
Quando Angela Ro Ro trouxe à luz seu primeiro trabalho musical gravado, em 1979, o Brasil conheceu uma intérprete iluminada, e um pouco mais que isso. Por trás da voz grave, rouca e trôpega, surgia uma coleção de 12 canções assinadas de punho próprio, entre elas o tema-síntese de sua história na música, “Amor, Meu Grande Amor” (assinado em dupla com outra mulher, Ana Terra). Dito assim parece pouca coisa, mas o belíssimo Angela Ro Ro era um disco 100% concebido por uma mulher, e isso não era coisa que se fizesse em 1979, salvo raras exceções.
Rita Lee havia atravessado aquela década cantando e compondo e tocando e exaltando Isadora Duncan, Luz Del Fuego, Elvira Pagã e outras “bruxas amarelas”. Joyce Moreno havia tentado compor no feminino em 1968, ainda muito jovem, mas amargara uma década apenas como intérprete, até o advento do álbum autoral (de título auto-explicativo) Feminina, em 1980. Egressas da era dos festivais, Luli & Lucina esperaram uma década para se lançarem como dupla de delicadas e introspectivas cantoras-compositoras num magistral LP independente e underground, em 1979.
Outra estreante de 1979, Marina Lima, ajudou a modificar o curso da história participando do especial global Mulher 80 – ali, cantou “Não Há Cabeça”, uma das 12 canções do álbum de estreia de Ro Ro, com a própria ao piano. O primeiro LP de Marina, Simples Como Fogo (1979), começava por uma faixa-manifesto, “Solidão“, regravação roqueira, 21 anos mais tarde, de uma obra-prima de outra de nossas solitárias cantoras-compositoras, Dolores Duran. Na maior parte do tempo, Marina se ancorava então nas letras de seu irmão, o poeta Antonio Cícero.
Ro Ro, na contramão, cuidava sozinha de letra e melodia, apelando aqui e ali para parceiros poucos e erráticos. Mesmo os arranjos, pilotados por um homem – o virtuosíssimo compositor e pianista Antonio Adolfo, com quem Angela trabalharia ininterruptamente em seis álbuns até 1985 –, eram co-assinados por ela. Havia ainda um diferencial em relação às companheiras de ofício, de Chiquinha Gonzaga, Dolores e Maysa a Rita Lee, Joyce e Marina: Angela exibia explicitamente sua homossexualidade, fosse no comportamento de palco ou fora dele, fosse nas letras de blues como “Tola Foi Você”, “Mares da Espanha”, “Balada da Arrasada” (1979), “Bárbara” (uma releitura da canção originalmente lésbica de Chico Buarque), “Preciso Tanto!!!” (1980), “Coitadinha, Bem-Feito!” (1981), “Camisa-de-Força” (1982), “Gata, Moleque, Ninfa”, “Isso É para a Dor” (1984), “Laura Regina Hilária” (1985, “Laura não assume o nome/ Laura tá fugindo dos homens/ Laura tá fugindo de mim”), “O Cinema, a Princesa e o Mar” e “Fila de Ex-Mulher” (2000), entre muitas.

Angela se assemelhava num ponto bem específico às precursoras Dolores e Maysa, seguindo uma tendência que prossegue até os dias atuais com, por exemplo, Alice Caymmi: gostava de samba-canção e compunha ancorada na ideologia da fossa, do lamento amoroso, da dor de cotovelo. São várias as composições dos princípios de Angela nessa clave: “Me Acalmo Danando” (1979), “Renúncia” (1980), a linda, lírica e espanholada “Isso É para a Dor” (1984), “Karma Secular” (que compôs em 1986 para a veterana Lana Bittencourt)…
Outras composições na chave da fossa adicionavam algo mais em relação aos típicos “ninguém me ama, ninguém me quer” e “meu mundo caiu” do passado: continham, dentro da lamúria, uma irreverência, um deboche, um inédito autodeboche. Assim eram “Balada da Arrasada” (1979), “Tango da Bronquite” (1980), “Fraca e Abusada”, “Coitadinha, Bem-Feito!” (1981), “Camisa-de-Força” (1982), “Isca de Piranha”, “Noia” (1985) etc (a irreverência encontrou ponto fora da curva quando Angela deu interpretação antológica ao tema não-autoral da jacaroa Cuca, no especial infantil global Pirlimpimpim, em 1982).
