Chego a Belém justamente no momento em que Filipe Catto faz sua estreia na cidade. O teatro está lotado, tem gente sentada no chão nessa noite de quarta-feira. Não consigo entender: quem é ele? Fora Elis, que tipo de gaúcho seria capaz de provocar essa euforia num Dia de Finados?
Filipe lembra a história de quando, uns 8 ou 10 anos atrás, quando vivia em Porto Alegre, teve um amigo de Belém, e de como a cidade na Amazônia que o amigo lhe descrevia lhe pareceu intangível, com sua comida própria, sua música própria, sua cultura própria, suas histórias tão peculiares .
Contou que nunca imaginou fazer uma viagem do Rio Grande do Sul ao Pará, parecia tão distante e impossível de se chegar. Enfim, ali estava – e agora com status de ídolo popular precoce.
Filipe se move como Ney Matogrosso. Isso me lembrou divertidamente a música do Maroon5, Moves Like Jagger. Tem agudos de Ney Matogrosso. Tem gestos de Ney Matogrosso. Mas ele tem alguma coisa que o liberta de Ney Matogrosso e da minha sanha comparatista: ele acredita no que canta, ele canta com vontade e uma potência vocal extraordinária. E tem uma juventude e autoconfianças exasperantes, daquele tipo de juventude que parece indestrutível. Eu me lembro de ter ouvido uma ou duas de suas músicas no computador, e não tinha me detido porque não sabia de onde partia a música – o show ao vivo é 100 vezes melhor.
Então, quando ele começou a cantar os versos de O Fundo do Coração, de Julio Barroso e a Gang 90, eu achei que ele tava de brincadeira. Ninguém canta Julio Barroso hoje em dia, não há tal compreensão de sua essencialidade. Na versão original, Julio Barroso se acompanhava ao violão com sua voz gutural e Taciana fazia o refrãozinho new wave. Filipe trocou o violão por uma tecladeira e bateria e a interpretação ficou impossível de ser passada adiante, porque o cantor pôs veneno nela e a reinventou.
A canção na qual Filipe Catto amarra as pontas do amor e da morte, Auriflama, “a morte é a esquina onde o amor termina”, tem um componente de eternidade pop. É construída em torno do verso do escritor angolano José Eduardo Agualusa (musicado por Thalma de Freitas). Há de fato uma alma lusa sob o sorriso de kamikaze de Filipe Catto, um jeito meio fadístico que comparece quando ele se agarra à repetição de frases como “Depois de Amanhã”. Penso bobamente que não haveria George Michael ou Freddie Mercury ou outro ídolo anglosaxão capaz de igualar esse sentido português da palavra que Catto domina com tanta maestria.
A plateia conhece todas as canções de Filipe: Redoma, Tomada, Rima Rica, Saga. Canta com ele Adoração. Luz, Vida, Arte: ele manipula clichês com tal segurança que os despe de suas fragilidades demagógicas. Filipe exerce sem cerimônia a arte de ser doce sem ser servil. Bajula o público, mas o mantém a uma distância prudente com uma autoridade sub-reptícia. Declama a capela uma música de Joelma, Cavalo Manco. Knock out: a plateia entrega os pontos.
Nunca há o tédio no show de Filipe Catto. Ele rege a atenção do público. Ninguém sai antes do final, como num jogo de pôquer. Pelo contrário, vão indo para a frente, cada vez mais para a frente, para terminar numa tietagem coletiva como num show de Roberto Carlos. Que música brasileira doida é essa que gesta figuras assim como se não houvesse prazo para exaurir a jazida?
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