(Texto originalmente publicado na revista “Caros Amigos” 171, de junho de 2011.)

 

Lá se foram 40 anos desde que o cantor Wilson Simonal foi pela primeira vez acusado de ser um “dedo-duro”, um colaborador da ditadura militar plantado na frente avançada da música popular brasileira. Ele permanece sendo o incômodo bode na sala da história heroica da MPB de seu tempo, mesmo depois do advento de trabalhos que insinuaram linhas possíveis de inocentação, como a biografia Nem Vem Que Não Tem – A Vida e o Veneno de Wilson Simonal (Globo, 2009), de Ricardo Alexandre, e o documentário cinematográfico Simonal – Ninguém Sabe o Duro Que Dei (do mesmo ano), codirigido por Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal.

Em 2011, um novo livro chega ao mercado editorial propondo uma nova reviravolta no caso mais perturbador da história da MPB. É o ensaio Simonal – Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga (Record), escrito pelo historiador Gustavo Alves Alonso Ferreira. Não se trata de adicionar grandes novidades à trama intrincada que levou o cantor carioca partir da fama absoluta, em 1971, para o completo ostracismo, poucos minutos depois.

Menos que isso, Gustavo Alonso estranha os esforços recentes por recuperar a imagem de Simonal por intermédio da negaçäo de suas responsabilidades e o trata, na contramão dessa tendência, como responsável por seus próprios atos (ou como “culpado”, como gostariam de rotular os fantasmas da família, da tradição e da propriedade).

O historiador empurra a história adiante, se esforçando antes por livrar Simonal (ou qualquer outro personagem) do papel inglório do bode expiatório. A defesa que faz é incômoda tanto à direita quanto à esquerda, justamente porque agarra os calcanhares da evidência também incômoda de que Simonal caiu em desgraça junto à esquerda que lutava contra a ditadura militar, mas, identicamente, junto à direita para a qual o cantor trabalharia como cúmplice delator.

Gustavo argumenta que não foi Wilson Simonal, mas antes a própria sociedade brasileira em sua maioria, quem apoiou, legitimou e sustentou a ditadura militar de 1964. “Como punir toda uma sociedade por se engajar numa ditadura?”, pergunta. “Condenar os chefões do Terceiro Reich à pena de morte foi a forma encontrada pelos vencedores de purgar o pecado alemão de ter mordido a maçã nazista”, exemplifica, dando ênfase à tonalidade católica dos termos “purgar” e “pecado”. “O consenso em torno da imagem traidora de Wilson Simonal purga a sociedade brasileira, e especialmente os artistas de música popular, de suas relações com o regime”, traz o exemplo para perto de Simonal, da MPB e do Brasil.

Eis o ovo da serpente cutucado pelo historiador. Esmiuçando inúmeros exemplos, Gustavo dá margem à compreensão de que, numa sociedade muito mais complexa que o bangue-bangue hollywoodiano maniqueísta que divide o mundo em “bons” e “maus”, quem lutou contra a ditadura pode ter igualmente colaborado com ela, e vice-versa. Quem sofre especialmente nas mãos do autor é Chico Buarque, herói máximo das esquerdas dos anos 70 e figura que, afinal, acumulou presígio, fama e fortuna à custa da luta simbólica diuturna contra os mandos e desmandos dos generais instalados em Brasília.

Tampouco a tropicália, vertente oposta à de artistas como Chico e Elis Regina, escapa das farpas do autor. Ele elabora uma análise ousada que coloca a “pilantragem” de Simonal como vanguarda estética de seu tempo, logo capturada, retrabalhada, encorpada e ensombrecida pelos tropicalistas. “Simonal ‘dedo-duro’ ainda é um mito intocado pelos iconoclastas tropicalistas. Nunca interessou a estes repensar a imagem do cantor, pois isso seria afirmar que havia outra proposta estética modernizadora no cenário nacional com uma linha bem parecida”, ele afirma.

Segundo essa ótica bastante plausível, as décadas pós-ditadura seriam de reconstrução contínua da memória das décadas “heroicas”, de modo a sempre readequar o passado sob prisma binário, bipolar, dicotômico, maniqueísta. “Não deixa de ser curioso que a classe média alta e seus jornais se sintam motivados a louvar heróis antiditatoriais”, Gustavo ironiza. “Não custa lembrar que essas mesmas classes e jornais cariocas apoiaram largamente o golpe de 1964. E 40 anos depois eles se colocam do lado dos heróis da resistência sem culpa alguma. Para além da hipocrisia de alguns, a maioria se vê levada pela maré da memória que transforma tudo e todos em resistentes ‘desde a infância’.”

O propósito de dividir o Brasil em dois compartimentos estanques – um heroico, que combateu a ditadura, e outro desprezível, que a alicerçou – resulta, para o historiador, numa visão infantilizadora do povo e do próprio país. “Esse tipo de discurso banalizador encobre que a sociedade apoiou, desejou o regime e colaborou com ele”, avança. “Essa visão ao mesmo tempo vitimizadora e redentora das esquerdas não explica por que a ditadura se sustentou por tanto tempo.”

O tabuleiro de xadrez que Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga expõe é cínico, talvez farsesco, em dupla face. Do lado esquerdo, em especial nos círculos da cultura, todo e qualquer personagem se constrói (e/ou reconstrói) como opositor intransigente do regime instalado, desde no mínimo 31 de março de 1964. Do lado direito, desapareceram nas sombras (quase) todos os entusiastas do arbítrio, da repressão, da tortura. No campo cultural resta, circunscrito e solitário numa desarumada sala de jantar, o bode expiatório Wilson Simonal. Ainda hoje, onze anos após sua morte.

Tendo alguém como o “rei da pilantragem” autossabotador para culpabilizar silenciosamente, pode-se estabelecer (in)conveniente cortina de silêncio e fumaça por sobre inúmeros outros colaboradores ferrenhos do regime, entre eles empresários, banqueiros, magnatas das comunicações, artistas, donas-de-casa, cidadãos anônimos infantilizados pelo maniqueísmo como “apolíticos”.

Curiosamente, essa espécie de silêncio se esparrama inclusive por cima de um trabalho que gostaria de desfazer equívocos e desmistificar monolitos de convicção que rodeiam história tão tortuosa – ou você já havia ouvido falar em algum outro lugar sobre esse perturbador redesenho histórico proposto em livro por Gustavo Alonso?

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