Ao longo de sua história, o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) sofreu várias intervenções e até mesmo uma intervenção na intervenção, situação um tanto bizarra, pois a segunda identificou irregularidades na primeira. Foi alvo de três CPIs antes desta: em 1995 e 1996, em Brasília, em 2005, no Mato Grosso do Sul, e em 2009, em São Paulo.
Nas três foram apuradas e comprovadas graves irregularidades. Porém, apesar de seus relatórios finais, com textos contundentes, terem produzido listas de pessoas a serem indiciadas, de terem denunciado coerção do trabalho dos congressistas por parte do Ecad e de terem apontado soluções para o problema, nada efetivamente mudou e ninguém até hoje foi punido.
A CPI de 1995 e 1996, chamada de “CPI do baixo clero,” produziu uma lista de 79 pessoas a serem indiciadas, relacionando os crimes de falsidade ideológica, sonegação fiscal, apropriação indébita, enriquecimento ilícito, formação de quadrilha, formação de cartel e abuso do poder econômico, entre outros, com indiciamento dos seus autores e farta documentação.
A CPI do Mato Grosso do Sul produziu um relatório também contundente, destacando que, apesar de ser uma sociedade civil sem fins lucrativos, o Ecad apresenta lucro. Concluiu também que “o Ecad é dirigido e administrado por profissionais absolutamente dissociados das associações, e essas, em vez de serem as dirigentes de fato e de direito do Ecad, nada mais são do que joguetes de interesses não muito claros, por parte dos atuais dirigentes do Ecad”.
O relatório também diz que o Ecad “faz o que bem entende, cobra o que quer, distribui o que tem vontade, impõe condições ao seu bel prazer, estabelece critérios incompreensíveis e age com uma volúpia arrecadadora, motivando os reclamos da população e dos detentores de direitos autorais”.
O memo relatório concluiu também que “torna-se imprescindível que a Lei nº 9610/98 seja urgentemente revista pelo Congresso Nacional. (…) É fundamental que o Congresso ouça a voz da população (…), estabelecendo critérios de arrecadação e distribuição, não permitindo que uma mera asembleia geral eventualmente manipulada por interesses não confessáveis, possa definir da forma que bem quer”.
O texto também conclui que “enquanto não houver mudanças substanciais (…), a situação tende a piorar (…)”. A atuação do Ecad com relação a ests CPI foi, segundo o relatório, “lamentável em todos os aspectos, pois o Ecad tentou de todas as formas obstaculizar os trabalhos”.
A mais recente CPI do Ecad realizou-se na Alesp (Assembleia Legistativa de São Paulo), em 2009, de cujo relatório destacamos:
“Esta CPI não se deve cingir ao pedido de investigação profunda das contas, procedimentos e desvios de conduta, e à eventual punição dos responsáveis. Devemos, sim, nos debruçar sobre a atual legislação que regula o direito autoral neste país, e formular as alterações que se fazem imperativas, de forma a criar um ambiente de segurança e clareza tais que permitam aos músicos exercitarem o seu mister, sem que sejam obrigados a desperdiçar seus talentos na busca da Justiça ou calar-se perante as ameaças e o poderio econômico dos que se encastelaram em estruturas ineficazes e corruptas.
“Uma legislação bem fundada, que motive o músico a prosseguir criando e sobrevivendo com dignidade, servirá de fulcro ao desenvolvimento da arte, em particular, da cultura, e do desenvolvimento, como um todo.
“Recomenda-se a atenta leitura do Ofício/SPC/GDA nº 051/07, da Coordenação-Geral de Direito Autoral, Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, de 8 de outubro de 2007, que emitiu valioso parecer sobre a situação do direito autoral neste país, que indica com toda a clareza a necessidade de ‘prever uma instância pública de tutela administrativa da gestão coletiva. Entendemos que há clara base legal e constitucional para tal, além de um clamor vindo de diversos segmentos da sociedade'”.
Se o que foi preconizado nessa última CPI tivesse sido já implementado, certamente não precisaríamos estar aqui hoje. Ao ler esses trechos dos relatórios, ficamos com a nítida e incômoda sensação de estarmos andando em círculos. Estamos em 2011, mas poderíamos estar em 1995, 2005 ou 2009.
