Assim como a humanidade não dá sinais de ter assimilado o impacto causado pela covid-19 a partir de 2020, o Brasil ainda está por dimensionar qual foi o tamanho real da perda do maestro negro baiano Letieres Leite, morto em outubro de 2021, por… covid. Em cartaz no festival In-Edit (com sessões hoje, às 17h, na Cinemateca Brasileira, e sábado, 21h, no Cine Bijou), o documentário As Travessias de Letieres Leite, assinado pelas diretoras Day Sena e Iris de Oliveira, é filme para se assistir com um nó na garganta em cada um de seus 84 minutos de duração.
A dimensão trágica da morte estúpida aos 61 anos começa a se revelar desde as primeiras, quando Letieres aparece trabalhando em estúdio, cheio de vida, sem e com máscara anti-covid, no mesmo ano que ele não veria chegar ao final. A primeira parte do filme é ocupada por um monumental depoimento ofertado pouco antes do início da pandemia pelo artista criador da Orkestra Rumpilezz, no qual ele entremeia dados biográficos de uma trajetória fabulosa e análises críticas (por vezes polêmicas) sobre o próprio trabalho, a indústria fonográfica em que se desenvolveu, a música da diáspora africana, a própria música. A dolorosa impressão é de que Letieres continua vivo, vivo, muito vivo.
Letieres Leite rememora passos decisivos de sua história, da Bahia dos blocos carnavalescos Mercadores da Bagdá, Cavaleiros de Bagdá e Apaxes do Tororó, do mestre Môa do Katendê (assassinado em 2018, no dia do primeiro turno da eleição presidencial que terminaria em triunfo fascista), da Orquestra Afro-Brasileira, do périplo pela Europa e dos estudos no Conservatório Franz Schubert, na Áustria, e adiante.
O maestro lista influências e/ou parceiros nesse trajeto: o cantor e compositor baiano Saul Barbosa, o violinista, arranjador e maestro cubano Alfredo de la Fé (que trabalhou com Célia Cruz, Tito Puente, Dizzy Gillespie, Eddie Palmieri, Carlos Santana etc.), o pianista e tecladista estadunidense Chick Corea, os brasileiros exilados Airto Moreira e Flora Purim, o multimúsico alagoano Hermeto Pascoal e seu percussionista Antônio Ferreira da Anunciação, o saxofonista e clarinetista Paulo Moura, o músico Gerônimo Santana (autor de “É d’Oxum” e “Eu Sou Negão”, entre outros emblemas do pop baiano), o Mateus Aleluia do grupo baiano de música de candomblé Os Tincoãs…
Na volta ao Brasil e à Bahia em 1995, Letieres Leite mergulhou na indústria fonográfica e na música industrial batizada de axé music (esse trecho de sua trajetória está documentado em outro filme do 17º In-Edit, WR Discos – Uma Invenção Musical, sobre o estúdio/gravadora liderado na Bahia por Wesley Rangel). Nessa fase, foi ser arranjador no estúdio de Daniela Mercury, trabalhou fazendo arranjos de “centenas de discos” de Olodum, Timbalada, Tonho Matéria, Cheiro de Amor, Ricardo Chaves, Zé Paulo etc. e se tornou diretor musical de Ivete Sangalo, com quem trabalhou por 14 anos.
De todo esse cabedal resultam, na última década de vida, a consolidação de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz e trabalhos com artistas como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Lenine, Russo Passapusso e seu grupo BaianaSystem, o extraordinário Grupo Bongar de Guitinho do Xambá (morto no mesmo 2021 do maestro, de AVC, aos 38 anos)…
Nas palavras poéticas de Passapusso, Letieres colocou “para-raios na cabeça de todo mundo”, nas de Lenine, é “uma tsunami”, da qual “é fácil tomar um caldo”. Gilberto Gil surge desenhando a amplitude da importância de Letieres Leite no tempo presente, quando ele ainda está alive, vivo, muito vivo.

Quando morreu, Letieres trabalhava na reelaboração do colossal álbum Coisas (1965), de um antecessor seu, o maestro negro pernambucano Moacir Santos. Lançado postumamente em 2022, Moacir de Todos os Santos acabou por se tornar o testamento musical de Letieres Leite com a Orkestra Rumpilezz. Já na parte final de As Travessias de Letieres Leite, o maestro fala poeticamente sobre o espetáculo Rumpilezz Visita Caymmi e sobre o primevo Dorival Caymmi, que diz perceber um viés soturnos, das profundezas do oceano das 4 horas da madrugad: “Não sinto Caymmi solar. Meu Caymmi é a lagoa escura do Abaeté”. Sem que uma palavra precise ser explicitada, Letieres Leite se avoluma na tela como um elo perdido entre Dorival Caymmi, Moacir Santos e toda uma população “recuada” (como definiria Mateus Aleluia) de maestros negros que conectaram pela veia afro-brasileira as músicas supostamente antípodas conhecidas como “erudita” e “popular”.

Apaixonado, Letieres discorre sobre o trabalho com a Rumpilezz e no programa socioeducativo Rumpilezzinho, representado no documentário por jovens revelações como Fabrício Mota, Géssica Omi e Duda Almeida. O maestro orquestra noções sobre diáspora africana, candomblé, orixás, percussão… Essa última, quase sempre coadjuvante nas formações musicais mais eruditas, ele afirma colocar à frente não por provocação, mas como “um fato para pensar”.
“Se você não propõe pensar sobre a trajetória da música de um lugar como o Brasil a partir de matrizes como essas, a gente nunca vai se entender, e quando a gente não se entende, não se conhece, nossa história civilizatória sempre vai ficar à parte”, acrescenta o discípulo Fabrício Mota, explicando o tamanho da pesquisa afro-diaspórica de Letieres.


Na reta final de As Travessias, numa cena de palco da multirracial Rumpilezz, os músicos de sopros (majoritariamente brancos) adentram a casa de espetáculos pela plateia, todos usando sandálias havaianas e bermudas, enquanto os percussionistas já estão posicionados como protagonistas na boca de cena. Essa é uma imagem que resume a arte e a meteórica passagem de Letieres Leite pela música erudita e popular, brasileira e mundial. O emocionado e emocionante filme de Day Sena e Iris de Oliveira faz justiça a uma perda ainda hoje difícil de equacionar. Refletir sobre o que a covid nos causou e legou, quem virá?