outra coisa”.
PAS: Fazendo uma média, pra você a polícia é mais violenta do que deveria ser?
E: Sim. É mais autoritária do que deveria. A polícia é uma prestadora de serviço da população, ser policial não é um cargo. E isso aí não fica claro. A relação da população com a polícia é de medo, independente da região. Nos Jardins, obviamente não é essa reação do povo, mas aqui, em núcleo de trabalhador, é.
PAS: Político conservador gosta de dizer: “A Rota deve estar na rua”. A Rota tem que estar na rua, na sua opinião?
E: Não. A Rota é a pior polícia que tem. É a mais agressiva de todas. A Guarda Civil Metropolitana, que antigamente nem arma tinha, cuidava dos patrimônios, hoje tem arma e ficou do mesmo jeito, tão agressiva e arrogante quanto a Polícia Militar. Se eu trombar a PM mesmo, da ronda escolar, me dá um frio na barriga, se vejo a Rota à noite minha perna treme. Um dia tive que ir do Cachoeira ao Tucuruvi à noite a pé, eram quatro horas da madrugada, fui rezando daqui até lá pra não encontrar a Rota. Um dia a gente tava em frente da escola, vai vendo, duas horas da tarde, todos nós temos medo da Rota. A Rota passa e ninguém fica olhando, todo mundo desvia o olho. O policial me vai e grita assim: “Ninguém tem coragem de encarar a lei, né?”.
PAS: Chamando vocês de bandidos indiretamente.
E: Aqui, ó, tem um posto policial na Braz Leme, a gente foi no McDonald’s de madrugada, sabe o que o polícia gritou de dentro da viatura? “Aí não é biqueira, não, viu?” Os caras provocando nós.
PAS: Eles veem bandidos em vocês.
E: Sim. A gente tava trabalhando aqui, fomos até o McDonald’s.
PAS: Será que, no fundo, eles não estão morrendo de medo da gente também?
E: Você acha? Acho que não. Eles têm plena convicção, sabem quem está na intenção ruim. Várias vezes querem mostrar serviço, têm plena convicção que estão abordando gente que tá trabalhando.
PAS: A sua perna começa a tremer quando vê a Rota, mas eles estão o tempo todo em perigo de morrer também, se o cara que encontrarem estiver na má intenção…
E: Se o cara estiver armado, vai sair pra trocar? Por isso é uma situação delicada. Só que ele tem preparo pra lidar com aquilo, eu não. Ele foi levar o currículo dele pra ser polícia, eu não.
PAS: O drama é que muitas vezes ele também não tem preparo nenhum, ou quase nenhum.
E: Aí você abre essa questão, que preparo os caras têm pra lidar com uma situação dessa? A polícia pré-julga.
PAS: Nem é só isso, a polícia pré-julga todo mundo culpado.
E: É, ela pré-condena. Se pré-julgar, dá o direito da pessoa ser inocente. Não, a polícia pré-condena. Vê o vídeo do moleque da USP. É aquilo ali, aquele vídeo personifica como a polícia trata a gente.
PAS: E chamou atenção por ter sido na USP. Se é que dá pra ter um lado bom naquilo…, muita gente passaria a vida inteira sem ver aquela cena. Hoje os caras de periferia estão chegando na USP, e é um tipo novo de conflito.
E: Total. Quando vi o vídeo, foi a primeira coisa que me liguei quando o cara foi pra cima dele: “Caralho, é o único negão do bagulho, vai tomar um sal”. Foi arrogância e despreparo mesmo, sabe? “Por que esse preto tá me respondendo?”
PAS: Ele estava se sentindo ameaçado por todo mundo que estava ali, e tinha que escolher alguém pra descontar.
E: Ah… Sacou? Aí você vê, racismo é foda. Soma tudo isso aí ao racismo. O MV Bill tem uma rima foda: “É complicado ser revistado por um mulato fardado que acnha que um preto favelado é o retrato falado”. Isso aí é foda, sintetiza o que é nossa relação com a polícia mesmo. Mano, até ontem você tava deste lado, cara. Você está enquadrando você. Está agredindo você. Seu filho, seu primo pode estar numa situação igual a essa.
PAS: Existe racismo na PM?
E: (Ri.) Não existe um segmento do Brasil em que não exista racismo.
PAS: Quer dizer, não é um problema exclusivo da polícia.
E: Não é uma característica da polícia. Não é uma característica de nenhum setor, é de todos ao mesmo tempo. Quando a gente viaja, vai pra hotel chique, os caras têm aquela simpatia amedrontada deles, “quem são esses caras diferentes que chegaram?”.
PAS: O pior tipo de situação racista é com a polícia? Ou tem outros lugares que é tão ruim quanto?
E: Graças a Deus, eu não me relaciono com a polícia. Meus encontros são só nesses aí, infelizmente são os piores. Mas o racismo que vejo é em todos os segmentos, é esse caso que contei do banco. Estou em hotel legal, vou tomar café e vejo que a maioria das pessoas fica… É estar na loja, eu e o camarada branco, e as pessoas vêm pedir pra mim, “pega tal produto pra mim”.
PAS: Isso acontece sempre?
E: Pra caralho. O uniforme da loja é verde, eu tô de camisa amarela, acontece. O racismo em si não é uma característica da PM, mas é um agravante, péssimo, porque soma a instrução que os caras têm, de coagir mesmo a população, amedrontar, ao preconceito por estilo de roupa, sei lá. Também tem isso. Embora as pessoas achem que não, ainda tem: os maloqueiros. O que fecha a tampa é a cor, ou o que abre alas é a cor. O mano que foi morto pela polícia no Anhangabaú tava de social.
PAS: Como você definiria a relação entre a polícia e o rap? O rap é uma cultura que surgiu, a arte dando outro destino pra gente que poderia estar no crime. A polícia, que é o lado da autoridade, teria que se acostumar com isso, entender que ninguém quer ser bandido.
E: Mas a relação da polícia com a arte é totalmente torta. Vai ver o jeito que abordam músico de rua, mandando eles sair. A gente tem que agradecer ao Kassab, que proibiu.
PAS: Outro exemplo de atitude violenta contra…
E: …Contra a arte. Quantos artistas grandes fodidos começaram tocando na rua? Caju & Castanha. Você tá matando a oportunidade daquilo proliferar e crescer, e é um bagulho que dá muito orgulho pra nós.
PAS: E é mais uma modalidade de perseguição aos pobres.
E: Também. Ninguém vai tocar piano nem harpa na calçada.
PAS: Voltando, quando tem que haver encontro rap-polícia, como se dá?