Por que nada foi feito? Porque o Ecad resiste ferozmente a qualquer possibilidade de ser fiscalizado, o que seria mais do que natural numa entidade que não tem nada a temer ou a esconder.
O Ecad foi criado por lei e exerce um monopólio concedido pelo Estado, ou seja, o Estado esteve presente na questão desde a criação do órgão. E a sua ausência como instância reguladora e fiscalizadora, a partir do governo Fernando Collor, aprofundou as distorções e injustiças que já existiam no sistema.
O que vemos hoje é uma gestão que beneficia poucos em detrimento de muitos. Não há dialogo com os compositores, e aquele que levanta a voz para fazer criticas é considerado inimigo. Como no meu caso, há situações bizarras, em que o órgão, que existe para defender o interesse dos autores, usa o dinheiro dos próprios autores para processá-los criminalmente.
Mas, afinal, o que é o Eac? Ou melhor, quem está por trás do Ecad?
Das nove sociedades que o compõem atualmente, apenas seis têm direito a voto nas assembleias. Dentre essas seis, duas são responsáveis, sozinhas, por 80% da arrecadação: UBC (União Brasileira de Compositores) e Abramus (Associação Brasileira de Música e Artes).
Na arrecadação de 2010, por exemplo, num total de R$ 315 milhões distribuídos, R$ 240 milhões foram para as duas entidades, R$ 120 milhões para cada uma. E por quê? Porque elas têm mais autores? Porque seus repertórios são mais representativos? Não. Porque nelas estão as editoras multinacionais. Na UBC, cuja metade do repertório é de musica estrangeira, estão a EMI e a Sony. Na Abramus estão a Universal e a Warner.
O Ecad divulga regularmente um ranking dos maiores arrecadores, mas só inclui autores, como se esses fossem verdadeiramente os que mais arrecadam. Não são. Em 2010, por exemplo, a maior arrecadação foi da Warner, seguida por Universal, EMI e Sony. O primeiro autor só aparece na sexta posição do ranking. Por que o Ecad não divulga isso? Para não tornar público o que para nós está mais do que claro: o interesse dessas editoras multinacionais é o que prevalece.
Vejamos então o que se passa em uma das duas maiores sociedades, a UBC, que por anos manteve-se como senhora absoluta na assembleia. Desde 1989, a UBC é presidida, indiretamente, por uma multinacional.
De janeiro de 1989 a dezembro de 1994, a presidência foi exercida pela EMI Music Ltda. – Divisão Itaipu, representada por um contador. De janeiro de 1995 a março de 2002, pela Edições Musicais Tapajós Ltda., também editora do grupo EMI, representada pelo mesmo contador. De abril de 2002 a 2006, pela EMI Songs do Brasil Edições Musicais Ltda., representada também pelo mesmo contador.
Em 2006 a presidência passou a ser exercida pelo compositor Fernando Brant. Porém, o contador passou a ser o superintendente, mas sempre representando alguma editora do grupo EMI. De 2006 a 2010, a superintendência foi exercida pela EMI Songs do Brasil Edições Musicais Ltda., representada novamente pelo mesmo contador. E, finalmente, de abril de 2010 a março de 2014, pela Edições Musicais Tapajós Ltda., como sempre, representada por esse mesmo contador.
Isso é o que se passa na UBC, mas na Abramus, que duela, literalmente, com a UBC pelo poder na assembleia, não é muito diferente. Basta dizer que o presidente da entidade, que não é contador, mas advogado, é o mesmo há 29 anos, desde sua fundação. Na diretoria estão representantes da ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos), da Editora Universal, da Sony e da Warner Chapell. Que interesses vão prevalecer?
Numa rápida consulta ao site do Ecad, constatamos, estarrecidos, que num dos gráficos que o órgão disponibiliza há um aumento muito acentuado do percentual de música estrangeira na distribuição. Em 2005 eram 15,13%. Em 2009 já eram 31%.
