8 bandas e uma degustação do Paraíso musical

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O cantor Otto e o guitarrista Lúcio Maia durante shows no Paraíso do Rock, neste último final de semana, no Paraná

Durante os últimos 60 anos, desde a Jovem Guarda, a música jovem brasileira cortejou fortemente a música jovem internacional. Sempre com resultados muito bons, híbridos com a soul music negra norte americana, como fizeram Tim Maia e Tony & Frankye; com a viagem frenética (e inaugural) dos Beatles, como fizeram Os Incríveis, Jet Black’s, The Jordans, Blue Caps; com o rock progressivo, viagem escolhida pela Patrulha do Espaço e Vímana, entre outras; o glam, com Edy Star, Os Mamíferos e outras aventuras; com o punk rock, com Inocentes, Plebe Rude, Aborto Elétrico e centenas de outros. Mas desde a Tropicália, Secos & Molhados, Mutantes, Ave Sangria, Chico Science e diversos visionários, a música jovem brasileira passou a procurar com mais afinco dentro de si mesma as respostas para o futuro.

E foi assim que, num insólito festival fora do eixo, a 730 km de São Paulo e a 1.1170 km do Rio de Janeiro, em Paraíso do Norte (Paraná), nos últimos dias 17 e 18, sexta e sábado, 8 bandas de 8 procedências diferentes (duas delas de países vizinhos) mostraram como está o cenário hoje. E o resultado é uma lufada de ar fresco na mente do velho (e alquebrado) amante da música jovem de todos os tempos: o Brasil atual consolidou-se como mainstream de si mesmo, sem passar necessariamente por nenhuma ruptura brusca, nenhuma negação xenofóbica, nenhum ensimesmamento. Para tentar explicar essa tese com clareza didática (e sem chatear demasiadamente o leitor), passamos aqui a descrever como foi cada show no Paraíso do Rock 2025, festival que está em sua 14ª edição reunindo a mais vibrante música do Mercosul – onde bandas de todos os quadrantes do Brasil e “local heroes” (artistas paranaenses) tocam lado a lado com grupos da Argentina, Uruguai e Paraguai, além de fazer churrascos juntos, tomar cerveja e trocar discos e flâmulas de bairros, rótulos de vinho e torcidas de futebol. A resenha aqui será pela ordem de entrada no palco:

GUGLIELMI BLUES BAND – Liderada pelo fenômeno capilar Thiago Gugliemi, guitarrista de Paranavaí (PR), um neto desgarrado de Jimi Hendrix que aprendeu tudo que havia para aprender sobre o virtuosismo do caboclo de Seattle (o que não dá para aprender mesmo é a parte do Sobrenatural de Almeida), mas que abriu o conceito de vibração sônica de Hendrix em direção a uma festa de improviso tribal, uma jam dionisíaca, mais engajatória do que mântrica. Com a sorte de contar com o acaso (a entrada de uma cantora da terra, a visceral Núbia Rafaela, escalada de última hora para cobrir uma ausência no grupo), a blues band fez um dos melhores esquenta de festival na jornada.

COMBO CORDEIRO – Aqui começa a subversão total. O veterano guitarrista Manoel Cordeiro, 69 anos, passou décadas na sombra na música do Pará, gravando em estúdio discos de astros do brega, da lambada e de outras aventuras. Sem nome como solista, chegou uma hora em que cogitou aposentar-se e ir morar em Macapá. Mas seu único filho, o também guitarrista Felipe Cordeiro, achou que era um desperdício e o recolocou na música, agora no palco, primeiramente como solista-adjunto de seu show. A história que se segue é conhecida: mestre da guitarrada já reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial do Pará, Manoel Cordeiro passou a provocar uma romaria até Belém para ouvi-lo tocar. Até o franco-espanhol Manu Chao capitulou. Eu mesmo tentei assistir duas vezes em Belém, e não consegui passar da porta. No Paraíso do Rock, não apenas dava para entrar de graça no show, como até bater um papo com o notável Manoel e com Felipe. E ouvir em minúcias um show que renova o sangue da música brasileira em direção a um novo e irresistível território. A guitarrada reinventou o instrumento, ao mesmo tempo que libertou do mimetismo internacional – Felipe e Manoel Cordeiro não castigam guitarras, eles fazem cafuné nas cordas, e seu livre trânsito pelas aparelhagens periféricas os torna donos da mais moderna ponte com uma sonoridade ecumênica. Não têm reverência para com heróis da guitarra, mas pela comunicação direta com o público – entre pai e filho, não existe guitarra-base nem hierarquia, é a democracia plena. Nada fica de pé.

LUCHO AL ATTAQUE – Levando adiante a promessa de vida eterna do rock’n’roll (e seu salvo-conduto de individualidade, potência, liberdade), o baixista e vocalista argentino Luciano Scaglione carrega a tiracolo a mística de uma banda gigantesca, o Attaque 77, que ele integrou a partir de 1992 e que debandou há alguns anos. O nome Attaque não é retórico: trata-se de uma megablitz de guitarras e um vocal de serra elétrica sem tréguas, que carrega o DNA da tradição de New York Dolls (da qual o guitarrista Gori parece ter escapulido em 1977) e Ramones nas garagens da América Latina há mais de 30 anos. Mas não só: ao tocar Fábrica, do Legião Urbana, canção de 1986 adotada como hino pelo Attaque 77, Lucho ilustrou o caminho de mão dupla entre as diversas formas de expropriação política e humana que afligem as terras do Cone Sul (e os bunkers de resistência). “Gracias, Renato!”, reverenciou Lucho. Agressivo, pero sin perder la ternura jamás, Lucho Al Attaque é uma brigada antifa que nunca perde a concentração no palco, emendando uma canção na outra (hits do Attaque, como El Cielo Pode Esperar, e próprias, como Porque Te Vas?), sem firulas nem pausas. A situação da guerra cultural na Argentina atual, movida por Javier Milei, é uma preocupação que transparece nas declarações e postura do grupo. “Sempre atacaram os artistas. León Gieco teve de sair do País. Mercedes Sosa também. Esse é um ataque mais frio, mais ridículo”, diz Lucho. Firmeza e serenidade. Não se poderia esperar nada diferente de um guitarrista que mantém uma “venue” chamada Strummer Bar no coração de Palermo.

