Dani Nega e o sonho com uma boa morte

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Dani Nega
Dani Nega

“Ao som de Milton Nascimento, na rede, afogada de tanto amar/ Morrer de beijar, de corpo inteiro, no silêncio do avesso. Mas não…”

É sobre “morrer em paz” que “Como Noiz Quiser” – novo single da cantora e compositora paulistana Dani Nega – trata em sua letra-manifesto.

O clipe, que foi lançado no dia 13 de maio (data que marca a abolição da escravatura no Brasil), chegou às plataformas virtuais após exatos oito dias do massacre na comunidade do Jacarezinho – a maior chacina já cometida pela polícia na cidade do Rio de Janeiro e a segunda maior no estado. A operação gerou comoção e revolta por parte da população, mas foi parabenizada com louvor pelo mais alto comando do país.

Essa contradição: Estado versus população pobre e preta, é o que está registrado na musica de Dani Nega e no cenário lamentável que ocorreu na favela “mais preta” da cidade maravilhosa.

“EU QUERIA MORRER ASSIM…” é, na realidade, o sonho de MAIS VIDA!

É a utopia do povo negro brasileiro em viver plenamente, exercendo o direito de usufruir do tempo, um bem precioso que sempre lhe foi negado e violentamente interrompido. Desejar morrer como se quer é evocar a liberdade desse povo que, apesar dos 133 anos do dito “fim da escravidão”, ainda vive preso às balas dos gambés, que são – para muito além da polícia – as mãos sujas de sangue do Estado brasileiro.

O clipe, parceria de Dani Nega com o artista Tide Gugliano, reforça o confronto dos SONHOS contra a REALIDADE:

Os SONHOS, traduzidos através do emocionante grafite digital do artista visual Achiles Luciano, nos leva a imaginar como seria a extensa vida de cada personagem preto, ali desenhado cuidadosamente, de acordo com seus respectivos desejos de morte – devaneios que não são, nem de longe, mórbidos. Ao contrario da REALIDADE nua e crua, exposta em imagens reais do cotidiano violento que a população negra enfrenta no Brasil dos dias atuais. Brasil, ali evidenciado através do maior símbolo nacional: a bandeira, que abre o clipe de forma quase intimidadora, enquanto se ouve voz do menino Pietro Nascimento, de 14 anos, com sua reflexão sobre “poder ou não sonhar mais alto”. Depoimento que introduz a canção.

O clipe é avassala[dor] e sua narrativa chega a nos constranger mediante o reconhecimento do terreno baldio em que nos encontramos enquanto nação democrática. Cujo presidente da República banaliza mortes em massa com o apoio de seus seguidores fiéis: os caras-pálidas pintadas de verde e amarelo; enquanto a polícia invade a favela oferecendo execução a domicílio em plena luz do dia. Tudo está ali, posto à cena, corajosamente, através de sobreposições de imagens documentais, do canto-comentário, dados estatísticos e escolhas estéticas (que, aliás, expõem com elegância os limites de produções como esta, em tempos pandêmicos).

É um grito de alerta, um pedido de socorro e, ao mesmo tempo, uma reza forte, brava, convocada abertamente para a resistência contra o Brasil dos “gambé”.

Dani Nega, artista premiada, que tem em seu bojo dezenas de canções-protesto a favor da população negra e periférica, radicaliza seu manifesto com este clipe que expõe, sem pudor, as causas e efeitos da necropolítica brasileira. Não mede esforços em sublinhar as desigualdades, tampouco mede a teimosia ao reconhecer os valores tecnológicos e culturais da periferia. A poesia de Dani, assim como o clipe, ressalta a beleza que resiste em contragolpe e faz lembrar, todo instante, que só não é ainda mais viva porque os “gambé” não dá chance.

“COMO NOIZ QUISER” é denúncia, é lamento e pranto, mas é também semente que nos faz esperançar um novo canto. É a melodia do desejo colocado no mundo de um mundo menos absurdo, mais experimentado, sentido, corpoetizado.

É sonho de mais tempo de vida vivida, até que se chegue, enfim, à escolha da partida.

Vida longa é o maior revide de um povo que só quer ter a chance de morrer como quiser.  E nada mais.

Portanto:

PAREM DE NOS MATAR e NOS DEIXEM MORRER EM PAZ!

 

Naruna Costa é atriz, diretora, compositora e cantora. Faz parte do Grupo Clariô de Teatro desde 2002 e integra o grupo Clarianas, que lançou os álbuns Girandêra (2012) e Quebra Quebranto (2019), inspirados em repertório da tradição popular e da periferia e em cantos caboclos de matriz africana, nordestina e indígena.

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