E: Se eu for te dar exemplos, todos aconteceram de maneira tensa. O show de Pelotas foi um. No Guarujá (SP) foi a mesma coisa, no meio de uma quebrada, numa praça pública. Não tinha tumulto nenhum, mas tinha excedido o horário, e a polícia proibiu de continuar, dizendo que ia levar todo mundo pra cadeia. Os polícias ficam histéricos em várias situações. Quando você tem argumento bom, eles se sentem desmoralizados.
PAS: É a história do menino da USP, ele não tinha nem começado a abrir a boca.
E: O que acontece? A população inteira vai em cima da viatura, cerca, começa a xingar a polícia. Daqui a pouco pode acontecer uma merda maior. Tudo podia ser evitado com um pouquinho de bom senso. Não acontece mais porque a polícia sabe agir de uma forma isolada, tem preparo estratégico. A população, não, só reage quando é amontoada e obrigada a tomar uma atitude. Tipo, a polícia proibir um show, isso não pode acontecer. Mas, em geral, os caras vão enquadrar você duas ruas pra baixo e eu duas ruas pra cima. Você não vai me ver, eu não vou te ver, a gente não se conhece, você vai achar que só aconteceu com você e eu vou achar que só aconteceu comigo. Então a gente não tem um motivo, só quando a gente conversar vai ter, é uma coisa que acontece com todo mundo. A polícia sabe quantas vezes age, a população é que não tem noção.
PAS: Teve a situação famosa da Virada Cultural, um monte de artistas tocando em vários locais, e a confusão foi acontecer justamente no show dos Racionais MC’s, no palco de rap.
E: Então, pra mim isso foi uma parada estratégica, e tá acima da polícia. Não sei te dizer quem orquestrou, mas pra mim foi estratégico fazer que culminasse no momento do show dos Racionais. Eu fui embora antes, não fiquei porque tava passando mal. Tinha uma amiga que tava num hotel no centro, eu fui dormir lá. Não entendi nada, seis horas da manhã os caras me ligando pra contar que o bicho tava pegando: “Tô escondido, tão jogando bomba aqui”. Que porra é essa, mano, é trote? No outro dia fui ver, no show da Nação Zumbi já tavam acontecendo várias paradas. Andei do lado da tenda eletrônica, tinha gente usando droga pra caralho, em vários lugares. Tinha várias minas chorando porque os caras rasgavam a roupa delas, elas com o peito pra fora, segurando. O centro tava um caos. Embarreirar Racionais em São Paulo é dar um xeque-mate sem tamanho na cultura negra jovem que contesta. Das conquistas mesmo do povo preto, Racionais é uma parada sem tamanho. Não teve alguma coisa que foi tão longe, nem as medidas do governo, étnico, cultural, de valorização, secretaria de igualdade racial. Nada disso chegou na periferia igual Racionais, nada disso fez as pessoas erguer a cabeça.
PAS: Isso te faz desconfiar que é proposital?
E: Sim. Sim. São Paulo contamina o Brasil, o Sudeste define um milhão de coisas na política. Os pobres daqui se organizando, os pretos daqui falando que tão passando isso aí, não é uma coisa que os caras podem monitorar. Como você vai embarreirar CDs de rap? Você apresenta projeto nos ministérios, nas secretarias, é humilhante. Tá tudo certinho, o cara que te devolve fala: “O bagulho tá bonito, mas na moral, vou falar pra vocês, não passou mesmo porque é de rap”. Você volta, lembro a primeira vez, o Fióti ficou com os olhos cheios de água. Eu já tava macaco velho. Mas acredito nisto: Racionais foi barrado porque politicamente era importante colocar os Racionais como os grandes inimigos do Brasil.
PAS: Comparando com a situação da USP, tem Virada Cultural, Racionais aqui, Rita Lee ali. A tensão está no show dos Racionais – é onde a polícia tá mais tensa, quem tá assistindo ao show tá mais tenso… É a estrutura racista da sociedade também, por que no show da Rita Lee as pessoas não estão tensas?
E: Total. É a mesma estratégia, a questão da USP só mostra como as informações são distorcidas e mentirosas. Falei que Pinheirinho era guerra de Canudos, é a mesma coisa. Na guerra de Canudos, plantaram um monte de informação mentirosa dizendo que eles já estavam armados pra derrubar o governo, quando estavam se organizando numa cidadezinha. Foi a mesma coisa no Pinheirinho, sempre tem umas informações distorcidas pra levar a massa a crer que aqueles caras tão fora do padrão do cidadão de bem. Os vídeos do Mano Brown falando pro pessoal ficar calmo não foram pro ar. A mesma imprensa que colocou a capa com a banca de revista estourada não se preocupou em falar que Brown estava falando pro pessoal ficar em paz.
PAS: Assim como os Estados Unidos falam que o Irã tem armas de destruição em massa, falam que tem crack no Pinheirinho.
E: O crack é o grande inimigo do momento, né? É o vilão, parece que chegou este ano no Brasil. Uma conquista bizarra dos caras foi conseguir fazer a Cracolândia virar um bairro. A Cracolândia é um grupo de pessoas. E toda a estação da Luz, aquele lugar onde eles querem fazer o projeto Nova Luz, virou a Cracolândia. Esquecem que tem o trabalhador, todo mundo que trabalha lá e tem tanto medo quanto eles com a situação da droga. A polícia tá lá há miliano e ignorando o crack. É atrás da delegacia.
PAS: A Secretaria de Estado da Cultura fica ali também.
E: Na frente. E os caras conseguiram fazer isso, “tem que dar um jeito no centro, porque lá só tem usuário de crack”.
PAS: O que você acha disso? Qual é a intenção deles?
E: A intenção de disseminar isso aí é higienizar o centro, vender pra umas imobiliárias monstras, transformar nuns condomínios e foda-se o povo. Isso aí define todas essas ações, cracolândia, Pinheirinho, USP: “Foda-se o povo” é o lema dessa parada (encontramos aqui a semente para a composição de “Dedo na Ferida”, o revide de “foda-se vocês/ foda-se suas leis”?).
PAS: Como a USP entraria nisso? Em geral ali não é o povo que está, são os filhos da elite.
E: Então, em termos. Boa parte deles é, mas também tem gente nossa lá.
PAS: Mas isso é inédito, estão descendo o porrete nos filhos da elite também. E os pais deles não estão se tocando da gravidade disso.
E: Sim. Isso é muito bizarro. Eu tava falando com um moleque de lá esses dias, ele me falou qual é o curso que os pobres mais fazem. Na USP pobre não faz medicina, direito. Os cursos quer pobre faz são os menos concorridos – história, geografia, pedagogia, os prédios que tão em pleno abandono também, e que é onde a polícia acampa pra repreender.
PAS: Ou seja, lá se repete a estrutura da sociedade também.