“Sou uma moça sem recato, desacato a autoridade e me dou mal”, ela fazia o resumo da ópera já em 1979, em “Agito e Uso”. “Pra onde quer que eu olhe tem pôster de você”, declarava em “Tango da Bronquite” (1980), acrescentando um polvilho de humor à dor de cotovelo. Nessas canções de escárnio e maldizer, era como se Angela ainda pertencesse às prisões femininas do samba, do blues e do samba-canção, mas já se debatesse para se libertar das camisas-de-força misógina, homofóbica, feminicida.
O grande escândalo sou eu, aqui, só

Não foi um caminho tranquilo ou linear. Muito rapidamente Angela Ro Ro teve de carregar fama de escandalosa e encrenqueira incontrolável, enquanto se tornava frequentadora involuntária de páginas policiais, mais que de cadernos culturais. Quem teve sensibilidade ouviu, no correr das décadas, o grito agudo de Ro Ro ao denunciar os abusos policiais que sofreu – provavelmente na reação violenta da “cura lésbica”, de que policiais e outros seres masculinos eram (são?) useiros e vezeiros. Não era só fazer 12 músicas, lançar um disco e ser feliz para sempre. Angela avisava o tempo todo que era (é?) barra pesada ser mulher, cantora, compositora, lésbica, afrontosa, livre, dona do próprio nariz – tudo isso junto reunido numa pessoa só, numa só mulher.
Angela Ro Ro foi adiante carimbando uma série espetacular de álbuns autorais, que tiveram de trombar (e capotar) com os preconceitos homofóbicos e misóginos, o militarismo no poder, o clube do bolinha das indústrias fonográfica e cultural, a sede de sangue da imprensa de porta de cadeia, a tradição, a família, a propriedade. Quem tem sensibilidade não sentirá dificuldades em conceder status de obras-primas brasileiras aos álbuns Angela Ro Ro, Só Nos Resta Viver (1980), Escândalo! (1981) e Simples Carinho (!982). Eles só não eram mais exuberantes que os preconceitos dos incomodados com a conquista de um lugar ao sol por uma pessoa como Angela Ro Ro. Contra esses todos, ela se reconhecia kamikaze, em “Came e Case” (1981). A muralha de isolamento se erguia ao seu redor, e ela caía nas armadilhas armadas para contê-la e marginalizá-la.
Em 1981, Caetano Veloso presenteou Ro Ro com a inédita, dramática e classuda “Escândalo!”, dando anteparo a uma tentativa de estilizar e institucionalizar aquilo que a parte mais conservadora do público tinha (tem?) como inadmissível: “Eu marquei demais, tô sabendo/ aprontei demais, só vendo/ mas agora faz um frio aqui/ (…) dou gargalhada, dou dentada/ na maçã da luxúria, pra quê,/ se ninguém tem dó/ ninguém entende nada/ o grande escândalo sou eu aqui, só”. O mote de fossa “ai, a solidão vai acabar comigo”, de Dolores Duran, ainda prevalecia, e Angela-Caetana bambeava indecisa entre “o inferno são os outros” e “o inferno sou eu mesma”.
Na linha de frente da MPB, para além de Caetano, Angela Ro Ro recebeu aval pouco e esporádico, não por coincidência concedido primeiro por outras mulheres. As passageiras Frenéticas gravaram “Agito e Uso” ainda em 1979, assim como o fez Maria Bethânia, iluminando a linda, triste e sanguínea “Gota de Sangue”, da mesma leva das 12 composições inaugurais, que a grande Cida Moreira também retomaria em 1981. Rosa Maria cantou “Isso É para a Dor” em 1984, a já citada Lana Bittencourt lançou “Karma Secular” em 1986, bem mais tarde até veteranas como Emilinha Borba, Angela Maria, Claudette Soares, Célia e Vanusa se renderam ao receituário rororiano.
Bethânia voltou à carga em 1983, com uma gravação espetacular da então inédita “Fogueira“, para variar uma canção de fossa (a versão de Ro Ro, no ano seguinte, também é matadora): “Por que sangrar o meu amor assim?”. A bordo da maldição que se erguia em torno da “encrenqueira”, a parceria feminina de canto e composição arrefeceu, embora Bethânia mantivesse “Fogueira” em seu repertório ao longo do tempo, inclusive gravando-a em dueto num álbum ao vivo de Ro Ro, Feliz da Vida! (2013).
Em 1980, Ney Matogrosso honrou a dissidência sexual-musical e regravou de uma vez só “Não Há Cabeça” e “Balada da Arrasada”. Em 1989, já bastante doente, Cazuza lançou uma parceria inédita com Angela, a perfurante “Cobaias de Deus”. É notória a anedota de que Angela não apreciou e rejeitou um blues irreverente de Cazuza e Frejat chamado “Malandragem”. Composto para ela para integrar o álbum Prova de Amor (1988), ficou inédito até 1994, quando se tornou pedra angular da discípula antenada Cássia Eller: “Quem sabe o príncipe virou um chato/ que vive dando no meu saco”.
