Francis Hime aos 6 anos tocando seu Steinway S Baby

Numa manhã de agosto de 1945, o caminhão descarregou o piano Steinway modelo S no alpendre da casa da rua Baronesa de Poconé, 100, nas imediações da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio. Quando o miúdo Francis viu o instrumento ali, demorou a acreditar: então era de verdade o presente que lhe prometera o avô, pianista diletante cujo nome o batizava? E o menino, então com 6 anos, não se cabia de contentamento.

Francis passou então a estudar piano clássico em casa, embora não tivesse grande entusiasmo pela disciplina das aulas. “Enquanto estudava as escalas e os arpejos, ficava cantando baixinho as marchinhas de Carnaval que eu adorava. Lá embaixo, minha mãe escutava o piano e achava que eu estava praticando”.

O piano Steinway Modelo S Baby mede um metro e meio apenas, é o menor dos grandes pianos do célebre fabricante nova-iorquino, e foi lançado em 1939, mesmo ano em que nasceu o jovem pianista carioca. Quando Francis tinha 8 anos, seus pais se separaram, mas a guarda definitiva do piano seguiu sendo do menino.

Somente em 1955 haveria a primeira separação entre o pianista da Lagoa e seu instrumento: Francis embarcou para a Europa, para estudar em Lausanne, na Suíça, onde ficaria até 1959. Dez anos mais adiante, viveria outros 4 anos fora, nos Estados Unidos. Mas foi naquele piano que se estabeleceu a educação sentimental do rapaz que amava Dorival Caymmi, Noel Rosa e Pixinguinha, mas também tinha ouvido Mozart, Bach, Arthur Rubinstein e estudaria composição e orquestração com Lalo Schifrin e David Raksin. Nesse balanço entre erudito e popular, nasceria uma obra imensa.

A pintora Dalia Antonina, mãe do garoto Francis, estudara com Portinari e era grande amiga do diplomata Vinicius de Moraes, poeta e compositor. Quando Francis completou 16 anos, sua mãe recebeu Vinicius para um jantar e seu filho tocou Valsa de Eurídice ao piano para o visitante. Na época, estava estudando para tentar vestibular para Engenharia Civil, e o poetinha, encantado com sua performance, não aprovou a notícia. Chamou a mãe de Francis e a aconselhou: “Seu menino é músico, encaminhe ele para a música. Tire da cabeça dele essa ideia de engenharia”. O rapaz acabou se formando em Engenharia Civil pela UFRJ, mas nunca exerceu a profissão. “O germe da música já tinha me contaminado”, brincou.

Vinicius foi o parceiro em sua primeira composição, também desenvolvida ali no Steinway Baby: Sem Mais Adeus. Vinicius fez a letra da canção, gravada por Wanda Sá em 1964. Da parceria entre os dois, sempre à beira do Steinway, surgiram outros clássicos, como Anoiteceu, A dor a mais e Tereza sabe sambar. Tom Jobim nunca tocou no Steinway de Francis, mas dezenas de outros pincelaram suas teclas ou tiveram canções nascidas (ou arranjadas) no instrumento: Milton Nascimento, Gilberto Gil, Paulo César Pinheiro, Capinam, Elis Regina, Olivia Hime, Paulinho da Viola, Lenine, Joyce, Moraes Moreira, Georges Moustaki, Livingston & Evans, Sergio Bardotti, Gal Costa, Caetano, Clara Nunes, Toquinho, Elba Ramalho, Nana Caymmi, Vânia Bastos, Fafá de Belém, MPB-4, Simone, entre outros.

“Quase todas”, responde candidamente Francis à pergunta sobre quais de suas canções com famosos parceiros ele compôs em seu agora octogenário piano. Entre elas, as imortais Pivete, Trocando em Miúdos, Meu Caro Amigo, Passaredo, Pássara e Atrás da porta, de sua lendária parceria com Chico Buarque (foi diretor musical de quatro discos de Chico). “A gente sempre compunha na casa dele. Eu ao piano, ele com uma máquina de escrever do lado, na qual ficava batucando os versos das letras”.

Em suas andanças pelo País, fazendo shows, Francis Hime conta que muitas vezes se depara com pianos que não estão em boas condições. No interior da Bahia, certa vez, havia um piano à sua espera que estava impraticável. A produção conseguiu trazer um novo à cidade, mas quando chegou também não estava em sua melhor forma. “Toquei duas músicas e parei. Não dava”.

Hoje em dia, Francis toca com mais frequência o piano elétrico Kurzweil que possui em casa. O Steinway da Lagoa não é mais o centro do universo. Após 8 décadas, foi a reparos apenas umas duas ou três vezes. “Está pedindo outro restauro, mas não sei se vou fazer…”, confidencia o artista. A casa materna da Lagoa, que era vizinha da de Ziraldo (com quem Francis Hime compôs uma única canção, Infinita), não existe mais. Hoje pontifica um prédio no seu lugar.

Aos 86 anos, casado há quase 60 anos com Olivia, Francis Hime está em plena atividade. Sofreu uma queda recente no palco (a terceira em três momentos distintos da carreira, segundo contou na Estação Motiva Cultural, há uma semana) e fraturou o fêmur e o braço. Está fazendo fisioterapia e se sente praticamente recuperado para mais uma jornada ao piano. No mês de janeiro de 2026, no Teatro Ipanema, no Rio (R. Prudente de Morais, 824), todas as terças, será possível vê-lo acompanhado de um trio (Jorge Helder, contrabaixo; Hugo Pilger, cello; Diego Zangado, bateria). Francis receberá convidados especiais nessas apresentações: Ana Costa, Quarteto Maogani e Zélia Duncan. O piano da Lagoa, 80 anos, e que hoje vive no Jardim Botânico, não irá para Ipanema por questões logísticas, evidentemente, mas sua obra comparecerá em peso e maravilhamento.

E aí

Ela cisma de voltar

Sorri

Quase pra te provocar

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