E: Ninguém fala do João Grandino Rodas, por exemplo. O jeito que o Rodas foi colocado lá é totalmente antidemocrático. Ninguém levanta esse assunto. A versão que me consta dos caras que estudam lá é que os caras ficaram dias e dias e dias procurando um pretexto, e não acharam nada. Um belo dia acharam três moleques com cigarro de maconha. E aí foi a festa da Veja.
PAS: De algum jeito é uma ocupação que motiva tudo, né? Tem a ocupação do Pinheirinho, a da Cracolândia, a da USP.
E: Sim. Nada preocupa mais os caras do que a organização do povo. A organização do povo é uma ameaça gigantesca ao que enche os cofres deles há séculos. Você imagina, se as pessoas se instruírem e souberem que têm que pressionar? O real problema é o prefeito? Então a gente vai ter que se organizar pra falar com o prefeito, e aí ele não vai ficar fazendo essas papagaiadas de cuidar do partido dele, montar o partido dele e deixar 70% das coisas que falou que ia fazer sem acontecer. Isso é o povo se organizar, pra eles a melhor coisa que acontece é o povo estar desconexo.
PAS: O que está acontecendo no Pinheirinho é um sinal…
E: …De organização. O MST. A imagem do MST, principalmente no Sudeste, é dos caras que invadem as fazendas e matam as pessoas que estão lá batalhando pelas suas terras. Quantas terras em que os caras acampam são improdutivas? Ninguém fala da quantidade de terra entregue às traças no Brasil, e da quantidade de pessoas sem moradia, no âmbito rural. A gente precisa de uma reforma agrária, e o Pinheirinho é prova de que a gente precisa de uma reforma urbana também.
PAS: Quem é o dono da massa falida daquilo?
E: E quantas massas falidas não tem? Tem uma história do Moinho, que a empresa que era dona do terreno tinha mostrado interesse em ceder pra população, e a União incorporou, pra que isso não acontecesse. Veio pra mídia agora, mas ano passado a gente tocou lá, e a situação tava esquisita. Não tinha água fazia semanas. O nome do evento era Legalizem a Água.
PAS: Isso no centro de São Paulo?
E: No centro de São Paulo, e por que isso acontece? Por pressão dos caras pra eles abandonar esse lugar. Não é uma característica de São Paulo, em Nova York aconteceu isso aí. Eu tava falando com os gringos, eles falaram que aconteceu a mesma coisa, chama gentrificação, gentrification.
PAS: Tem vários tipos. Da praça Roosevelt tiraram as prostitutas, as travestis.
E: Essa parada da Roosevelt é muito bizarra, a gente vai perder um espaço fundamental de cultura. Li que só quem é dono do espaço lá são os Parlapatões. E é um núcleo pulsante de arte, tem os Sátyros, os cafés, as livrarias. Simplesmente o aluguel vai subir de um jeito que vai empurrar esses caras pra falência.
PAS: O que você acha de Virada Cultural?
E: Não gosto. E já toquei. Não gosto porque a gente não tem iniciativas ao longo do ano. Tem a Virada Cultural, que é um dia que todo mundo espera que vai ter festa de graça durante 24 horas, mas cadê as iniciativas mesmo pra pavimentar o caminho da cultura pra ela não precisar de uma Virada Cultural?
PAS: É um único evento grandão uma vez por ano pra dar visibilidade, e no resto do ano…
E: Tipo isso, você tá falando pra população, “a gente gasta tanto todo ano na Virada Cultural, um megaevento”. Beleza, bacana, é uma ideia muito louca. Mas, cara, por que não organizam os CEUs, não fazem os caras rodar neles? Arte é foda, querem fazer parecer arte e política desconexos, mas não. Arte é oxigenar a cabeça das pessoas, fazer elas pensar em outras coisas. E quando você desvia a atenção das pessoas pra outra coisa é uma caixa de Pandora, um milhão de coisas pode sair de dentro. Elas podem sair dali mais alienadas do que entraram, ou podem sair querendo mudar o mundo, de verdade. Foi o que aconteceu com nós. Você tem um aparato tipo o CEU, imagina se realmente funcionasse. Os caras tavam fodidos, mano. Aí a gente ia ter uns manos nossos circulando dentro da USP mesmo, e outros abdicando da USP porque não ia precisar.
PAS: Minha impressão é que esse processo é o que está acontecendo, e explica, por exemplo, a sua existência. Não tem volta, vocês vão querer cada vez mais – nós vamos querer mais.
E: E por isso eu faço questão de aparecer mesmo nos lugares. Porque realmente eles podem por panos quentes em tudo, mas, cara, um dia vai ter que haver um conflito. Um dia os caras vão ter que se mostrar publicamente desagradados com isso. E eu acho que isso tá chegando.
PAS: É um pouco isso o que tá acontecendo, né?
E: Do mesmo jeito que tô aqui independente, mano, posso mandar qualquer um se foder.
PAS: O que explica que tenham botado polícia dentro da USP? Por quê, se historicamente as universidades não têm polícia?
E: Um parceiro meu tava gravando aqui e falando do pai dele. A tensão lá dentro… Desde 1963 aquilo é bagunçado, quando teve o Pan-Americano, o prédio era pros atletas, depois saiu, ocuparam. Ele falou que o movimento estudantil rachava porque a polícia colocava umas pessoas à paisana no meio dos estudantes, pra incitar a violência, eles atacarem a polícia, e a polícia ter argumento pra revidar. Não começou ontem, tem uma história toda.
PAS: Eu estudei lá, nos anos 1990, e a polícia não entrava, não tinha ingerência sobre universidade.
E: É mesmo?
PAS: Tinha a guarda da própria universidade, como se ela tivesse uma polícia à parte. E foram esses caras, Geraldo Alckmin, José Serra, que mudaram isso, colocaram a polícia de volta lá.
E: As próprias subprefeituras foram militarizadas. Eu nem tinha me tocado disso aí. A gente tem uns amigos, um camarada tem um restaurante, ele falou: “O cara da subprefeitura agora é sargento, vou lá na do Tucuruvi, também, na outra também, tudo”. Tá tudo na mão dos milicos de novo.
PAS: Mas eu repito, esse é um problema de São Paulo, desse partido que tá aqui. Não é que tá acontecendo em todos os estados.
E: Eu acredito que esse é um sinônimo do desespero dos caras. Tem ficado muito evidente. Falo do governo do Lula. Toda essa parada da economia, Bolsa-Família, imagem do Brasil pro exterior, pô, do caralho. Mas a parada mais foda que o Lula fez foi só ter chegado, sacou? Porque é nós. Vindo de onde a gente vem, tudo que a gente precisava era de um exemplo, e é isso, é isso que eu faço. Eu só preciso estar lá, chegar lá, pras pessoas que viram de onde tô saindo. Mano, é possível pra nós também.
PAS: É o que você faz.
E: E foi isso que Lula fez, ele levantou a cabeça de todos os pobres.
