Com Caetano no gargarejo, Moreno Veloso celebra julgamento do STF no Blue Note

0
132
O cantor e compositor Moreno Veloso em show na noite de sexta, 12, no Blue Note, em São Paulo (foto Nana Tucci)

Foi bonita a festa, pá! Com casa lotada para dois shows em uma única noite no Blue Note, em São Paulo, os cantores Moreno Veloso e Paula Morelenbaum apresentaram nesta sexta-feira, 12, no avarandado da Avenida Paulista, o show Só Caetano, na qual o primogênito (Moreno) canta o repertório do pai, Caetano Veloso. Para surpresa da plateia, o próprio compositor baiano apareceu todo de branco no segundo set do show, sentou-se na primeira fila e aplaudiu e se emocionou com o concerto. Moreno e Paula estavam acompanhados do trio do violoncelista Jaques Morelenbaum (Lula Galvão no violão e Thomas Harres na bateria). O show foi como uma celebração pelo resultado do julgamento inédito do STF que condenou, na quinta-feira, 11, o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 7 réus (dois generais e um almirante entre eles) por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Bolsonaro, favorável à ditadura, à tortura e ex-capitão do Exército, pegou 27 anos de cadeia.

Sem citar o nome dos condenados nem do tribunal nenhuma vez, Paula e Moreno foram estrepitosamente aplaudidos quando festejaram o resultado do julgamento para o futuro da democracia brasileira. “Lavou a alma”, disse Paula. “Agora tudo vai melhorar”, afirmou Moreno, ao que uma pessoa da plateia gritou: “Já melhorou!”. E Moreno: “Concordo”. Caetano Veloso, que foi preso e expatriado pela ditadura de 1964, aplaudia entusiasticamente as manifestações do filho e da amiga, enquanto o público erguia brindes no ar. Os próprios shows de Caetano pelo País têm se caracterizado por manifestações amplas do público e do artista gritando “Sem Anistia!” (uma forma de rechaçar as tentativas de golpe parlamentar que buscam impunidade para criminosos da democracia).

Moreno Veloso e Paula Morelenbaum escolheram para cantar, entre as mais de 600 composições de Caetano, um recorte que privilegia os anos 1960 e 1970, com duas cirúrgicas exceções: o rock Abraçaço, de 2012, e Noites de Cristal (do disco Meu Coco, de 2021). O cello de Jaques Morelenbaum regeu a abertura do show com uma versão instrumental da bossa nova Coração Vagabundo, de 1967. Em seguida, Paula entrou cantando, da mesma década, Não Identificado (1969) e A Rã (1970), de Caetano e João Donato. Ela declarou nervosismo em se ver cantando bem defronte do autor (Caetano postou-se exatamente na mesa à sua frente). Mas aí a artista citou uma frase de Vinicius de Moraes quando o poeta se pegava em situação tensa: “Encaremos!”

A inesperada presença de Caetano possibilitou que Moreno ilustrasse cada canção com a história de sua gênese, fazendo uso do humor e da intimidade com o compositor. “Eu sempre achei que ele tivesse feito essa canção pra mim…”, brincou o artista, antes de cantar Menino do Rio. “Eu estava enganado. Não podia ser pra mim mesmo, eu sou baiano, não sou do Rio”. Depois, contou que também se iludiu como “muso” provável de Leãozinho (1977). “Mas foi para Dadi“, reagiu, com um muxoxo. Porém, antes de cantar Ela e Eu, de 1979, o cantor foi assertivo: “Essa eu tenho certeza que ele compôs para minha mãe”. Moreno é filho do primeiro casamento de Caetano com Dedé Veloso. Emoldurada por um solo de violoncelo comovidíssimo de Jaques Morelenbaum, a música parece fazer sentido pela primeira vez. Para voltar aos brindes, Moreno então, tocando o prato na tradição do Recôncavo, fez graça com a risada desbragada de sua tia Irene, irmã caçula de Caetano, inspiradora da canção homônima de 1969. “Cuidado: quem sabe ela não esteja por aqui e apareça por aí com a sua risada”.

Permeado pelo bom-humor e por interpretações vigorosas de Paula Morelenbaum, o show de Moreno apresenta um filho completamente leve, agora livre do fardo de ser herdeiro de um mito da música (Caetano acaba de fazer 83 anos). Em vez de sombra, o legado de Caetano acaba passando harmoniosamente ao filho, que o trata não apenas como herdeiro, mas também como curador, examinador de banca, fã. Ele divide o show com Paula, e ambos se afinam vocalmente em algumas canções, como Oração ao Tempo e Gente, dois pontos altos do concerto. Quando cantou os versos “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”, Moreno foi estrepitosamente aplaudido, e grifou com entusiasmo redobrado os nomes que a canção homenageia:

Rodrigo, Roberto, Caetano
Moreno, Francisco, Gilberto, João

Marina, Bethânia
Renata, Dolores
Suzana, Leilinha, Dedé

Maurício, Lucila, Gildásio
Ivonete, Agripino, Gracinha, Zezé

Para fechar a noite (e seguir com a comemoração democrática, que vai durar muito ainda), com Caetano se juntando ao público no pedido de “mais um, mais um!”, Moreno e Paula fizeram um bloco de Carnaval com as canções Atrás do Trio Elétrico (1969), A Filha da Chiquita Bacana (1975), Gente (1977) e finalmente Tropicália, dificílima de cantar, acordes dissonantes por mil alto-falantes. Ao final do show, caminhando resoluto até o elevador do Conjunto Nacional para ir à garagem, Caetano sorria satisfeito de um jeito que continha mais do que orgulho de pai realizado: tinha acabado de presenciar um tributo à altura de uma obra que está solta, viva, autônoma. E que dá conta da demanda da liberdade.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome