Peça ‘Macacos’ explicita o fracasso brasileiro

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A imagem mostra o ator e dramaturgo Clayton Nascimento, autor da peça "Macacos", em cartaz no Sesc Bom Retiro, em São Paulo
A imagem mostra o ator e dramaturgo Clayton Nascimento, autor da peça "Macacos", em cartaz no Sesc Bom Retiro, em São Paulo - Foto Divulgação/ Noelia Nájera

Quem espera encontrar em Macacos mais um espetáculo teatral será engolido por uma experiência visceral, um grito preso na garganta da história brasileira que Clayton Nascimento liberta com a força de um trovão em cena. Ainda que flerte com momentos de espontaneidade e interação amistosa com a plateia, a obra escrita e magistralmente interpretada por Nascimento nos arremessa para o epicentro de uma ferida que teimamos em ignorar. O racismo estrutural e o genocídio da juventude negra ainda são partes constituintes da sociedade, que muitas vezes nega sua existência.

Macacos utiliza a experiência pessoa de seu criador – do início de sua jornada sempre dificultosa nas artes cênicas até o trauma da violência racial sofrida em plena Avenida Paulista – para construir um portal para escancarar séculos de opressão e desigualdade. A cenografia mínima, com uma iluminação cirúrgica e a presença magnética de Clayton Nascimento dão uma pista do que está por vir: não é preciso alegorias para nos transportar para um Brasil onde a cor ainda sentencia, onde a história secular e oficial silencia vozes e onde o futuro de jovens negros é brutalmente ceifado pela violência.

A erudição da pesquisa realizada pelo acadêmico Clayton Nascimento, formado pela elitista e excludente Universidade de São Paulo, é notável, e ampara a dramaturgia ao longo de 2h30 a quase 3 horas de espetáculo. Dos ecos de Machado de Assis, Elza Soares e Bessie Smith às estatísticas sangrentas do Atlas da Violência, Macacos é uma aula-espetáculo que apresenta um panorama avassalador que nos impede de desviar o olhar do palco. O “professor” Nascimento fará questão de colocar a “quinta série” no seu devido lugar na plateia. A subversão do próprio título, ressignificando o insulto racista ouvido, entre tantos, pelo goleiro Aranha em uma partida de futebol, se revela como um grito de resistência e identidade.

Já no começo, uma voz principia o palco, ainda escuro, e começa a proferir de tantas formas e sem parar a palavra “ma-ca-cos”, “macacos”, “MACACOS”, como que nos querendo fazer despertar da letargia social em relação ao racismo implícito com apenas sete letras. Há, sim, nesta cena uma batalha discursiva proposta por Lélia Gonzales, transformando a linguagem, essa ferramenta colonial, em arma de afirmação. Clayton Nascimento é mestre com as palavras.

Assistir Macacos em 2025, ciente de sua estreia em 2015 e de sua trajetória premiada e impactante (circulou por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, e países como Holanda, Estados Unidos, Chile e Rússia), acende em mim – e talvez em muitos que tardaram a testemunharam a força do espetáculo – um sentimento de derrota. Não é um pedido de desculpas vazio, mas um reconhecimento doloroso de como, por vezes, nos esquivamos do confronto com as mazelas mais profundas da nossa sociedade. Sabia da peça, da sua urgência, mas talvez um inconsciente (e inconsequente) mecanismo de defesa diante de um tema tão dilacerante me afastou de ver muito tempo antes do que deveria essa obra-prima.

Mais uma cena de "Macacos", de Clayton Nascimento
Cena de “Macacos”, de Clayton Nascimento – Foto: Divulgação/ Noelia Nájera

O sucesso de público da atual temporada no Sesc Bom Retiro, com ingressos esgotados, ironicamente sublinha essa falha e, ao mesmo tempo, reacende uma chama de esperança. A busca incessante por ingressos, ecoando o conselho do próprio Clayton Nascimento para ir até a unidade e conferir os ingressos que surgem em cima da hora, demonstra que a sede por esse debate sufocado existe, e que a arte tem o poder de nos convocar de volta à realidade.

A peça Macacos é um ato de resistência, um memorial vivo das vítimas da violência racial, personificadas na imagem estampada na bandeira ao final da apresentação. E, de forma ainda mais pungente, na presença de Theresinha Maria de Jesus, mãe de Eduardo, um jovem assassinado pela polícia na porta de casa, no Rio, e cuja voz até hoje clama por Justiça. Foi por causa desse monólogo que o sistema judiciário brasileiro decidiu não arquivar de vez o processo. O espetáculo é, também, um lembrete de que a história do Brasil foi construída sobre a barbárie da escravidão (que Clayton faz questão de desbaratar com uma simples conta matemática do longo tempo que naturalizamos esse sistema hediondo no Brasil Colônia).

A magnífica obra de Clayton Nascimento tem tudo para continuar a ecoar forte, a incomodar, a nos despertar para a urgência de um futuro onde a cor da pela não seja sinônimo de violência e onde a arte seja, de fato, um caminho para a justiça e a transformação. Que a tardia presença diante dessa visceralidade que a arte de Macacos não seja um ponto final, mas um novo começo para diálogo e cobranças e reparações que não podem mais ser adiadas.

Macacos. No Sesc Bom Retiro, de sexta-feiras e sábados (19h30) a domingo (18 horas). Ingressos esgotados (mas vale tentar na unidade)

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