A reedição de Ensaio sobre Música Brasileira, de 1928, amplia o debate sobre as bases da arte popular
Em 1928, Mário de Andrade publicou duas obras que são cruciais para o entendimento do espírito nacional: Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter e Ensaio sobre Música Brasileira. Em ambos os livros, são erigidos tratados sobre a questão da identidade, mas a rapsódia, como ele chamou o romance Macunaíma, foi de longe o que alcançou a maior repercussão.
Agora, quase um século depois, a reedição pela Edusp de Ensaio sobre Música Brasileira num volume enriquecido por notas, textos críticos e acréscimos preciosos (um trabalho coordenado pela musicóloga Flávia Camargo Toni) amplia a compreensão acerca de um dos mais abrangentes estudos sobre as questões da musicalidade brasileira.
No Ensaio sobre Música Brasileira, o fulcro de Mário está no argumento intelectual de qual deve ser a postura para que o Brasil possa desfrutar de todos os elementos que compõem sua diversidade étnica e construir uma arte musical original, nova e vibrante, sem purismos desnecessários. No resgate e no exame de melodias populares, como a cantiga de roda Sambalelê, o acalanto João Cambuête e o canto de trabalho de usina Ai, Baiana (entre fandangos, maracatus e cocos diversos), Mário estabelece relações com fontes inesperadas, como o folclore russo e peruano, demonstrando que a pureza na chamada raiz popular é uma balela à qual não é necessário se aferrar. O importante, em sua concepção, é a noção de valor nacional. “Uma arte nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo”, ele disse.
“Já afirmei que não sou folclorista. O folclore hoje é uma ciência, dizem… Me interesso pela ciência, porém não tenho capacidade pra ser cientista. Minha intenção é fornecer documentação pra música e não passar 20 anos escrevendo três volumes sobre a expressão fisionômica do lagarto…”, escreveu o autor no Diário Nacional, em 8 de janeiro de 1929. Basicamente, ele explica tudo aí: Ensaio sobre Música Brasileira não é direcionado a tecnocratas, destina-se menos aos experts do que a alargar a visão daqueles que têm a música como parte do seu ofício cotidiano.
Mário propõe, em seu ensaio, uma abertura contemporânea para o debate da música, um horizonte mais amplo e suave do que os embates acadêmicos geralmente suscitam. Chama a atenção a atualidade do texto, além do vaivém em torno de questões estéticas recorrentes. “Todo ecletismo tem isso de odioso, obriga o indivíduo a possuir uma porção de sinceridades, uma para cada caso, e consequentemente nenhuma verdade individual”.