Denise Fraga em cena de "Livros restantes" - foto: divulgação
Denise Fraga em cena de "Livros restantes" - foto: divulgação

A professora Ana Catarina (Denise Fraga) é tão devotada aos livros que, às vésperas de uma viagem para Portugal, em agenda acadêmica, deseja devolver cinco livros às pessoas que presentearam-na. Não é uma desfeita, nem um gesto mal-educado: as dedicatórias marcaram-na em alguma altura da vida e com o gesto de desapego ela busca demonstrar isto, ao mesmo tempo em que acerta contas com o passado. Outros livros de sua coleção, que os espectadores não vemos, ela já doou para uma biblioteca, sorteou entre alunos, deu um jeito de fazer a literatura girar e cumprir seu papel.

A partir desta premissa, Marcia Paraiso (diretora, entre outros, dos ótimos “Lua em sagitário” e “Sobre sonhos e liberdade”, este em codireção com Francisco Colombo) constrói, a partir do núcleo familiar de Ana Catarina e de sua vizinhança, um enredo que se desdobra por debates tão “familiares” ao brasileiro, entre os quais homofobia e abuso sexual.

História bem contada, emoldurada por belas paisagens (entre Florianópolis, no Brasil, e Aveiro, em Portugal) — a direção de fotografia de Kike Kreuger é impecável — e uma trilha sonora (original de Marcelo Portela) que é personagem por si só e se sustenta sozinha, entre fado, choro e samba, majoritariamente.

"Livros restantes" - cartaz/ reprodução
“Livros restantes” – cartaz/ reprodução

Marcia Paraiso não procura estabelecer um cânone com os cinco “Livros restantes” [ficção, Brasil/Portugal, 104 minutos; estreia hoje nas salas de cinema brasileiras] que batizam o filme. A lista mistura ficção, poesia e até mesmo economia: “A teus pés” (1982), de Ana Cristina César (1952-1983); “A obscena senhora D” (1982), de Hilda Hilst (1930-2004); “Feliz ano velho” (1982), de Marcelo Rubens Paiva; “Silencioso corpo de fuga” (1996), do português valter hugo mãe; e “A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo do desastre” (2007), da jornalista canadense Naomi Klein.

Há uma pitada de comédia romântica no drama de Marcia Paraíso, além de ela habilidosa e sutilmente conseguir costurar temas que lhes são caros, em meio à trama, como a questão indígena e a reforma agrária — reparem na moça com uma camisa do MST em uma festa.

Penso também no filme de Marcia Paraiso, em último grau, como uma homenagem ao escritor italiano (nascido em Cuba) Italo Calvino (1923-1985) e suas “Seis propostas para o próximo milênio” — leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade, valores literários que lhes eram caros —, que o autor proferiria em Harvard, vindo a falecer antes — inclusive de escrever sobre a sexta, a consistência.

Já em Portugal, Ana Catarina compra um sexto livro, “Leme” (2023), da cronista portuguesa Madalena Sá Fernandes, e o autografa para si mesmo, simbolizando o começo de uma nova vida. A história pode comover tanto bibliófilos quanto quem, como um personagem da trama, leu apenas dois livros inteiros ao longo da vida. A professora, que nunca deixou de ajudar a mãe na cozinha do pequeno restaurante de sua propriedade, não o julga por isso, pelo contrário. Ou seja, “Livros restantes” não é um jogo literário cinematográfico para iniciados.

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Veja o trailer:

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