O guitarrista, cantor e compositor Nile Rodgers, 72 anos, forjou com sua guitarra os riffs que impulsionaram o pop universal em direção às pistas de dança a partir da metade dos anos 1970 (a bordo de sua banda, Chic). Já o guitarrista e compositor Nels Cline, 69 anos, da banda Wilco, catapultou a improvisação instrumental no rock alternativo, alcançando uma esfera de potência e desfronteirização raramente igualada. Presentes na escalação de encerramento do festival C6, no Parque do Ibirapuera, na noite deste domingo, os dois músicos estadunidenses, um natural da Costa Leste o outro do outro extremo, da Costa Oeste, reavivaram a crucialidade da linguagem da guitarra na música contemporânea.
Foi uma jornada de ilustração: em campos de atuação muito distintos, quase sem pontos de contato (country e folk e a dance music), com abordagens opostas do instrumento (Nels Cline é um guitar hero, um virtuoso do instrumento; Nile Rodgers parece que trabalha para fazê-lo desaparecer na música, tornar-se indissolúvel da massa de som), os dois exploraram as possibilidades da invenção da criação musical. Um externo, barroco; outro introjetado, minimalista – mas ambos igualmente no cume da maestria.
Nile Rodgers e seu Chic abriram com um pot-pourri de disco music com canções que os presentes estão acostumados a ver, no Brasil, em casamentos e festas, com o noivo já bêbado usando uma gravada como bandana. Le Freak, I Want Your Love, Upside Down, I’m Coming Out, entre outra dezena de hits consagrados pelas pistas, da Augusta à Groenlândia. Nile Rodgers contou curiosa história de como veio bater no Brasil no início dos anos 1970 e acabou compondo uma canção para a cidade de São Paulo que entrou no seu primeiro single, como lado B do hit Dance Dance Dance. Segundo Nile, ele ficou encantado com a semelhança entre a cidade sul-americana de prédios altos, comida diversa e garotas bonitas com sua cidade natal, Nova York. O single foi lançado pela Atlantic em 1977.
O Chic sempre cumpre o que promete, um “grande baile ao ar livre” com clássicos do funk e da disco music. A questão é que não é um grupo de covers, é o originador da bagaça toda ali na frente. No lugar do (segundo elemento ) fundador do grupo, o baixista Bernard Edwards, artesão de grooves da banda e que morreu em 1996, hoje toca um gigante gentil, Jerry Barnes, que tocou com Chaka Khan, Roberta Flack e Carly Simon. Nile Rodgers lembrou que suas canções, além de alimentarem o repertório imemorial do Chic, também foram gravadas por artistas como David Bowie, Beyoncé, Madonna e Daft Punk. Esse arco imenso de visões musicais transparece no bailão do Nile no palco, como se fosse uma aula concentrada de música para as multidões.
Nels Cline, do lado esquerdo de Jeff Tweedy, a voz e o conceito do Wilco, é como se construísse uma ponte pênsil no meio dos espaços cheios de asteróides das canções (desfibradas de refrões) do grupo. Chegou a fazer solos de 7 minutos. Além de sua guitarra, há outras duas em cena: a do blonde Pat Sansone, um som mais comprometido com a tradição melódica e, quando deixa os violões de lado, Jeff Tweedy também toca guitarra, e extremamente bem. Essa combinação de guitarras, que se mostra com grandiloquência a partir da terceira música da noite, Handshake Drugs, é um tipo de ticket para um comboio lisérgico, uma experiência que (algum amigo lembrou muito adequadamente) evoca as visões de Tom Verlaine, do Television.
Jeff Tweedy corteja o divino, com um espectro vocal que vai da explosão do punk rock a uma balada que se equilibra sobre um oceano de gelo fino já rachado, como foi com At Least That’s What You Said (do disco A Ghost is Born, de 2004, de onde saiu também a mccartneriana Hummingbird) e Via Chicago (1997), na qual o vocalista canta “Te enterrei viva em meio aos fogos de artifício”. A reação do público, respeitosa e engajada (mas profundamente inteirada das pulsões e das oferendas das músicas), fez com que o introspecto vocalista declarasse: “Acho que a gente devia morar aqui”.
O som do Wilco foi mais popular no Brasil há um quarto de século já (hoje, o antigo termo indie, que os rotulava, até já perdeu totalmente o sentido, pelo esfarelamento do mainstream). Foi quando o grupo lançou o álbum Yankee Hotel Foxtrot. Ali, havia até alguns ensaios de hits, como Jesus Etc, Pot Kettle Back e Heavy Metal Drummer, as três presentes no repertório do Ibirapuera. Mas é um grupo que não corteja jamais a aclamação por nocaute. Vai construindo sua catequização progressivamente, uma viagem sem pavimento até a percepção individual da diversidade de sua música, suas infinitas massas folhadas existenciais.