Poucos se dedicaram a interpretar o cancioneiro de Ro Ro na fase de estiagem pós-episódios policiais: Pery Ribeiro (1981), Jessé (1984), Emílio Santiago (1989) e Leo Jaime (1993) inverteram a lógica machista e gravaram canções femininas de Angela. Em 1996, o Barão Vermelho de Frejat teve o condão de jogar holofote sobre Ro Ro, reintroduzindo a balada “Amor, Meu Grande Amor” nas paradas de sucesso. Mais tarde Ro Ro acabou gravando “Malandragem” (em duo com Frejat, em Feliz da Vida!, 2013), não sem boa dose de displicência nem sem antes ironizar a letra de Cazuza e/ou a interpretação de Cássia, como se pode ouvir antes de ela começar a cantar “A Mim e a Mais Ninguém” (1979) com Frejat no disco ao vivo de 2006.
A legitimação pop-rock conferida pela reverência do Barão Vermelho destravou em parte a maldição e permitiu que, a partir da virada de século, Angela Ro Ro fosse lembrada em regravações – geralmente underground – de Vânia Bastos, Ana Carolina, Renata Arruda, Márcia Short, Toni Platão, Leila Maria, Silvia Machete, Almério… Num ponto culminante da rororização das novas MPBs o tributo Coitadinha Bem Feito (2013), esquisitamente concentrado em vozes masculinas, congregou nomes como Otto, Lirinha, Lucas Santtana, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Adriano Cintra, Thiago Pethit, Gustavo Galo, Helio Flanders, Tatá Aeroplano…
Em seu próprio nicho, Angela deu a senha sobre quem eram seus pares na MPB, trazendo Alcione e Luiz Melodia para duetos rasgados num álbum ao vivo de 2006 (com Alcione, a “Joana Francesa” de Chico Buarque ficou dotada de inesperado tom homoerótico). Foram vários os encontros musicais com Alcione, inclusive no impagável programa de entrevistas que Angela apresentou entre 2004 e 2005 no Canal Brasil, o Escândalo. Ali, por sinal, despontaram outras afinidades musicais de Ro Ro, com participações de Leny Andrade, Alaíde Costa, Ney Matogrosso, Joyce, Lucina, Lô Borges, Fatima Guedes, Zé Rodrix, Miúcha, Cida Moreira e Arrigo Barnabé, entre tantos.
Meu mal é a birita, é a fossa, é o feminicídio
Angela Ro Ro incorporou os percalços com as drogas a seu cancioneiro, como consequências paliativas da vida na fossa, em temas satíricos como “Tango da Bronquite”, “Meu Mal É a Birita” (1980) e “Demais” (1982), esse último trazendo um Tom Jobim de 1959 para universo tipicamente rororiano: “Todos acham que eu falo demais/ e que ando bebendo demais/ que essa vida agitada não serve pra nada/ andar por aí bar em bar, bar em bar”.
No campo das interpretações de outros autores, caiu de boca no samba-canção de Nelson Gonçalves em “Fica Comigo Esta Noite” (em 1980), de Dorival Caymmi em “Você Não Sabe Amar” (em 1984) e dos contemporâneos Antonio Carlos & Jocafi em “Opus 2” (1984), uma continuação do clássico em samba joia “Você Abusou” (1970), ou na sublime peça pós-samba-canção pós-bossa-nova “Simples Carinho” (1982), de João Donato, que se tornaria um de seus maiores e mais duradouros sucessos. Nos 1990, Angela foi habituê dos quase sempre pálidos songbooks do produtor Almir Chediak, em releituras minimalistas de canções masculinas de Gilberto Gil, Caymmi, Vinicius de Moraes, Ary Barroso, Djavan, Braguinha, João Donato e Chico Buarque.
Seu compositor favorito, a julgar pelas regravações que fez, devia ser Chico, agraciado com releituras de “Bárbara” (1980), “Vida”, “De Qualquer Maneira” e “Joana Francesa” (1993), “Futuros Amantes” e “Cadê Você?” (1999) e “Gota d’Água” (2000). Não significava uma adesão acrítica à propalada sensibilidade feminina do compositor – faixa-título do LP de 1985, “Eu Desatino” parece fazer uma citação atualizada, malcomportada, vingativa e lésbica à velha “Ela Desatinou” (1968) de Chico: “Você bem sabe o que eu segurei (pepino)/ pra te amar o quanto eu te amei/ eu desatino só de me lembrar/ que eu dei bobeira e o tempo a passar/ passar vexame como eu passei/ atordoada eu me embriaguei/ agora estou de cara limpa e sóbria/ a sua pinta é bem difícil de engolir/ (…) Agora o saldo positivo é você sozinha/ e eu aqui com meu amor”.
