No Parque da Juventude tomado, sob a memória soterrada do presídio do Carandiru, Maria Rita, 34 anos, entregou a uma multidão paulistana feliz, de estimadas 60 mil pessoas, sua homenagem de filha a Elis Regina (1945-1982). E a química aconteceu, como era de se esperar.
Mais que as músicas, mais que os arranjos das músicas, mais que a banda, mais que as interpretações da cantora: bonito de ver, mesmo, é a entrega de Maria Rita à mãe, e ao repertório da mãe, e à paixão do público pela memória de – sua, nossa – mãe.
“Eu tinha 4 anos, não tenho lembrança nenhuma da gente juntas”, disse, na constatação pública que é provavelmente a mais pungente de sua vida profissional.
O choro tomou o parque como tomou, em diversos flagrantes, o rosto da filha que mal se lembra do contato de sua – nossa – mãe.
Canções de intérprete, “Se Eu Quiser Falar com Deus” (1981), de Gilberto Gil, e “Essa Mulher” (1979), de Joyce e Ana Terra, foram cantadas em sequência e citadas como prediletas por Maria. Bonito, muito bonito.
Ao mencionar a veia politizada de Elis, cantou, juntas, “Menino” (1980), de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, e “11 Fitas” (1980), de Fatima Guedes, arrancando das entranhas cada verso e cada significado. Muito, muito, muito bonito.
Maria, Maria, indicou carinho especial pelo afiliado da mãe (e padrinho musical dela própria) ao encerrar o show com um trio de miltons: “Morro Velho” (1967), “O Que Foi Feito Devera/ O Que Foi Feito de Vera” (com Fernando Brant e Márcio Borges) e “Maria, Maria” (com Brant), ambas de 1978. Bonito, bonito, bonito.
Camadas de significados podem-se desprender da releitura de “Morro Velho”, história do menino negro que cresceu com o menino branco, antes de serem separados pelas diferenças brasileiras de classe social. Bonito, e lancinante.
O menino branco e o menino preto podem-se descascar daí, em qualquer de diversas combinações: Elis & Milton, Elis & Gil, Elis & Jair Rodrigues (em “Imagem”, de Luiz Eça e Aloysio de Oliveira, de 1967, que abre a apresentação), Elis & Wilson Simonal – Maria, Maria refez esse vínculo cantando “Zazueira”, de Jorge Ben, lançada por Simonal em 1968 e tomada emprestada por Elis no ano seguinte. Na nova versão, o suingue samba-soul foi acoplado a citações instrumentais ao funk-samba norte-americano da banda Earth, Wind & Fire. Bonito, abrasivo, abrasador.
O encontro no feminino, menina morena e menina ruiva, Elis & Rita Lee, foi acariciado em “Doce de Pimenta”, que Rita fez para Elis cantar – e Elis cantou, mas não chegou a gravar.
Em espetáculo grande e grandiloquente, Maria Rita elegeu contemplar a maioria entre as facetas adultas (a brotolândia, como de hábito, ficou de fora) da porta-voz triste do país triste. “Arrastão” (1965), de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, representou a era dos festivais. O mito Elis & Tom Jobim disse alô em “Águas de Março” (1973). O vínculo tenso e tênue Elis-Chico Buarque ressurgiu em “Tatuagem” (1976). O vínculo tênue e tenso com Caetano Veloso não compareceu.
A exacerbadora de talentos alheios apareceu em standards de Baden Powell & Paulo César Pinheiro (“Vou Deitar e Rolar – Quaquaraquaquá”, 1970), Guinga & Paulo César (“Bolero de Satã”, 1979), Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza (“Madalena”, 1971), João Bosco & Aldir Blanc (“O Bêbado e a Equilibrista”, 1979), Maurício Tapajós & Aldir (“Querelas do Brasil”, 1978), Belchior (“Como Nossos Pais”, 1976), Gonzaguinha (“Redescobrir”, 1980), Renato Teixeira (“Romaria”, 1977), Guilherme Arantes (“Aprendendo a Jogar”, 1980). Bonito, sempre bonito.
A única nota dissonante à beleza toda era a empresa patrocinadora, Nívea – uma fábrica de beleza -, de que nós precisávamos para (e agradecemos por) viabilizar o evento histórico – mas que, ostensiva e agressiva, parecia querer aparecer mais que Maria e – pior – mais que Elis. A voracidade não venceu: mesmo com o nome Nívea em primeiríssimo plano, no palco e na plateia, Elis e Maria não foram ofuscadas.
Tampouco em momento algum Maria venceu a mãe no palco – certamente essa não era a intenção. Maria não canta como a mãe, nem melhor que ela. Mas a entrega, ah, a entrega… Bonita de ver, arrepiante.
Elis Regina foi uma intérprete de primeiríssima qualidade técnica e de uma sensibilidade musical impressionantes. Foi uma das primeiras estrelas de primeira grandeza a gravar músicas de compositores desconhecidos.Elis era música pura à flor da pele.
sinceramente, eu só vou ouvir maria rita com vontade quando ela tiver coragem de construir um repertório longe the mãe. espero que essa fase seja uma espécie de enterro desse passado que a persegue. Ela é uma boa cantora, mas…
(pô, achava que os comentários do facebook tb ficavam por aqui)
Sempre gostei e respeitei a Elis como cantora e intérprete da MPB , como também pude vê seu início na nossa música. Gosto e admiro a Maria, mas como lí acima, ela é boa, mas não canta como a mãe. Acho realmente que ela deveria ir aos poucos construindo seu próprio repertório, ir mostrando que tem luz própria. Uma coisa é homenagear, e outra é fazer lembrar semprea a mãe em suas músicas. Voz é genética, mas repertório, não.
Maria Rita começou a carreira com a lembrança incessante da mídia de que ela era filha da Elis Regina. Ou seja, a TV Globo fazia questão de dizer que ela tinha “pedigree”. Mas quem ouviu seus quatro álbuns, o último agora de 2011, percebe uma clara vontade de trilhar uma carreira própria. Acontece que em janeiro deste ano fez 30 anos que perdemos Elis Regina. Seria difícil ela fugir dessa homenagem. E o que se vê, pelo texto do Pedro Alexandre Sanches, é que essa entrega foi muito bonita e sincera.
Se tem coisa que a maria rita sempre evitou foi cantar o repertório da mãe,essa crítica não tem fundamento,mesmo porque falta voz,volume,extensão,intensidade,dramaticidade,humor,musicalidade,dicção,presença de palco e todos os etcs que houver neste mundo.
Tem razão, Ademar. Mas, convenhamos, a pressão por ser filho de alguém famoso é muito cruel em qualquer área.