PAS: Nem só os pobres, as minorias.
E: É, e pra todo mundo. A elite no Brasil é um bagulho, dá até preguiça de falar dos hábitos dos caras. E, pra esses caras, imagina o que é dividir espaço. Quando teve a parada da gente diferenciada de Higienópolis, chega a ser engraçado. Esses tempos fomos participar de uma intervenção de publicidade, com artistas de rap. Cheguei lá, não tinha nenhum preto. Aí virei pro Fióti, falei: “Tô cansadão dessa porra”. Viramos pros manos e falamos: “Nós vamos sair fora. É bagulho de rap e não tem nenhum preto”. Os caras: “Não, vai vir uma rapaziada aí, já tá chegando”. Saíram correndo pra ligar pra uns figurantes.
PAS: Era um evento de rap?
E: Não, era uma parada que usava, o rap era a música. Eu era o artista principal da parada. Eles correram atrás, “vocês conhecem alguém?”, “querem chamar alguém?”. A gente ligou pros camaradas pra ganhar dinheiro também. Ficamos, os caras encheram de preto lá, sacou?
PAS: Isso é política.
E: Você tem que chegar lá, é isso mesmo. O mais curioso pra nós é que os caras tinham receio de falar a palavra “negro”. A gente falou: “Mano, não tem negro aqui”. Hip-hop é cultura do povo, e os negros têm que tar inseridos, cara. É nosso o bagulho, como quer usar isto e não quer ter negro na parada? Era um evento, uma filmagem no centro. Mas o grande receio dos caras em falar o termo “negro”, os caras não conseguem falar a palavra, “será que ofende os caras se chamar eles de negros?”. Aí usavam uns termos…, “a gente tá chamando uma rapaziada da pesada” (risos). Não dá, não. Às vezes acho que a gente é politizado demais com o bagulho do racismo. A gente vem com uns argumentos muito chiques, os caras não merecem esses argumentos. Sabe quem merece? As pessoas da comunidade. Elas merecem saber da história, dos sofrimentos, pra se se valorizar. Os racistas tem que mandar tomar no cu mesmo, acabou.
PAS: Nesse dia você fez diferente, você constrangeu eles.
E: Porque eu tinha essa carta na manga, eu já tava nessa posição. E acho que é isso que a gente tem que fazer, trabalhar e chegar lá, porque aí a gente tem gente nossa pra poder tar nessa posição e falar “tá errado isso, pode mudar, e pode falar que é frescura minha mesmo”.
PAS: É um jeito sutil de mandar tomar no cu, “ou vocês arranjam mais pretos ou eu vou embora”. Pra próxima vez, aqueles caras aprenderam.
E: Aprenderam, pelo menos comigo eles vão estar ligados.
PAS: Cracolândia. Você vê algo positivo na forma como estão conduzindo a operação?
E: Se a gente for tirar alguma coisa de positivo disso é: deram atenção pra esse lugar. Esse é o único ponto positivo. Em que lugar do mundo você induzir as pessoas à abstinência de uma maneira agressiva cura elas da doença que é a droga? Não existe isso. Você vai fazer o quê? Vai espalhar os viciados pelo centro, vai impulsionar eles pro crime, vai ramificar a parada. O crack vai voltar pras quebradas, já tem a maior galera reclamando disso também. O crack é um bagulho sem controle. O vício é tão forte que meio-dia os caras tão assaltando você na rua. Foda-se, eles precisam do bagulho.
PAS: E o que tem de errado nessa ação?
E: Tudo. Pra começar, é a polícia que tá conduzindo. É a polícia tratando de doente. Só que aí você volta na mesma estrutura de informação da sociedade, do jeito que ela é preconceituosa. Você não fala sobre sexualidade, sobre racismo, sobre violência, sobre drogas. Como você vai solucionar um problema que você não fala? Que você finge que não existe, que é problema da família dos outros? São Paulo é isso. Vai lá no meu bairro falar de maconha. Pras tiazinhas e pra várias pessoas, falar a palavra maconha é um palavrão. Enquanto a gente não entrar nesse assunto a fundo… Vai falar disso? Vai ser chato, vai ser foda pra você e pra mim, só que pra resolver nós vamos ter que passar por isso.
PAS: Talvez nem seja tão chato quanto se imagina.
E: Tem um parceiro meu que tava trabalhando de paparazzo, tirando foto de uns famosos aí. Tirou foto dos caras, dos manos famosos se beijando, mas não podia publicar. Os caras viviam de extorquir eles. Tá vendo? Se os caras assumissem não ia ter essa parada. Vagabundo usando droga, se se falasse sobre drogas não ia ser desse jeito. Só que não fala. A droga é usada com outro pretexto, os caras querem uma determinada região, é lá que é o ponto de droga. Aí a droga e a violência entram em pauta.
PAS: No caso da Cracolândia, botar a polícia pra resolver é obrigar ela a fazer aquilo pra que não está preparada.
E: Não está preparada. Não está preparada pra lidar comigo que tô sóbrio, imagina com o mano que tá lá querendo fumar pedra.
PAS: Você já usou drogas?
E: (Ri.) Cara, já experimentei, já. Mas eu tenho uma relação muito zoada com os entorpecentes. Sou tão noiado com isso que não me deixa na brisa igual todo mundo. Eu fico tipo, “caralho, que merda que eu tô fazendo?”. Por isso que eu não uso. Não me deixa loucão, me deixa mais chato. Prefiro mil vezes estar do jeito que tô aqui.
PAS: Isso te faz evitar? Você não gosta?
E: Não, mas a minha relação é muito tranquila, conheço N pessoas que fumam, que cheiram, que bebem. Minha família inteira foi destruída por causa da bebida, várias pessoas bebem na minha família. Também acho que isso é uma coisa que incentiva as pessoas a ir pra droga: tem droga que é proibida e outras não. E os efeitos são semelhantes. Álcool não é uma doença? Não é igual ao crack? Chega um ponto que não tem diferença nenhuma, o pai de um amigo tá no hospital com cirrose, vomitando o fígado. Chega um estágio que é só destruição na vida das pessoas, qual é a diferença? O cara que vende cachaça paga imposto? Cachaça é controlável, é social, o cigarro. Hoje a coisa mais normal é encher a cara e sair dirigindo. Quando bate, mata outra pessoa, que não tinha nada a ver com a parada. Sempre é a outra pessoa que morre. Ninguém fala disso também, é sempre matéria isolada no jornal, “o motorista embriagado”. Ninguém se pergunta: qual é o problema? É a bebida? A polícia vai dar uma dura e trata qualquer um como se fosse craqueiro, viciado, traficante.
PAS: Cada um usa o que quiser, mas na hora de igualar iguala todo mundo pelo negativo.
