Caetano Veloso: Deus está solto

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Capa do recém-lançado single "Fé", do repertório de Iza, reinterpretado por Caetano e Bethânia

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (…) Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada (…) Nós, eu e ele [Gilberto Gil], tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! (…) Deus está solto!”. O conhecido e histórico discurso de Caetano Veloso foi proferido no III Festival da Canção, em 1968, após receber uma vaia ensurdecedora de estudantes universitários de esquerda ao tentar cantar sua música “É Proibido Proibir”, acompanhado dos Mutantes. Caetano e os roqueiros em geral atraíam a fúria de parte da esquerda que, às vésperas do AI-5 e da prisão de Caetano, ainda militava contra as guitarras elétricas, símbolos do “imperialismo cultural”. Foi Maria Bethânia que havia chamado a atenção do irmão Caetano para a importância de Roberto Carlos e da jovem guarda, tidos como alienados por essa parte da esquerda.

Já em 1973, após voltar do exílio londrino e associado à resistência à ditadura, Caetano participou do festival Phono 73, organizado pela gravadora Phonogram, no Centro de Convenções do Anhembi. Era o período mais duro da ditadura militar. Enquanto Chico Buarque e Gilberto Gil tiveram seus microfones cortados ao tentarem cantar “Cálice”, Elis Regina foi vaiada pelo público por ter cantado nas Olimpíadas do Exército, o que a fez também ser enterrada por Henfil n’O Pasquim. Já Caetano foi vaiado ao cantar com Odair José “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, uma música de Odair sobre um homem que se apaixona por uma prostituta. Apesar de Caetano já ser respeitado pela elite intelectual como um baluarte da MPB, Odair era visto como um cantor “cafona” e, portanto, alienado, embora, como mostrou Paulo Cesar de Araújo no livro Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar, Odair tenha sido bastante censurado pela ditadura. Caetano reagiu às vaias no Phono 73 gritando “não existe nada mais Z do que um público classe A”.

De fato, enquanto grande parte dos artistas de MPB eram universitários de classe média que cantavam principalmente para um público de universitários de classe média, Odair José era um cantor de origem pobre que cantava para os setores mais populares e parecia “fora de lugar” naquele palco, causando um “estranhamento” ou “deslocamento”. Caetano, ao longo toda sua carreira, como bom tropicalista, sempre provocou o “público classe A” abraçando e legitimando músicas e artistas populares. De certa forma, “higienizou” músicas como “Coração Materno”, de Vicente Celestino, “Sozinho”, de Peninha, e “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer”, de Fernando Mendes. Já Odair passou a ser mais respeitado pelo “público classe A” justamente quando assumiu mais seu lado roqueiro rebelde e passou a participar de campanhas políticas de esquerda.

Curiosamente, Odair rompeu com a imagem de um artista popular romântico já em 1977, quando lançou seu álbum O Filho de José e Maria (1977), uma ópera-rock inspirada em um Jesus Cristo mais humano do que divino, o que incomodou na época a Igreja Católica. Como Paulo Cesar de Araújo aponta, enquanto artistas da MPB intelectualizada, como Vinicius de Moraes, Clara Nunes e Maria Bethânia, cantavam nos anos 1960 e 1970 sobre o candomblé, visto como uma religião de resistência, ao gosto da imagem idealizada que a esquerda universitária tinha do “povo”, cabia aos artistas mais populares como Roberto Carlos e Antonio Marcos cantarem sobre o catolicismo, associado à direita.

É simbólico, assim, que no mesmo ano de 1973 Gal Costa e Maria Bethânia tenham cantado no Phono 73 “Oração de Mãe Menininha”, de Dorival Caymmi, e Antonio Marcos tenha gravado “O Homem de Nazaré”, de Cláudio Fontana. Maria Bethânia, no entanto, ao mesmo tempo em que gravou diversas músicas que remetiam ao candomblé, sempre gravou também músicas que remetiam ao catolicismo, dedicando um álbum inteiro a Nossa Senhora em 2000, Cânticos, Preces e Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu. O sincretismo religioso de Bethânia aparentemente nunca incomodou o seu público.

