O Brasil acabou se tornando um país em que é preciso dizer o óbvio: crimes, se não punidos, acabam permitindo que outros sejam cometidos. É um círculo vicioso: agentes da repressão durante a ditadura militar (1964-1985) anistiados acabaram “aptos” a entrar (ou permanecer) no jogo político, seja pelas vias da manutenção de privilégios ou da brutalidade em si, não raro com ambas sendo capitalizadas para amealhar cargos públicos.
É mais ou menos o que diz Eunice em determinada altura de Ainda Estou Aqui, o novo filme de Walter Salles, baseado no romance de Marcelo Rubens Paiva, filho da protagonista, interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro em diferentes fases da vida. Mais de 40 anos depois do assassinato do marido, a viúva do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), ao finalmente conseguir uma certidão de óbito, comenta a importância de tais gestos, simbólicos e tardios, sabemos, para que tais ciclos não se repitam. Diz isto ao ser questionada por uma repórter se na redemocratização o Estado não deveria se preocupar com coisas mais urgentes – nunca esqueçamos, por exemplo, do “quem procura osso é cachorro”, um dos tantos slogans cínicos e vis do bolsonarismo.
25 anos depois de ter seu Central do Brasil (1998) indicado ao Oscar, Walter Salles (e Fernanda Montenegro) volta(m) a respirar a expectativa pelo prêmio, com um filme que beira à perfeição: interpretações exuberantes, fotografia (Adrian Teijido) primorosa, reconstituição de época impecável, roteiro (Murilo Hauser e Heitor Lorega) idem, trilha sonora (música original de Warren Ellis) ibidem. É um filme sobre ausência, com uma história (e seu final) por demais conhecido dos brasileiros – ao menos daqueles que não sentem orgulho da própria ignorância –, mas que prende a atenção do espectador, curioso por cada sequência. A tortura como método de Estado está presente, mas não explicitamente, o que nem de longe significa atenuar o horror.
Obviamente não é um documentário: o drama biográfico se baseia em fatos reais, é um mergulho na intimidade de uma família destroçada por um regime autoritário. Uma entre tantas, um caso emblemático, como se costuma dizer no jargão dos direitos humanos. É também um elogio ao empoderamento feminino, em uma época em que a expressão ainda não era utilizada: com o desaparecimento do marido, Eunice precisa tomar as rédeas da situação, desde as finanças, a administração da casa e dos filhos, até formar-se em Direito, aos 48 anos, e tornar-se referência na defesa e promoção dos direitos dos povos originários.
Ainda Estou Aqui faturou mais de um milhão de reais de bilheteria apenas no último dia 7, data de sua estreia nas salas de cinema brasileiras; até aqui já foi visto por mais de 350 mil pessoas, totalizando mais de oito milhões. Um filme urgente e necessário, em um país que costuma negar seu próprio passado e o noticiário não dá conta de suas sucessivas tragédias, às vezes por conivência. A ferida segue exposta: urge curá-la e evitar novos machucados. Se o Oscar vem ou não é questão de menor importância: vale mais refletir sobre os temas que o filme suscita e ser testemunha do nascimento de uma obra-prima da sétima arte brasileira.
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