“É a nossa floresta, somos todos um só povo, o povo da Amazônia”, expõe do alto do palco o carismático reggaeman paraense Juca Culatra. Estamos, desta vez, em Manaus, no estado do Amazonas, que é ao mesmo tempo muito longe e muito perto da Belém de Juca Culatra.

O festival Até o Tucupi acontece no bairro periférico de Jorge Teixeira, a 18 quilômetros do histórico e central Teatro Amazonas. As distâncias são reais, e também simbólicas. Os sentimentos que separam o centro e a periferia de Manaus são equivalentes à floresta que separa Manaus de Belém e ao Brasil interior que separa o Brasil do norte do Brasil.

As distâncias são colossais, mas estão diminuindo perceptivelmente.

Estou na periferia de Manaus, desta vez a convite do Coletivo Difusão, coligado ao sistema Fora do Eixo, que circunda o Brasil empenhado em desparafusar as engrenagens do atualmente enferrujado eixo cultural Rio-São Paulo. O Brasil não é só São Paulo e Rio, berram o Difusão e outros muitos coletivos espalhados país adentro. Aqui em Manaus, são 22 bandas se apresentando em dois dias de programação, 15 delas autóctones, amazonenses, manauaras.

A borbulhante Belém não fica muito longe, mas a cena musical de Manaus ainda não parece ter adquirido a autonomia, a identidade e o profissionalismo da vizinha. A autoconfiança acumulada até aqui não basta para descolar as bandas de referências onipresentes, como a do grupo carioca mestiço O Rappa, ou difusas, como a do rock britânico depressivo da banda oitentista Joy Division, extinta há 31 anos.

Rasgos identitários aparecem aqui e ali, como nos seguintes versos da dupla de rap Ritmo e Poesia: “Eu tenho orgulho daqui/ foi aqui que eu cresci/ comedor de jaraqui/ você vai ter que engolir”. Jaraqui é um peixe local bastante apreciado pelos manauaras, as composições do Ritmo e Poesia variam entre raps religiosos e “Ame a Zona”. O discurso de reencontro é raro, e significativamente ocorre de modo mais direto no rap negro-pardo-índio que no rock índio-pardo-branco.

Aparece timidamente na banda local Alaídenegão, que cita influências “do brega ao rock, do samba ao carimbó” e produz um som animado e alegre, que faz pensar em Jorge Ben, no Caribe e em Carlos Santana, em contraste com o astal soturno cultivado pela maioria das bandas mais roqueiras.

Outro grupo interessado nos grooves mestiços amazônicos é a Beradelia, que vem de Rondônia. Os rapazes falam de beradeiros (algo como matutos, camponeses, periféricos, segundo o dicionário) e de cabocladas (agrupamentos de caboclos, idem), do “Descobrimento do Eldorado”, de ritmo e poesia, de percussão artesanal, de um hard surf rock com a prancha deitada no rio Madeira. “Acende uma vela pro caboclo que deixou de sonhar”, acerta na mosca uma das letras.

As identidades híbridas do Até o Tucupi extravasam para a plateia, nas figuras, por exemplo, dos garotos de cabelos moicanos, que fazem lembrar o jogador de futebol Neymar, mas estão tingidos de cores vibrantes, tipo urucum, tipo tribo indígena pronta para uma declaração de paz. Este não é um palco para o Brasil que finge não ter ainda descoberto quão camufladamente indígenas continuamos sendo, 511 anos depois de Cabral.

As distâncias ainda são grandes, proibitivas, mas é óbvio que os ventos não estão parados. Estamos na periferia de Manaus, mas também estão aqui em Jorge Teixeira roqueiros do centro de Manaus, que venceram a distância e o medo da periferia e das beiradas para chegar até ali.

Estamos em Manaus, mas uma trupe belenense está aqui se apresentando (Felipe Cordeiro e Aíla, além de Juca Culatra e a incrível banda que o acompanha, Cristal Reggae, corruptela marota de Trenchtown Reggae, ponte aérea Jamaica-Belém-Manaus).

Estamos no Norte, mas alguns gatos pingados do Nordeste, do Centro-Oeste, do Sudeste e do Sul nos misturamos à paisagem cabocla, mestiça, misturada. O Brasil nunca para de descobrir o Brasil – e ainda estamos só no começo.

* Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil

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