E: Tem essa postura arrogante dos caras. Fecha todo mundo no mesmo barco, vocês são todos viciados. É isso que a polícia faz. Com relação aos tiozinhos bêbados no bar e os noias da Cracolândia, mesma fita.
PAS: Falando sobre pixação e grafite: o que você acha dessas duas formas de arte?
E: Cara, acho intervenção. Acho bom, arte, livre. Eu, particularmente, acho grafite mais bonito. Eu sou do hip-hop. Aprendi a admirar a variedade das coisas. O pixo eu acho ousado, acho foda o lance da disposição dos caras, mas artisticamente pouca coisa me atrai. Fazem nuns lugares que você desacredita, os gringos amam, tiram foto. Mas eu gosto mais do grafite.
PAS: Você já fez grafite ou pixo?
E: Fiz grafite. Mas aí que tá. Fiz grafite, que é tipo pintar um muro. Raramente você consegue uma autorização, então você é considerado pixador, independente se está pintando um ursinho colorido ou escrevendo “foda-se o sistema”. É pixo. A orientação da polícia com relação a isso mudou. Não que esteja mil vezes melhor, mas uma vez a gente tava pintando em Pinheiros, a gente saiu fora, um camarada meu foi pra outro lado e foi abordado e levado pra delegacia. Chegando lá, o delegado deu uma comida de rabo no polícia: “Você tá prendendo grafiteiro? Os caras são só grafiteiros”. É outra postura, não sei o quanto isso é comum na corporação, mas a gente viu acontecer. Mas também teve o lance dos caras serem presos aqui, no metrô, os mais top. Mas isso foi bom, porque deu argumento pros caras, hoje todos os pilares são pintados. E a gente tem um museu a céu aberto, foi o que gerou de bom.
PAS: Recentemente tive que ir numa delegacia de Pinheiros, de dia, e tinha um monte de moleques, brancos e negros, detidos não sei se por pixo ou grafite. Acharam um pouco de maconha, estavam dando a maior dura, ameaçando que iam trazer os pais. A autoridade diz que é vandalismo. É preciso esse tipo de atitude?
E: É desnecessáirio. Esse assunto é delicado porque fala de violação de patrimônio privado, as pessoas pixam seu restaurante. Nesse ponto, vamos pensar assim: você pintou sua casinha, os caras pixam em cima, na visão do proprietário é foda. Pixo é violação. São dois pontos de vista diferente, que nunca vão coexistir.
PAS: Você está dizendo que consegue ver razão dos dois lados?
E: Sim. Dá pra ver razão dos dois lados, os propósitos das duas coisas.
PAS: Como você definiria a juventude de São Paulo, tanto a da perfieria quanto a do centro, de qualquer classe social? É apática ou atuante?
E: Em geral acho a juventude do Sudeste dispersa. Não é só São Paulo.
PAS: Nas outras regiões não?
E: Não, eu acho a juventude do Nordeste, por exemplo, extremamente mais politizada e consciente da história.
PAS: Como você percebe isso?
E: Pelo diálogo. Você pergunta pra rapaziada de Recife, os caras têm orgulho de Lampião, até porque ele é um ícone. São Paulo não tem ícone. Quem são os ícones de São Paulo?
PAS: Periga virar o Naji Nahas.
E: Saca? É doente. Mas por quê? Por causa da mídia que a gente tem aqui. Isso cria uma juventude dispersa. Todo mundo tá preocupado em ter a carreira mais fodida, a posição social mais fodida, mas ninguém sabe de onde veio.
PAS: Faltam líderes pra mover isso?
E: Falta credibilidade e saber dialogar nos tempos de hoje. O problema dos movimentos políticos, sociais, é o problema do entretenimento. Hoje em dia a informação corre de outra forma. Como você vai levar sua causa até as pessoas? Uma rebelião, uma revolução é ridicularizada na TV. Colocam de uma maneira pra parecer que tem pouca gente envolvida naquilo, que não é um problema seu, é dos caras lá. Os caras pararam a avenida Paulista, vê se pode uma coisa dessas, em vez de estar trabalhando. Mesmo que seja um problema que afete todo mundo.
PAS: Falando da arte, faltam líderes artistas? Nós temos? É preciso ter?
E: Falta mobilização e união na classe artística, com relação a assuntos que lesam todos os artistas. Acabou de ter essa parada da Sopa e da Pipa e os artistas não falam nada. Ninguém fala nada. Quando os artistas vão falar, fazem aquele vídeo de Belo Monte. Você nunca mais viu nenhum daqueles artistas do vídeo falar sobre a parada.
PAS: Você conclui o que disso?
E: Eu concluo que não é um problema deles, eles não fazem ideia do que estão falando. Posso estar errado. Pra mim isso é publicidade.
PAS: Você foi convidado pra participar?
E: Não.
PAS:
Era só gente da Globo, né?
E: É, pra mim não está cantando esses aí ainda, graças a Deus. E eu penso nisso mesmo, acho que as obras de Belo Monte têm que ser revistas. Mas essa maneira de levar informação não é honesta, não é justa. É dramático, você vai no coração das pessoas, e elas têm que aprender a raciocinar com a razão. A questão do Pinheirinho não é pensar com o coração, é com a razão. Ninguém tá pedindo esmola. As pessoas precisam de uma escola. O sonho da casa própria é bizarro, uma casa não tem que ser um sonho, tem que ser o básico. Tudo que vem pra nós é pelo lado emocional. Não tem que ser, tem que ser o lado racional.
PAS: Será por isso que os Racionais se chamam Racionais?
E: Nem sei se os caras pensaram nisso, mas é foda.
PAS: Como você completaria uma frase que políticos e policiais às vezes usam, “bandido bom é…”?
E: Bandido bom (ri)? Cara, o que a gente tem que rever é o conceito de bandido. Se a justiça for pra todos, aí bandido bom é o bandido que pague pelos seus erros.
PAS: O conceito de bandido deve ser revisto?
E: Sim, porque, no conceito da polícia, bandido bom é bandido morto. Só que aí você clica no que quer dizer bandido pra polícia, tá lá preto, pobre. Bandido é qualquer um que infrinja o direito das outras pessoas, que faça mal a outras pessoas.
PAS: A gente pode até questionar se existem bandidos. Existem?
E: Existem. Naji Nahas e Daniel Dantas são bandidos. Quantos casos nós não temos? Mas a maneira que você trata os bandidos é muito diferente. Por que o cara que catou o revólver e assaltou na rua tem que ser jogado num camburão arrastado e humilhado na cadeia, jogado lá por não sei quantos anos, e o Paulo Maluf merece reverência?
PAS: A real é que ninguém combate o crime nesta sociedade. Combate os pobres.
