ah, e por falar em “contramão da contradição”, como fizemos grupalmente no tópico anterior e em sua respectiva janela vermelha… em tempo em que “mimos” & “mimados” vão às manchetes do noticiário, talvez não custe muito tempo & dinheiro resgatar uma reportagem que já foi notícia, já datou, já embrulhou peixe na feira e hoje pode voltar hibridizada, nem tanto notícia, nem tanto peixe embrulhado, nem tanto realidade, nem tanto ficção.
mais, êita. que diacho será isto agora, quase um ano após a publicação na “carta capital” 396, de 7 de junho de 2006?
O RAP, O GOL E O LUCRO
Contradição ambulante, Marcelo D2 alterna o discurso social e a exaltação a Ronaldo, sob medida para a Copa
POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES
É até possível que você não esteja ligado na mistura de rap com samba, nem tenha prestado atenção ainda em Marcelo D2. Mas, se assim for, a distância tem hora marcada para terminar: escalado por Ronaldo “Fenômeno” em pessoa para compor um samba-exaltação a seus feitos, o rapper carioca é sério candidato a se tornar “homem-gol” da música popular brasileira durante a Copa do Mundo de 2006.
Todas as partes envolvidas despistam a conexão, mas há evidências de uma estratégia montada em conjunto pelo tripé futebol-música-televisão, para ribombar Sou Ronaldo a cada novo gol do artilheiro. Composto a toque de caixa, o samba-rap não pôde ser incluído no novo disco de D2, e o recém-lançado Meu Samba É Assim saiu de fábrica com 30 mil cópias, cifra modesta para as vendas recentes do artista de hip-hop mais popular do Brasil.
O presidente da gravadora de D2 (a multinacional Sony & BMG), Alexandre Schiavo, admite que lançará uma versão especial do disco no auge da Copa, com Sou Ronaldo como faixa extra. Mas ele é evasivo quanto à participação da tevê na trama: “Mandamos a música para o departamento de jornalismo e esportes da Globo, e não tenho certeza ainda de como eles a utilizarão”. Na assessoria da rede, a palavra de ordem é “ninguém nunca ouviu falar nessa história”; mas no domingo 28 lá estava D2, estreando Sou Ronaldo no Faustão.
Composta à moda dos sambas-exaltação futebolísticos de Jorge Ben (Jor), mas incorporando o rap desta vez, a música já foi incluída na edição brasileira do CD oficial da FIFA para a Copa 2006. E Schiavo comemora outro gol, marcado no meio radiofônico: “Foi fechada uma promoção nacional com a rádio Jovem Pan, que levará um ganhador para assistir ao primeiro jogo do Brasil na Alemanha com D2”.
Todas essas pistas caracterizam a entrada definitiva no comércio desenfreado de um artista que despontou na primeira metade dos anos 90 com o grupo Planet Hemp e cresceu divergindo do modelo de feroz escapismo inconseqüente que predominava à época, com a axé music. A banda tornou-se célebre pela defesa do direito ao uso de maconha, o que rendeu processos e prisões, mas também fama e popularidade.
D2 seguiu sublinhando letras de consciência social, discursos de defesa da periferia carioca e, mais adiante, a fusão do americanizado hip-hop com emblemas brasileiros por excelência. Aos poucos, suplantou resistências até nos ambientes mais puristas, e hoje confraterniza com sambistas como Zeca Pagodinho e Alcione (presentes no novo CD) e bossa-novistas como João Donato.
“Havia resistência, com quase todos os músicos. Ed Motta falava ‘hip-hop não é música, sampleia música dos outros’. Agora o rap pode ser considerado como música, como música brasileira, depois do que temos feito eu, Thaíde, Racionais MC’s, Rappin’ Hood…”, avalia D2.
Mas, junto com o respeito, vieram as contradições. Tudo em que diz acreditar, na forma de rimas hip-hop, ele vem sistematicamente contradizendo por atitudes cada vez mais comerciais: passou a visitar o Domingão do Faustão, após muito criticar o programa; cantou para platéias high society da Daslu; é dono da marca Manifesto 33 1/3, que difunde o vestuário hip-hop…
Ele se diz ciente das contradições, e defende a própria postura: “Não fiz disco de rap com samba para vender milhões. Era uma incógnita, ninguém sabia se ia dar certo. Deu. Vi as portas se abrindo. O Big Brother Brasil me chamou, falei ‘porra, vou lá’. Cantei as músicas do Planet Hemp, que me levaram para a cadeia. Toquei elas na porra da Globo, para 110 milhões de pessoas. É meio surreal, né?”.
Na trilha das oportunidades, as perdas também se acumulam. Pela primeira vez, D2 assume como encerrada a banda em que se criou. E hoje vive às turras com dois dos maiores amigos, os também talentosos Bernardo “BNegão” (que o deixou “magoadaço” ao tachá-lo de “capitalista” numa entrevista à revista Bizz) e Gustavo “Black Alien”, ex-parceiros de Planet Hemp que hoje desenvolvem carreiras próprias no mercado independente.