Angela Ro Ro visitou compositoras com frequência menor – a última foi Rita Lee, em “Bandido Corazón“, gravado para uma série global em 2012, com excelente interpretação, mas sob arranjo paupérrimo. O caminho da autora também foi cravejado de espinhos: a partir do terceiro álbum, Escândalo!, sua participação como compositora se reduziu marcadamente, o que faz pensar em possível ingerência da gravadora PolyGram sobre o repertório. A artista rebateu gravando composições de outras mulheres: “Mistério“, “Na Cama” e “Vou Lá no Fundo”, de Naïla Skorpio e Sonia Burnier, em 1981, e “Nenhum Lugar”, de Sueli Costa, em 1984.
O contrato com a PolyGram foi encerrado em 1985, e a partir daí Angela seguiu rota fonográfica errática por selos menores e/ou independentes, sucessivamente Eldorado, Jam Music (Acertei no Milênio, de 2000, interrompeu uma ausência de 12 anos dos estúdios), Indie Records (que bancou o inédito Compasso em 2006), Discobertas, Biscoito Fino (onde lançou os derradeiros álbuns de inéditas, Feliz da Vida!, em 2013, e Selvagem, em 2017).
Obviamente, a compositora que melhor traduziu Ro Ro foi ela própria, com um importante acréscimo de prumo a partir de “Querem Nos Matar” (composta com o parceiro constante, mas breve Sérgio Bandeyra), que tem glacê ecológico, mas não deixa de parecer um protesto contra a violência misógina/homofóbica: “Querem nos matar/ mas eles não sabem/ que a nossa vontade é mesmo de amar”.
Angela volta à carga de modo bem mais explícito no disco de despedida da PolyGram, em “Mônica” (1985), na qual a fossa amorosa cede lugar a um potente libelo contra a “rotina” feminicida, muito antes de o termo “feminicídio” conseguir eco na voz corrente brasileira. “Morreu violentada porque quis/ saía, falava, dançava/ podia estar quieta e ser feliz/ calada, acuada, castrada”, a narradora corta feito faca a carne nossa, com mágoa e ressentimento bem justificados. Depois de citar feminicídios célebres da época, de Aída Curi, Cláudia Lessin Rodrigues e da criança Araceli (mas não o da xará Ângela Diniz), a guerreira audaz aponta para o futuro: “Queremos o seguinte no jornal:/ quem mata menina se dá mal/ sendo gente bem ou marginal”.
Em “Bater Não Dói!” (2006), Ro Ro retoma o discurso contra a violência: “Bater não dói/ dói mesmo é apanhar”. Na faixa-título de Selvagem (2017), a narradora de voz surrada localiza e delimita a selvageria, provavelmente dentro, certamente fora: “Sou livre e não adianta/ tentar me cortar a garganta/ selvagem, me sobra coragem/ pra traçar minha própria viagem”. Na penúltima canção do último disco, Angela segue o exemplo da Elza Soares de “Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha É Brava, Imagina a da Vila Matilde)” (2015) e milita mais uma vez contra a babárie feminicida. O sambinha “Maria da Penha” diz assim: “Maria da Penha, venha/ pede o morro pra ajudar, iaiá/ não cansei do meu amor, não/ mas cansei de apanhar/ (…) muita gente diz que isso é errado/ mudei de opinião, seu delegado/ chama logo o camburão que não tem jeito, não”.
Na sequência de “Maria da Penha”, encerrando o álbum/canto de cisne chamado Selvagem, Angela Ro Ro elabora no xaxado “Parte com o Capeta” uma síntese descritiva perfeita sobre si própria: “Tenho parte com o capeta/ tenho parte com o cão/ tenho parte com gato, com onça, com ave, gigante e anão/ tenho asa como anjo/ tenho alma de criança/ não preciso nem de par/ pra dançar a minha dança/ sou filha da vida e da natureza/ até no feio vejo a beleza/ quando eu faço o bem/ não importa a quem/ mas se me aperreio sai da frente, eu não tenho freio”. Irreverências à parte, nunca foi fácil ser Angela Ro Ro – e ela nunca abdicou de ser, do primeiro ao último dia.