E: Combate os pobres, de uma maneira superficial, pra mostrar serviço, pra parecer que tem uma função. Às vezes soa que é como se fosse pra dar legitimidade às coisas. É gritante. O lance da Chevron com o petróleo, precisava chegar no ponto que chegou, de vazar dias, manchar o oceano? Vão prender os caras? Vai pra cadeia? Vai tomar tapa na cara do polícia? Vai ser humilhado? Vai ficar pelado, vão jogar água gelada? Vão jogar na cela com o outro que roubou galinha, com o que espancou a mulher? Não vai, mano, não existe justiça. Bandido bom é o bandido que paga pelos erros dele.
PAS: PM rima com o quê?
E: Ironicamente, PM rima com treme. Treme de medo.
PAS: Você tem medo de morrer?
E: Cara, hoje eu tenho, depois que virei pai.
PAS: Antes você não tinha?
E: Não.
PAS: Você não tremia quando a polícia chegava perto?
E: Cara, eu sempre vivi de uma maneira muito, “ah, foda-se, o que vier veio”. Eu não tinha perspectiva nenhuma na minha vida, essa era que era a verdade. Então tava meio que cagando e andando pro que acontecesse. Depois que vi… Demorou pra cair a ficha e ver o que nós tínhamos feito aqui. Teoricamente pras pessoas, de uma maneira superficial, eu faço música, um grupo de rap, só. Mas não, nós sabemos que nós injetamos uma vida sem tamanho nas favelas. A gente estava em Salvador com o bloco Malê Debalê, cantando sobre os pretos se unir. Quando começou a cair a ficha dessa importância, da importância política… Você vê que no final das contas não vai fugir disso aí. Nosso desejo é ter um país melhor, justo. Não vai dar pra fazer música, ficar milionário e fingir que, ah, beleza, o país tá bom porque a minha conta tá boa. Não dá, cara. Os blocos afro são muito fortes, mas não conseguem se tornar populares fora da Bahia. Pra isso, teve esse projeto da Petrobras mesclando. Peguei uma música dos caras e fui lá.
PAS: Você cantou com Elza Soares também.
E: Você viu? Foi foda.
PAS: E “Nega do Cabelo Duro” é uma música racista, né?
E: Pra caralho.
PAS:
Qual era a intenção de vocês?
E: Na real, aconteceu porque a Elza escolheu. Acho muito louco pela entonação, você tira o racismo dela. O que era uma piada, “ah, os caras têm cabelo duro”, pra nós é: “Ahã, nós temos o cabelo duro”. E Elza dizendo que ela é bonita mesmo, por ter o cabelo duro. Tem uma minha também, “Quero Ver Quarta-Feira”, tá no YouTube. Ela arregaçou, foi emocionante, ela chorou e tudo mais. Foi forte.
PAS: Ela já te conhecia?
E: Já.
PAS: Essa é ligada também.
E: Pra caralho, a milhão, no 220. Ser tiazinha não quer dizer nada. Martinho da Vila também, ele não se manifesta muito com relação a isso, mas sabe o que tá acontecendo. Fizemos Rock in Rio com ele, e também em Porto Alegre, foi foda. É louco como a coisa se torna próxima depois. O line-up em Porto Alegre era Martinho, eu, Psirico, É o Tchan, bizarro pra nós estar nesse meio. Igual essa semana no Guarujá, a gente tomou um baque, pela primeira vez a gente subiu no palco e antes de subir tava tocando sertanejo. Pensei: mano, será que o pessoal vai vir, vai entender a parada quando a gente subir? Quando a gente subiu o povo veio, isso é uma parada importante.
PAS: Se todo mundo descobrir que pode misturar qualquer música, pode descobrir que pode misturar qualquer classe social, qualquer raça…
E: Aí é que tá, esse é o pânico dos caras. O grande problema é o povo pensar “e se eu fizesse tal coisa?”, e fazer mesmo.
PAS: Deu certo sertanejo com rap?
E: O sertanejo que eu gosto não é esse moderninho, não. Eu gosto das modas de viola, os novos não têm emoção, é só pegação. É o mesmo que acho do funk, acho um bagulho foda, tem uma força e uma autenticidade do caralho, mas as ideias se perdem, e começa a ser usado de uma maneira ruim. O funk tá aí chamando as minas de “novinha”, promíscuo pra caralho, e ninguém vai ver as minas lá com 13 anos.
PAS: Mas o erro é uma pessoa pegar qualquer gênero inteiro e dizer que ele é o mal.
E: Quem gosta de fazer isso é a Sônia Abrão, né? “Quando você pensa em funk, já pensa em violência, tráfico de drogas.” E foi o que aconteceu com a gente também, por isso que a gente não pode entrar nisso. Nós somos música de bandido. Então não podemos entrar nesse bagulho de que funk é só putaria. Eu bato pé nesse bagulho das letras, acho que os caras podem fazer mais e lutar pra imagem deles ser melhor. Pela injeção de dinheiro, os caras se preocupam pouco com isso. Só brigo por isso. Poderia ser mais. Mas não vou entrar nesse bagulho que esse é de bandido, aquele é de caipira. É isso que os caras querem, que a gente se divida.
PAS: Quanto mais dividido, mais somos controláveis.
E: Sim, porque vamos ser cada vez menores.
PAS: Qual é seu ritual na hora que acorda?
E: Levanto, tomo banho, escovo o dente e venho pra cá. Tomo café aqui no escritório. Brinco um pouco com a minha filha, se ela já tiver acordada. Sempre deixo pra tomar café aqui, mas quero mudar isso, quero ficar as manhãs, ficar mais com a minha filha.
PAS: Você reza, tem religião?
E: Não. Passei por várias, mas minha religião é estar bem. Se eu tô feliz Deus tá feliz. Se eu tô triste Deus tá triste. Acho que Deus sou eu, é nesse sentido, igual Ney Matogrosso falou. O conceito de religião é bagunçado, é muito mais ligado ao pecado que à felicidade. Porra, mano, a gente vai encontrar Deus pra ficar chorando as pitangas, pedindo desculpa? Não é isso aí. Imagina que saco deve ser o paraíso se isso for verdade. Mas venho pra cá, e estando aqui organizo as coisas.
PAS: Trabalha pra caramba, como bom paulistano?
E: Sim, e eu gosto disso, é uma das coisas que mais gosto de São Paulo: você é viciado em trabalho. São Paulo te faz se sentir mal por não estar fazendo alguma coisa. Rio de Janeiro já não tem essa parada.
PAS: São Paulo não exagera nesse sentido, de viver só pra trabalhar?