O Brasil envia para os Estados Unidos direitos conexos de obras estrangeiras tocadas aqui, mas os Estados Unidos não protegem os direitos conexos, pois não são signatários da Convenção de Roma, ao contrário do Brasil. Sendo assim, por que então o Brasil envia dinheiro para os Estados Unidos?
Situação semelhante acontece no cinema, pois nos Estados Unidos não se paga pelas músicas inseridas em filmes. Mas o que o Ecad arrecada dos exibidores aqui vai maciçamente para as sociedades nortea-mericanas. O Ecad nos induz a bradar contra a inadimplência nos cinemas, mas quase toda a verba arrecadada vai para fora do país.
Em seu depoimento na CPI da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), Rafael Barbour, ex-funcionário da UBC e personagem central da fraude conhecida como “caso Coitinho”, disse que a entidade recebe direitos do exterior de autores que não são sócios da UBC. É essencial que essa denúncia seja checada, pois isso seria um enorme absurdo.
O Ecad declara que possui 342 mil autores cadastrados e que em 2010 distribuiu R$ 346,5 milhões para 88 mil autores, ou seja, 254 mil autores não receberam nada. Segundo o Ecad, simplesmente porque a música desses autores não tocou em lugar nenhum. Será que foi por isso mesmo?
Observando o regulamento de distribuição, que apresenta alguns critérios absurdos, começamos a vislumbrar uma razão para que tanta gente não receba nada. Um músico da noite que toca suas próprias composições nunca consegue receber seus direitos autorais. Isso porque o Ecad se baseia na realidade de outro segmento para pagar a esse, considerando a proporção de 95% do que toca em rádio e 5% do que toca na TV da rubrica “direitos gerais”, como se isso pudesse se aplicar a tudo.
Obviamente, a música que toca na noite não é necessariamente a que toca no rádio e muito menos a que toca na TV. O que se quer então com essa lógica? Beneficiar sempre os mesmos compositores e, sobretudo, os mesmos editores.
A música mecânica ou ambiente, segunda maior parcela na arrecadação do Ecad, aquela tocada em bares, restaurantes, academias de ginástica, consultórios médicos, assim como a música ao vivo, é apurada por amostragem. Por qual razão? Qual é a dificuldade de se obter do usuário uma lista do que foi tocado? Esse é um segmento que pode muito bem fornecer dados precisos.
Mas o que faz o Ecad? Usa a amostragem, baseando-se novamente nos tais 95% do que toca na rádio e 5% do que toca na TV para fazer a distribuição. Quem se benficia com isso mais uma vez? Os mesmos compositores e editores. E os outros, que efetivamente foram tocados? São simplesmente ignorados.
Há anos o Ecad comemora recordes de arrecadação, mas nem por isso reduz seu percentual societário, que somado ao das sociedades chega a 25%, um dos maiores do mundo. Quem paga direito autoral acha que paga muito. Quem recebe acha que recebe pouco. Só o Ecad, o intermediário entre as duas pontas da cadeia autoral, é que está sempre satisfeito com o atual panorama.
Na área do audiovisual, que responde em média por 25% de tudo o que o Ecad arrecada, apenas os músicos são beneficiados, pois a lei vigente deixa de fora os coautores das obras: diretores, roteiristas, atores e dubladores, que nunca receberam nada.
Dos usuários de audiovisual o Ecad cobra 2,5% de seus faturamentos brutos, só para pagar música, enquanto países como França e Espanha pagam 2% do liquido, e ainda beneficiando todos os segmentos. O que justifica essa discrepância?
É por essas razões que defendemos a presença do Estado na gestão coletiva, como existe na maioria absoluta dos países, principalmente nos mais desenvolvidos e onde o mercado da música é economicamente mais ativo.
Do Estado nós, compositores, podemos e devemos cobrar. Frente à inicitativa privada, sem qualquer fiscalizacão, só nos resta lamentar. Apenas uma instância de mediação e arbitragem, tendo uma comissão mista de especialitas e autores não comprometidos com o sistema, assim como membros da sociedade civil, poderá devolver à gestão coletiva brasileira a confiabilidade há muito perdida.
Tim Rescala é compositor, pianista, arranjador, autor teatral e ator. Leu este texto em discurso na CPI do Ecad. Os grifos são de FAROFAFÁ.