THE MÖNIC – Quando parecia que as bandas de meninos tinham exaurido a plateia, já na madrugada de sábado, o jorro gutural do heavy metal e as vocalizações formidáveis de duas cantoras (Dani Buarque e Alessandra Labelle) reavivaram a brasa do negócio com o grupo The Mönic. A atitude das garotas é de demolição de barreiras: no meio do show, Dani içou um guitarrista da roda de pogo na frente da plateia, ensinou os acordes da canção em aula The Flash e o colocou para tocar a guitarra em seu lugar, enquanto se juntou ao público com o microfone. Não é apenas o “faça você mesmo” do punk, mas uma nova onda: façamos juntos, não há diferença entre vocês e a gente.

BÚFALOS D’ÁGUA – Na abertura da noite de sábado, um saxofone ladeado por baixo e guitarra liderou um delicioso cortejo de surf music na noite do Paraíso. Era a já veterana banda londrinense Búfalos D’Água, nome extraído de uma sessão da tarde com Fred Flintstone. Com um som de trilha sonora de picardia, entre O Homem do Braço de Ouro e Burt Bacharach, Barra Limpa de Erasmo e Man or Astro-man?, o grupo domina tanto os standards do gênero quanto se arrisca em composições mais complexas, como Cerveja, de sua autoria. Nem sempre o festival foi feliz escalando grupos locais na programação, mas parece que essa definição de “local” já foi dinamitada pela nova realidade de disseminação das informações e das novas tecnologias de comunicação. Búfalos D’Água se daria bem até na Califórnia.

LÚCIO MAIA – Do heavy metal ao brega pernambucano, de Robertinho do Recife a Armandinho, do manguebeat ao Soulfly: a guitarra de Lúcio Maia é praticamente um compêndio de gêneros e estilos, e nesse estuário de absorções ele criou uma linguagem única. Isso é o que o coloca hoje, provavelmente, na posição de mais impressionante guitarrista brasileiro – possivelmente, também do mundo. Fazendo um show instrumental na sequência de outro show instrumental, parecia que Lúcio teria dificuldades para capturar a atenção da plateia. Ledo engano. Ao cantar a canção-oração de Jorge Benjor, Jorge da Capadócia, e logo a seguir extraviar em um solo francamente jazzístico, circular, Lúcio denuncia a intenção de radicalizar cada vez mais fundo a digressão sonora, a busca da música que se basta – apartada das fórmulas de êxito ou contexto. Brilhante.

BUITRES – Com a plateia coalhada de motoqueiros com as jaquetas dos Abutres e fãs que vieram desde o Urugai somente para vê-los, a lenda do punk rock Los Buitres, de Montevidéu, não decepcionou ninguém. Veteranos da cena roqueira, desdobramento da pioneira banda El Estómago, Buitres é a própria expressão da ideia de irmandade. O grupo uruguaio instalou uma comunidade instantânea na pequena Paraíso do Norte (que, na origem, um dia planejaram batizar de Inferno Verde).

OTTO – “Música é uma forma de resistência”, sentenciou o pernambucano Otto no Paraíso do Rock. “Por isso é tão importante esse festival”. A emancipação do cidadão se dá pela via da cultura, afirmou, e é a diversidade que tem de se deslocar pelo País, saindo dos seus centros de atração tradicionais. O show de encerramento de um festival, por convenção, é aquele do qual se espera mais. Mas qual show Otto levaria para seu set dessa vez? Ao longo de uma carreira longa e feita de mudanças de rumo, Otto poderia ter feito uma dúzia de shows diferentes, mas ele cuidou de alertar a plateia que, até certa altura, privilegiaria o disco Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos – que ele celebra em uma turnê comemorativa de 15 anos de lançamento -, mas depois seria “ladeira abaixo”. Ao cantar Carinhosa, explicou que a composição tratava do seu estado de espírito face ao avanço do fascismo nos anos angustiantes de Bolsonaro. O público dançou de se acabar com a Ciranda de Maluco e berrou os versos de Dias de Janeiro a plenos pulmões. Era insólito ver a contraposição dos casacos de couro cantando os versos de puro sincretismo cultural de Janaína, cujo cenário é a festa de 2 de fevereiro para Iemanjá, no Rio Vermelho, em Salvador. Showman de si mesmo, Otto lida com tato com seu público, mas sem subserviência. “Essa eu não trouxe, mas vou tocar uma que você vai adorar”, respondeu, a um fã que pedia música. Ao final, com a costumeira Da Lama ao Caos, aríete de Chico Science e a Nação Zumbi (banda que ele integrou), golpeando a percussão junto ao baterista, Otto concluiu sua lavagem do Senhor do Bonfim portátil. Terminava feliz, esfregando seu par de tênis azuis e brancos um contra o outro na mureta atrás do palco, esperando uma van que o levaria para outra jornada, outro festival. O bacana é ver que a música brasileira tem astros e repertórios para seguir cativando em qualquer recanto do País. “Eu me desorganizando posso me organizar”. E essa música já não tem dívida alguma para com aquela que reinou antes.

O repórter viajou a convite do Paraíso do Rock, festival no qual lançou o livro "A culpa é do Lou Reed" (Reformatório, 2024)
A banda uruguaia Los Buitres

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