Fala português, pô?

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O ensaio começou há apenas uma hora. Mauricio Tagliari faz cara de quem está ali por mais de dez horas. Decide entrar no estúdio. Um jovem assistente ajeita um fone de ouvido. Tagliari se aboleta de vez no sofá e inicia uma viagem muito particular. À sua esquerda, está o acordeonista Samuel Costa. À direita, o violonista Ricardo Herz. No centro, a música, apenas a boa música. É uma composição que lembra um tango tradicional. No meio da execução, o diretor artístico interrompe os músicos para pedir que Samuel brinque com o instrumento. Sugere que ele faça um “cluster”. “Cluster? Fala português, pô?” Todos caem na gargalhada.

 

Para um gaúcho de Santo Antônio da Patrulha mais acostumado a palavras hispânicas ou sulistas, cluster soa como um palavrão. Mas Samuel Costa sabe fazer clusters desde que usava fraldas e apertava de uma só vez as teclas de seu pianinho de plástico. O acordeonista entende o recado e sabe que o acorde sugerido por Tagliari faz sentido. Servirá como uma espécie de gran finale para a música que ensaiam exaustivamente. Tudo tem de parecer perfeito, novo, diferente e surpreendente. Caso contrário, seria apenas mais uma composição tocada por dois instrumentistas.

Samuel Costa, acordeonista
Samuel Costa, acordeonista - Foto Garapa

As referências de Samuel Costa, ou Samuca, passam por vanerão, choro,valsa, tango, milonga e chamamé argentinos. Ricardo Herz, paulistano, explora com seu instrumento frevo, forró, jazz e MPB. Juntos, já formariam um duo pra lá de inesperado. Mas a eles se juntou, na direção artística, o guitarrista Mauricio Tagliari, da extinta jazz band Nouvelle Cuisine. O mercado diria que a fórmula não poderia dar certo. Samuca, Ricardo e Mauricio também achavam isso antes de se conhecerem.

Em outubro do ano passado, Samuca e Ricardo foram selecionados para o projeto Rumos Música, do Itaú Cultural. Ao receberem o email de que haviam sido contemplados e formariam um duo, correram para a internet. Samuca, hoje ele confessa, pensou que tinha se dado mal. “Um violonista? E se ele tocar só música erudita?”, questionou. Encontrou vídeos no YouTube que o confortaram à primeira vista. Ricardo tocava Dominguinhos, tinha pés fincados no violino popular brasileiro. Já o paulistano encontrou no Google referências ao Menino Maluquinho, de Ziraldo. Mas com um pouco de paciência descobriu que seu futuro parceiro era igualmente um instrumentista versátil.

O projeto Rumos Música reúne pela primeira vez artistas que nunca tocaram juntos antes e quer estimulá-los a formarem novos grupos. Nessa categoria, foram 393 inscritos e 30 contemplados, entre instrumentistas, intérpretes e programadores. Os nove grupos formados farão um show em 2012. Será gravada ainda uma série de programas para TV e para uma webrádio do instituto. Edson Natale, gerente do Núcleo de Música do Itaú Cultural, reconhece que nem todas as formações podem dar certo, mas por enquanto as surpresas têm sido acima das expectativas.

[Veja lista com os grupos formados]

É uma aposta de risco, mas muito rica culturalmente. Os músicos vêm das cidades de Londrina, Porto Alegre, Contagem, São Paulo, João Pessoa, Rio, Sorocaba, Juazeiro do Norte, Natal, Juiz de Fora, Brasília, São Carlos, Pouso Alegre, Campinas, Belo Horizonte, Recife, Passo Fundo e Rio Branco. Cada um carrega influências, sotaques e gêneros de sua região, e essa farofa musical vai ter de ser bem misturada nos três ensaios previstos para este ano, cada um com oito horas de duração. É aí que entram os consultores, os diretores artísticos como Mauricio Tagliari.

“Quando fui convidado, pude escolher com quem ia trabalhar. Essa dupla logo me interessou”, diz ele. “Tinha um quinteto, grupos maiores e outros até com vocais. Mas achei inusitado esse encontro. No dueto, ou iam se entender de cara ou não iam se entender nunca.”

No primeiro ensaio, em Porto Alegre, Samuca e Ricardo já gravaram oito músicas. Estavam prontas, admite Maurício, que se preocupou porque isso significaria que seu trabalho estava acabado. Decidiu, então, provocar a dupla. Em São Paulo, na segunda sessão de ensaios, já no estúdio YB Music, o diretor artístico pede mais pasión ao andamento dramático de uma música. “Ela está morrendo de uma forma meio esquisita, dá uma desmanchada”, cobra. Os instrumentistas ouvem e, na maioria das vezes, concordam com os conselhos – até porque não é de bom tom contrariar o dono do estúdio. “Cheguei para atrapalhar um pouco. Quero que eles saíam dessa zona de conforto.”

Samuca e Ricardo questionam se o que estão executando está saindo legal na mesa de som. Se não estiver legal, também não seria problema. Com a tecnologia digital, quase nada é gravado de uma só vez. Uma inserção de alguns acordes pode ser refeita e emendada no computador. Se tudo ia bem até um certo ponto e uma nota sai errada, recomeça-se alguns segundos antes e a composição inteira, depois de editada, parecerá límpida. Os dois estão acostumados, mas Mauricio diz que preferiria que fosse tudo como num show ao vivo. Errou, errou.

Ricardo Herz, violonista - Foto Garapa

Eles ensaiam oito músicas, duas composições de Samuca, duas de Ricardo, uma inédita que criaram no primeiro encontro e outras de Dominguinhos. “Nosso show não é cabeça, vai sair um som bonitinho. Mas não esperem ouvir ‘Fio de Cabelo’ (sucesso nas vozes de Chitãozinho e Xororó ou Bruno e Marrone)”, brinca Ricardo, que sobreviveu na França tocando forró universitário. A sintonia já está rendendo frutos. Cada um já convidou o novo parceiro para tocar juntos em algum espetáculo e planejam voos solos, independente da iniciativa do Itaú Cultural.

“Já no primeiro encontro a gente decidiu gravar um CD, fazer um trabalho paralelo, com shows. Se vai ser sucesso, isso é outra história”, diz Ricardo. “Nem sempre a gente consegue tocar profissionalmente o que gosta. É como um taxista querer só carregar mulher bonita. Não dá. Esse tipo de trabalho aqui, pra gente que gosta de música, é maravilhoso”, comemora Samuca.

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