Mesmo sendo integrado por combatentes de ideologia parecida, o “partido do hip hop” arde no fogo amigo – não raro, as brigas também se transformam em músicas nos discos de um e de outros, numa versão pós-moderna do clássico duelo em forma de samba entre Noel Rosa e Wilson Batista, nos anos 1930.
“Bernardo não sabe nem o que é ser capitalista, está falando besteira. Mas ele foi o cara que saiu do Planet por causa de dinheiro, foi o cara que sempre brigou por causa de dinheiro”, reclama.
Mas, ei, Marcelo, mágoas à parte, você hoje é mesmo um capitalista, não? “Lógico, quem não gosta de ganhar dinheiro? O que é o capitalismo? Quem trabalha mais ganha mais, é assim que rola. Eu trabalho muito, fui correr atrás. A vida é feita de decisões, eu fiz as minhas”, diz, evocando em tom nostálgico os tempos idos em que ele, Bernardo, Gustavo e demais parceiros se reuniam em torno da descoberta do último filme de Spike Lee ou das rimas mais novas de cada um deles.
Se os amigos de agora são sambistas e jogadores dos altos escalões, D2 tenta uma abordagem mais humana que mercadológica para explicar o encontro com Ronaldo e a possibilidade de vir a criar a trilha sonora para um possível filme sobre a vida do jogador, também sob encomenda do próprio.
“Só o encontrei quatro vezes na vida, e pelo pouco que conheci é aquele cara por quem ninguém dá muito, meio bobo, sabe? Não é aquele cara fodão, mas é um cara que é fenômeno, mesmo, por tudo que passou. É um exemplo de superação.”
D2 fala de si ao comentar uma afirmação polêmica de Ronaldo que, que se autodefiniu “branco”. “Há pouco tempo vi que na minha certidão de nascimento está escrito ‘pardo’, acho que na dele deve estar também. Pardo é coisa de papel, né? Achei estranho, fiquei uns dois meses falando disso com todo mundo, ‘que é que está escrito na tua?’. Bernardo falou que na dele também é, então beleza, pelo menos não é só comigo”, brinca.
Aos poucos estende o tema, contando que a fama lhe trouxe acesso a restaurantes finos, apesar da “cara de pobre” que acredita ter, e mudou a relação com os policiais nas “duras” que ainda enfrenta nas ruas do Rio. “Os caras me param, ‘ih, é o D2!’, ai já abaixam a arma. Mas isso me incomoda. Você faz sinal para o táxi, o cara vem parando, olha e, ‘zuuuum’, vai embora. Não adianta eu ter R$ 4.000 no bolso para pagar”, relata, deixando despontar na fala a recorrência do tema “dinheiro”.
O visual importado tipo gangsta rap e os objetos dourados que adornam o pulso e o pescoço seriam modos de compensar a persistência de “duras” e humilhações? “Sei lá, eu diria que é mais uma coisa suburbana, de botar uns ouros, umas tranças… Isso não é ouro, não. Gostaria que fosse, mas, pô, custou US$ 190. O cara vai ver e logo pensar ‘roubou de quem?’. Polícia logo pensa, isso é óbvio.”
Não é só ouro o que reluz. Meu Samba É Assim vem coalhado de reflexões sobre o outro lado da moeda, como quando D2 conversa com a própria consciência, em Malandragem, ou quando interpõe em É Preciso Lutar a voz de Elizeth Cardoso em 1966, nos versos de protesto há um momento na vida/ em que é preciso lutar.
O ápice dessa veia é a Carta ao Presidente que encerra o CD. Depois de avisar que não venho por meio desta com protesto destrutivo, ao contrário, o narrador cutuca o presidente (minha mãe sempre dizia que o exemplo vem de cima/ e agora, Silva, você está em cima) e elege corrupção e mensalão como alvos preferenciais de crítica.
Mas, ei, D2, e você, que também é exemplo e também está “em cima”? Continua acreditando, como já declarou em entrevistas, que não é de sua conta o jabaculê, a propina entre gravadoras e veículos de comunicação, destinada a vitaminar sucessos musicais como os seus? Ele vai tateando: “Se acho isso direito ou não? Não acho direito, sacou?”, “faço parte, mas não tenho conhecimento”, “não vou chegar lá na Sony e dizer ‘eu quero saber quanto é que você pagou para tocar minha música na rádio, senão estou fora'”…
É o mesmo artista que puxa a adormecida MPB para cima, presta homenagem sóbria a Ronaldo (quero muito agradecer a Deus por ter-me escolhido no meio de tantos) e vocifera, nos versos bravos de Gueto, que você quer sair do gueto/ mas a sua mente é um gueto. Ponta-de-lança, D2 navega zonzo entre a beleza e a dureza de ser uma contradição ambulante.