Ele materializou com suas fotos algumas das capas mais marcantes da MPB.
Alucinação (1976), de Belchior, aquela mistura de êxtase e desespero na face radiante de Belchior que marcou e ainda marca gerações.
Urubu, de Tom Jobim (1976), um pássaro em voo imponente e distanciado do estigma do mau agouro num céu limpo brasileiro.
Raul Seixas como um pregador de rua, de peruca e barba brancas, na capa de Há 10 Mil Anos Atrás (1976).
Edípico flagrante de Caetano Veloso no colo da mãe, na capa de Muito (Dentro da Estrela Azulada), de 1978.
Chico Buarque sorrindo de olhos semicerrados. Fafá de Belém sentada num tronco de árvore ancorado no espaço, de pés descalços. Tim Maia reflexivo em frente a um espelho invisível, enxergando além do que se deixa ver.
Seu nome era Januário Garcia, um artista com a consciência do seu tempo, de seus direitos e de seu lugar no mundo. O fotógrafo e ativista carioca morreu na quarta, 30, no Rio, aos 77 anos, das complicações da Covid-19, mais uma vítima da irresponsabilidade de um governo infame. Ele estava internado no Hospital São Lucas, na Zona Sul do Rio.
Era ativista do movimento negro, imbuído da missão de documentar a trajetória do negro no Brasil e a grande diáspora africana. “Eu fui o 34º a assinar a ata de fundação do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras”, contou. Sua carreira começou em meados dos anos 1970 como assistente no estúdio do húngaro-brasileiro Georges Racz.
Entrevistei Januário de forma intermitente para os livros Belchior – Apenas um rapaz latino-americano (2017) e Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (2019, ambos da Todavia Livros). É dele também a foto da capa do disco Todos os Sentidos, de Belchior. Resgatei algumas respostas dele às minhas questões para deixar aqui a minha homenagem.
Depois de passar dias no estúdio da Polygram acompanhando a gravação do disco para intuir a criação da foto, o Bel começou a gravar Alucinação. Eu pirei ouvindo a música porque é uma colagem de imagens, e decidi trabalhar nessa trilha. A foto da capa tenta traduzir essa colagem de imagens que a letra revela. Depois de muita elaboração, eu apresentei ao Aldo Luiz, que era o diretor de Arte da gravadora, ao Belchior e ao Nilo de Paula (arte finalista). Eles piraram, o Aldo e o Nilo mandaram bem com o título em vermelho sangrando. Na contracapa eu refotografei um desenho que vi o Belchior fazendo no estúdio, que chama Alucinação, e sobre o desenho de uma das fotos do estudo que eu tinha feito, colocamos um escorpião “disfarçado”, por sermos do mesmo signo. Se você puder, leia a letra de Alucinação como um poema em voz alta.
Essa foto foi feita em meu estúdio em Santa Tereza, havia uma ideia que não sei se era do Raul ou do Paulo Coelho, ou do Aldo Luiz diretor de criação da Polygram, e a gente sentou para conversar para decidir. Foi um papo muito longo, um papo-cabeça sobre essa figura de 10 mil anos atrás. Um falava em Entidade Secreta, outro fala em Caminhos de Santiago, outro falava em esoterismo e eu falava de Exu e Orixá, e prevaleceu a ideia de um velho ancião que tinha na música.
Eu não acho que seja o Gentileza porque ele vivia na Avenida Brasil próximo à rodoviária, em um lugar que só passava carros, muito raramente passava pessoas. O Raul me contou que tinha essa peruca, eu disse “tudo bem, o resto a gente produz”. Eu saí da reunião já com a cabeça a mil, o que vou fazer para esse clima da conversa se transformar em uma imagem. Eu sabia que tinha que fazer uma foto bem diferente de tudo que Raul já tinha feito, eu tinha que mostrar que quando alguém estivesse ouvindo a música e tivesse com a capa na mão, ficaria diante do velho da música que ele estava falando. Naquela época, eu fazia pesquisas químicas com reveladores para obter o máximo de definição e contrastes da pele negra – uma das primeiras coisas que fiz para ser fotógrafo foi estudar inglês a fundo porque toda literatura era em inglês, até as instruções dos filmes eram também porque os filmes eram importados. Em uma dessas leituras eu li que um fotógrafo americano estava fazendo experiências com filmes em altas sensibilidades, então eu resolvi embarcar nessa depois de estudar o que esse fotógrafo estava fazendo. Fiz algumas experiências, no início não dava nada certo, mas depois fui dominando o processo, eu tinha um tempo para entregar essa foto porque o Raul não podia ficar a minha disposição, tinha compromissos. Foi um sufoco, mas consegui chegar onde queria. O Raul foi para o estúdio, colocamos a peruca nele, tinha um pano branco que ele vestiu assim tipo Gandhi. Feitas as fotos, veio a segunda parte, que foi o laboratório. Eu fotografei com o mínimo de luz porque usei um filme de 100 ISO, como fosse de 10.000 ISO. Usei como primeiro revelador um de papel preto e branco para puxar a imagem.
Você trabalhou muito com o Raul?