E: Sim, pra algumas pessoas. Mas, por exemplo, pra mim, do ponto de vista de eu fazer o que eu gosto, eu acho muito positivo, me divirto fazendo o que faço. Muitas vezes tô aqui trabalhando e não sei nem que tô trabalhando. Isso é um problema quando as pessoas se sentem escravizadas, e isso acontece pra caralho. A minha mãe trabalhou, sei lá, carga horária igual à minha, ou pior, e não era prazeroso. Era humilhante. Empregada doméstica. Com rico é oito ou oitenta, ou você vai trombar o cara porque vai fazer um serviço, como também entra na casa dos caras e é o lixo do lixo. Não, não vai comer, você come ali, e não pode comer a mesma coisa que os caras comem. Nesse ponto de vista ser viciado em trabalho é ruim, pelas circunstâncias, pra não morrer de fome.
PAS: Não é a primeira vez que você cita que gostaria de ter mais tempo de ficar com sua filha. Talvez o trabalho te roube esse tempo…
E: Mas vai vendo que louco, ficar com a minha filha é muito inspirador. Acaba influenciando meu trabalho, faz muito bem. Fiquei cinco dias com ela no réveillon, nunca tinha ficado tanto tempo. Caralho, vou mudar essa porra agora. Assim que mudar de casa vou mudar minha rotina drasticamente. Vou voltar a desenhar, vou virar esses artistas loucões aí.
PAS: “Não existe amor em SP”, provoca a música do Criolo. Existe?
E: Existe, cara, existe. Existe. Roberto Carlos falava que as flores falavam, e o Cartola falava que as rosas não falam, né? Eu acredito nisso também. E acredito que existe amor em São Paulo, sim, nossa luta é prova desse amor. Tem dias em que a gente acredita que não, mas tem dias que isso aqui é o melhor lugar do mundo. Ver minha filha, os caras aqui todos virando pais de família… Os caras gostaram do negócio agora. E só tá nascendo mulher, continua naquele bagulho, presta atenção.
PAS: Talvez seja estratégico, tem muito aquela coisa do meninos de periferia não terem pai presente.
E: Então, eu não quero ser igual o meu pai foi comigo, não. Não que eu queira controlar a vida da minha filha, mas quero poder dar pra ela só conhecimento pra discernir o que é bom ou ruim pra ela. Fico zoando os caras, eles falam que quando a gente tem menina a gente é fornecedor. Falo: não, você vai ver, vou fazer minha filha virar lésbica, vocês tão fodidos, ela vai comer o filho de vocês todos. Ainda vai ser daquelas lésbicas brabas, não vai ser lésbica menininha, não (ri). Vai ser com tatuagem do Corinthians.
PAS: É meio uma guerra, os meninos da periferia e seus pais, uma relação difícil, ausente, não? Você teve um padrasto.
E: Tive, mas foi uma guerra.
PAS: Mas ele tá aí até hoje.
E: Ele tá, mas não quer dizer que foi tranquilo. Voltei a falar com ele faz pouquíssimo tempo, eu não falava com meu padrasto.
PAS: Mas é constante em qualquer classe social, todo mundo briga com seu pai.
E: Sim, cada geração vai questionar os hábitos da geração anterior.
PAS: Mas, na periferia, muitos pais morrem cedo, e os filhos não têm quem ampare eles. Seu pai morreu cedo.
E: Eu tinha seis anos. Por isso eu reflito sobre morrer cedo. Fico pensando na minha filha.
PAS: Melhor que não aconteça, né?
E: Sim. Tem que passar esse ano, se passar depois não morro mais, não.
PAS: Por quê?
E: É o ano dos 27, né, cara, o ano que os artistas todos acabam. E eu morrer, nada a ver, né, Pedro Alexandre? Não dá pra eu morrer, tem muita coisa pra fazer.
PAS: Por favor! Mas voltando ao Criolo, por que ele fez essa brincadeira, “Não Existe Amor em SP”? O que quer dizer com isso?
E: Não acho que é uma brincadeira, não. É profundo, por causa da cidade. Depois que ele cantou com Caetano Veloso, achei muito louco, por causa de “Sampa”, essa sensação de vazio, abandono, cinza. São Paulo tem essa textura, mesmo. Acho que ele quis mostrar essa perspectiva. Mas o mesmo Criolo que canta “Não Existe Amor em SP” é o Criolo do disco anterior, que chamava Ainda Há Tempo, o cara que canta “zona sul, haja coração/ dez mil pessoas na quermesse do Cantão”. Isso é amor. Esse é um momento em que ele olhou um pouco pra outro canto.
PAS: É como querer dizer que tem horas que falta amor em SP, na Cracolândia, na USP.
E: Sim, na maior parte do tempo, principalmente você andando por São Paulo, tá todo mundo tão preocupado consigo que as pessoas esquecem de olhar o próximo. Essa é a grande fama de São Paulo, né?
PAS: E não é mentirosa…
E: Não, o foda é isso, não dá pra gente dizer que é uma mentira, né? São Paulo é foda mesmo. Quantas pessoas não tão perdidas, pra onde essas pessoas vão? Ninguém para pra dar bom-dia pro outro.
PAS: Não é curioso que têm surgido esses slogans, provocações, “não existe amor em SP”, “mais amor, por favor”, “o amor é importante, porra”? São todas citando o amor.
E: Sim! Como uma solução, um remédio. Isso é antigo, as pessoas se odeiam há muito tempo, sem se conhecer. Tá na Bíblia, amai-vos uns aos outros. Distorceram isso aí pra separar as pessoas. A Bíblia é um livro que é foda. Se as pessoas lerem a Bíbila distante do que a Igreja fala, a Bíblia é um livro foda.
PAS: Você lê?
E: Eu não leio a Bíblia, não (risos), mas já li vários trechos.
PAS: É que eu não leio…
E: Você nunca leu a Bíblia?
PAS: Tenho pânico.
E: Cara, vou te falar, eu tinha esse mesmo pânico, primeiro por um preconceito de que é coisa de crente.
PAS: É difícil, eu não entendo nada.
E: É, tem os termos… Nós ficamos zoando que vamos fazer a Bíblia 2.0, com os termos das ruas.
PAS: Vão ficar ricos!
E: Íamos ficar milionários. Várias vezes os caras me dão a Bíblia, e sou curioso, dou uma olhada. Me dão o Alcorão. Outro dia o cara me abordou e falou que eu tenho que virar muçulmano, que os bagulhos que eu falo são dos grandes líderes.
PAS: Você cogita?
E: Não, nem fodendo. Falo com a minha mulher se eu ia poder ter outras mulheres. Mas fui barrado nessa instância, aí desconsidero.
PAS: O amor em SP tem que ser monogâmico?
E: É, cara, você vê que cabeça limitada (ri).
PAS: Mas e aí, o que você tira da Bíbila? O que tem de legal lá?
