A originalidade é o carimbo do documentário Regional Beat — Uma Antena Parabólica Fincada na Terra Vermelha, de Matuto S.A, cartaz do 17º In-Edit hoje, às 21h, no Cine Bijou (e com mais sessões nos dias 18 e 19). Fazendo história em tempo real, o músico Matuto S.A constrói um documentário sobre si mesmo (sem abusar do ego nem da primeira pessoa) e do movimento musical que tenta erguer a partir da cidade de Franca, no interior paulista: o regional beat.
O nome do movimento, em si, não é dos mais originais. Apoiado num termo mais genérico que “mangue”, o ideário adotado é evidentemente decalcado do manguebit pernambucano de 30 anos atrás e dos mestres da parabólica enfiada na lama Chico Science e Fred Zero Quatro (Matuto ostenta mesmo uma semelhança física com esse último). O hip-hop é o principal meio de expressão musical, mas no lugar das alfaias de maracatu do manguebit adentra a boca da cena a viola das modas caipiras dos interiores de São Paulo, Minas Gerais e Brasilzão adentro.
Inédito para o Brasil da mídia do eixo, o circuito regional beat passa por Franca, Ribeirão Preto, São José dos Campos e sul de Minas (mas também o edifício Copan, no centro paulistano). O documentário autoproduzido traz a público artistas como a violeira, bordadeira e poeta Isa do Rosário, a poeta Paula Gualberto e os MCs, produtores e/ou beatmakers Dexter (ribeirão-pretano, homônimo do conhecido rapper paulista), Selectah H-Dub, DropAllien, Daniel Skova e The Megament, entre outros. Do Copan, DropAllien, tatuado e de cabelos tingidos de vermelho vivo, narra com um carregado “R” retroflexo seu início no rap e no rock, até assumir a forte e até então recalcada influência de música caipira. A maioria desses artistas descreve a “roça” como cenário de origem familiar, pessoal e musical — eis a terra vermelha onde se finca a parabólica (essa, sim, uma imagem mais anacrônica) do regional beat.
O cineasta e poeta Daniel Fagundes dá a senha do percurso pisado, com falas de outro documentário, Sobre Pardinhos e Afrocaipiras, que mapeia o apagamento promovido, pelas capitais e pelo sertanejo urbano, contra o “moreno” de “No Rancho Fundo” (1931), o “Chico Mulato” (1937) e a “Cabocla Tereza” (1940) de João Pacífico, a índia Tupi de Cascatinha e Inhana, o “negrinho Parafuso” de Tião Carreiro e Pardinho… Entre os pais fundadores, encabeçados por Tião Carreiro, passam pela tela e pelas falas dos “regional beat” Cornélio Pires, Tonico e Tinoco, Abdias do Nascimento, Duo Ciriema, Helena Meirelles, Renato Teixeira.
O violeiro moderno Ivan Vilela e o poeta Carlos de Assunção são convocados para discorrer sobre viola caipira, cururu e o higienismo racista por trás da europeização/estadunização (leia-se branqueamento) musical a que o Brasil tem sido historicamente submetido. KL-Jay dos Racionais MC’s, Rapadura, Criolo e o artífice do re-abrasileiramento do rap Gaspar Z’África Brasil representam o hip-hop que não tem medo de soar repente, coco de embolada, samba, música brega etc.
“Você quer coisa mais caipira que o rap? O rap é uma moda de viola contemporânea”, constata Renato Teixeira, para surpresa e susto dos incautos. Ivan Vilela expõe a hierarquização decorrente da distinção classista entre ricos e pobres, entre “istas” e “eiros” — de um lado estão pianistas, violinistas, cravistas, contrabaixistas, cientistas, especialistas, europeístas; de outro, violeiros, sanfoneiros, rabequeiros, pedreiros, padeiros, marceneiros, brasileiros e… banqueiros.
Com edição ágil de cenas plurais captadas por celular, Regional Beat critica o sertanejo de “agroboys brancos fazendo cosplay de caubóis norte-americanos” e apresenta raps híbridos de nomes como “Caipira System”, “Chão Molhado” e “Caipira Chique”, misturadas de Tião Carreiro com Wu-Tang Clan, de viola caipira com boombap dos anos 1990, de soundsystem de reggae com modão, de cururu com manguebit…

A síntese é personificada pelo violeiro e professor Ronaldo Sabino, convocado por Matuto S.A para tocar viola caipira no Regional Beat. Impossibilitado de comparecer a um show, Ronaldo enviou seu filho, o beatmaker Paco Coelho, que acabou se tornando violeiro regional beat e integrando o grupo que venceria o concurso de bandas da edição 2024 do festival João Rock. “Ele nunca pensou em tocar viola e agora virou violeiro”, celebra o pai. O filho, mestiço sorridente de cabelão encaracolado, se diverte contando que apresentou Sabotage ao pai e o flagrou se deleitando com as rimas do rapper da Favela do Canão no sistema de som do carro. Está provado que a síntese é real e autêntica e vai longe da mera adaptação de antropofagias passadas.

Outra síntese é elaborada a partir de São José dos Campos por Neto, MC, beatmaker e cantor de um projeto musical não coincidentemente denominado Síntese: “O interior também é um bom lugar. Caipira que não tem identidade própria é muito feio. Quem faz cosplay de paulistano lá é a coisa mais feia do mundo”. De boné rapper, Neto conta que costuma ouvir nos estúdios o pedido para “puxar um pouquinho menos o ‘R'”, lembra que seu irmão tocou na Orquestra Joseense de Moda de Viola, lamenta os preconceitos eternizados por um Brasil que “não se assume” e compara a música caipira com a matriz carioca do samba: “Tinha que assumir a moda de viola como um ritmo-mãe também. É nóis, caipira e cortador de mato”. Rapper referencial, o cearense Rapadura confirma: “Só quem não valoriza o Brasil é o brasileiro”.
Outros integrantes do núcleo Regional Beat são apresentados, como a b-girl Pjump (que descreve a “experiência radical de sair do break para entrar no modão”), o escritor de graffiti (como o próprio se apresenta) Gustavo Pasti e a estilista e costureira Laís Ocupadona, de Franca (que expressa sua “satisfação de trajar todo mundo”).
Sempre discreto e sempre usando chapéus de palha estilizados, Matuto S.A deixa palavras finais ao som rappeado de “Estrada da Vida” (1977), hit de Milionário e José Rico: “O interior é o futuro! Nossos rios, nosso solo, é ouro puro que ‘cêis’ não vão garimpar, pois o mundo é diferente da porteira pra cá”. No palco do João Rock, Matuto compõe mais uma síntese: “Do interior é que sai a nossa voz”.
Na coragem e na originalidade de documentar historicamente os próprios passos numa busca ainda não consolidada, Matuto S.A e seus regionalboys e regionalgirls passam a perna nos cânones e na legitimação que geralmente chega de fora para dentro. Nessa trilha, alegorizam num só tempo o desenraizamento da cultura urbana paulista (e brasileira), a busca da identidade perdida, o prazer por se re-enraizar. Desde muito antes da chegada dos portugueses a Pindorama, como afirma e reafirma Regional Beat, do interior é que sai a nossa voz.