Na turnê de Caetano e Bethânia de 2024, no entanto, o momento mais polêmico se dá justamente quando Caetano, sozinho no palco, canta o louvor “Deus Cuida de Mim”, do cantor gospel e pastor evangélico Kleber Lucas. Caetano sempre soube renovar o seu público, criando pontes com artistas das novas gerações e de diversos gêneros musicais. Desde 2006, quando lançou o álbum roqueiro , aproximou-se ainda mais de um público jovem, “hipster”, “moderninho”, LGBT, de esquerda, que já havia “descoberto” e cultua o seu álbum Transa, de 1972. Um dos maiores intelectuais públicos do país, Caetano sempre se posicionou sobre os grandes temas políticos e culturais. Se houve momentos em que entrou em conflito com a esquerda, por outro lado, mais recentemente, inclusive por meio de reuniões realizadas em sua casa e organizadas por sua esposa Paula Lavigne, tem se aproximado cada vez mais do eleitorado “descolado” do PSOL. Mas foi também nessas reuniões em sua casa que se aproximou de pastores evangélicos progressistas, como o próprio Kleber Lucas e Henrique Vieira, deputado federal pelo PSOL.

Caetano já havia dado algumas declarações de como se interessa pelo fenômeno do crescimento das igrejas neopentecostais no Brasil e de como, ao contrário de grande parte do seu público que associa evangélicos a bolsonarismo, homofobia e perseguição às religiões de matriz afro, não vê esse crescimento necessariamente com maus olhos, assim como Roberto Mangabeira Unger, cujo pensamento muito o influencia. O interesse de Caetano é político, cultural e antropológico, mas não só. É afetivo também. Não só porque dois de seus filhos se converteram, mas principalmente porque, como diria Bethânia, Caetano, apesar de (ainda?) ser ateu, “se comove” com uma religiosidade popular, que mobiliza tantas mulheres negras. Quem acompanha suas manifestações públicas não deveria, portanto, ter estranhado tanto a inclusão de “Deus Cuida de Mim” no repertório do show. Caetano já foi um grande entusiasta da candidatura presidencial da evangélica Marina Silva, comprando briga com o eleitorado lulista “de classe A”. Escreveu a apresentação do livro O Povo de Deus – Quem São os Evangélicos e Por Que Eles Importam, de Juliano Spyer, para citar alguns exemplos dessa aproximação.

A trajetória de Caetano está, no entanto, muito longe das de Bezerra da Silva e Baden Powell, que em seus últimos anos viraram evangélicos. Quem viu em “Deus Cuida de Mim” oportunismo ou vontade do Caetano de ampliar o seu público não está entendendo nada, nada, nada. Mais do que dialogar com o público evangélico, a inclusão do louvor no repertório do show parece, se não uma provocação, mais um “toque” que Caetano dá para o seu público, como o “toque” que Bethânia deu ao irmão quando disse para prestar atenção em Roberto Carlos. Se o recado não foi suficiente, talvez seja o caso de relembrar os versos de Geraldo Filme em “Vá Cuidar da Sua Vida”: “Negro falava de umbanda, branco ficava cabreiro/ fica longe desse nego, esse nego é
feiticeiro/ hoje negro vai à missa e chega sempre primeiro/ o branco vai pra macumba e já é babá de terreiro”.

(Danilo Cymrot é pesquisador cultural, doutor em direito pela USP e autor de O Funk na Batida – Baile, Rua e Parlamento (Edições Sesc, 2022), finalista do Prêmio Jabuti.

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1 COMENTÁRIO

  1. É… há uma logicidade na necessidade de “ligar” o Caetano Ateu, a questão Pentecostais… Eu não sei…! Mas ter uma cuidadora Pentecostal, que levava aos Cultos de muitos líderes, também Pentecostais SACANAS, e sua “obrigação” de Pai, o converteram. A verdade é; a Religiao (nenhuma delas) devem estar medidas em política, Política. A doro a possibilidade de explorar novas situações, mas não para proveito PRÓPRIO! A canção; “DEUS CUIDA DE MIM” é linda pelo que ela é… Mas não por essa Onda de Caetano ver algo que preste ali… Ele viu grana… (Assim como na canção de Peninha; Sozinho) e o fez de FORMA ACERTADA, Ele sua a voz e a interpretação para obter seu ganha pão… Mais daí querer colar com Odair José, os Mutantes… já é um pouco demais… menos Caetano beeeeeeemmmmm menos! CV é meu Ídolo, mas como vetor político deixa muito a desejar, é nesse caminho, surgiu Paulinha, para mostrar o Cantor, o Letrita, o intérprete, mas fica quieto quando quiser “COLAR” a política em você, seja criticando a esquerda ou a direita e FICANDO SEMPRE encima do MURO. VOCÊ JÁ MOSTROU QUE É UM BOM CANTOR E COMPOSITOR e isso para o BRASIL, já está de bom tamanho. Bjs Mano Caetano ( e não há de ter julgo, ou nada de pessoal), VOCÊ continua sendo o POP ESTAR DA MINHA VIDA, BABY!

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