E: Então. Por exemplo, os dez mandamentos, não roubarás, não mentirás, essas coisas aí…
PAS: Não comerás demais…
E: É, tem umas coisas também que é preocupação em demasia com a vida alheia, né (risos)? Mas a Bíblia, metaforicamente falando, fala de um monte de coisa da natureza. O grande problema é quando você transforma a Bíblia no guia de caçar pecador, que é o que as igrejas fazem. Como você vai usar a Bíblia nos dias igual esses que a gente vive, que cada dia aparecem 200 mil coisas novas?
PAS: Se for pra caçar pecador, não sobra ninguém.
E: Fodeu, vai caçar pecador? Beleza, vai lá, pecador.
PAS: Mas o que tem de legal nos dez mandamentos?
E: Não, eu não lembro os dez mandamentos agora. Quais são mesmo?
PAS: Não faço a menor ideia.
E: Eu fiz catequese, mas não lembro.
PAS: Tô tentando endenter o que você tira de positivo da Bíblia quando cata ela.
E: Do amor, dos ensinamentos sobre amor. O que Jesus falou sobre “amai-vos uns aos outros”, “amai até seu inimigo”, essas coisas aí. Na minha leitura, isso é sobre você derrubar todas as barreiras que separam as pessoas e se unir pelas coisas que nós temos com semelhança, não se separar pelas diferenças. Acho que a Bíblia é um grande livro sobre isso. E no final das contas tem o apocalipse, que é uma ameaça.
PAS: Dizem que é 2012…
E: Chegou, chegou. O barato tá louco, o ser humano vai se destruir por si só, não vai ser Deus nem a natureza.
PAS: Talvez o mundo acabe em 2012 pra começar outro melhor.
E: Cara, cê pensa assim, ó. Não gosto de pensar no fim do mundo porque penso: bem na minha vez? Agora que eu cheguei na parada vai acabar o mundo? Vou ficar muito puto.
PAS: Quando a população do Pinheirinho aprende a resistir, mesmo que não dê certo no final, é um outro mundo muito mais interessante começando, não?
E: Sim, eu acredito nisso, um momento de consciência mesmo. Essas paradas que os caras têm feito, derrubado site de um e de outro, colocado todas as músicas da Sony pra baixar de grátis… Não faz pensar? É isso mesmo. Os caras fodem nós há um século.
PAS: Você usava Megaupload? Teve algum prejuízo?
E: Sim, pra caralho. O Nyack teve mais, porque todas as mixtapes que ele fez eram disponibilizadas pelo Megaupload. Caiu tudo, sumiu.
PAS: E não era nada pirata.
E: Não, era nosso. Deve ter backup.
PAS: Ele pagava?
E: Não, não pagava. Só que é muito ridículo esse argumento, pirataria.
PAS: Pra você simplesmente não serve.
E: Não serve pra mim e nem pro mercado hoje.
PAS: Maria Bethânia pode dizer que estão roubando os discos dela, mas os seus você mesmo disponibiliza. Não tem gravadora, tem direitos autorais?
E: Me associei à Abramus, às vezes pinga uns negocinhos. Vê YouTube, R$ 0,56. Caiu o último aí, de três em três meses vem isso. Já devo ter ganho uns R$ 2 de YouTube. Quando os caras falam de monitorar alegando que é pra defender direito autoral, porra, mano. Cê quer defender os direitos autorais? Revoluciona todos os meios de distribuição de direitos. Queima todos os contratos de gravadora, que dão 8 a 10% pros artistas. Tem um camarada nosso, artista grande, ele fala: “Cê tem que ver, Emicida, agora vocês tão grandes, podiam fechar com alguém”. Mano, esse seu contrato tá muito feio. “Não, mas contrato de direito autoral é isso aí mesmo, o negócio é show.” Não, show é um dos baratos, tem que mudar tudo. Isso não muda, então quero que se fodam argumentos de pirataria.
PAS: Por isso fecharam o Megaupload, né?
E: É o argumento dos caras. Falam que Megaupload facilitava pirataria, mas Megaupload é uma ferramenta. Você vai prender o Megaupload porque ele facilita a pirataria? Por que você não fecha a Souza Cruz por facilitar o câncer ou fecha a Magnum porque muita gente morre baleada?
PAS: Não é um pessoal do rap que têm a ver com o Megaupload? Estavam criando um negócio deles, pra não depender de gravadora e ficar com os próprios direitos.
E: É, e os artistas são do barato, né?, Kanye West. Fizeram um vídeo falando essa parada. Há tempos as pessoas pensam uma forma de sair disso, só que realmente é um mercado gigantesco, e tá na mão desses monstros. Pra nós, por exemplo, agora a gente vive um momento muito delicado aqui, e acho que o resto da vida vai ser delicado. Beleza, a gente não fechou na primeira, nem na segunda, nem na terceira proposta. Tá bom, querem fingir que são grandes então? Se liga, os shows vão ficando cada vez mais complexos, a estrutura cresce. A gente demanda um investimento e não tem uma base de investimento, não tem um lugar de onde tirar dinheiro. Nosso dinheiro vem do povo, da rua, dos shows. E aí, beleza, Emicida é legal, foi da hora enquanto soava um menino sortudo. Agora diminuem os programas. A gente precisa dar um passo realmente popular agora, precisa de um estouro popular pra seguir. Porque senão a gente vai repetir, virar mesmice. Agora é o momento mais delicado.
PAS: Mas você nem lançou o primeiro disco ainda…
E: Então, por isso que fodeu. O problema foram essas porras dessas mixtapes que repercutiram tanto. Quero fazer o disco, agora já tô fazendo.
PAS: É a mesma questão da Gaby Amarantos, cadê o primeiro disco de vocês?
E: É, vai sair, agora vai. Tô colocando os pingos nos is, tô me organizando pra isso. Tô fazendo um filme, vai ter um filme que vai ser a história do Planet Hemp, “Meu Tempo É Agora”, e eu vou fazer o Skunk. Quando voltar dessa parada vou me internar uns tempos pra fazer o disco.
PAS: Pronto, vai virar ator!
E: Ah, vou, cara. Já sou todo esquisito mesmo (ri). Já tô com as ideias do disco na cabeça. O problema é achar as pessoas certas pra fazer essas ideias virar música. Mas creio que em 2012 ainda sai, tô correndo pra isso aí. Fui em Belém, fui tratado com maior respeito pela rapa do tecnobrega. A rapaziada do funk me respeita, os caras me sampleiam, acho foda, fico feliz demais. Na cabeça de várias pessoas querem fazer parecer que o rap que eu faço não chega no gueto, então quando um artista do funk me sampleia é muito foda. O rap tem essa postura mais sisuda, mas os caras do funk todos me conhecem. Chega lindo nos guetos, tá ligado?
PAS: Rap do Emicida nem é tão sisudo.
É, cara, só não tenho a cara de mau.
(Fotos de Ênio Cesar/Divulgação; foto em destaque FDE)
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