Othon Bastos brilha em ‘Não me entrego, não!’

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Othon Bastos, no monólogo "Não me entrego, não"
Othon Bastos, no monólogo "Não me entrego, não" - Foto Beti Niemeyer/ Divulgação

Quem espera um monólogo sobre a trajetória de Othon Bastos — ícone do cinema, do teatro e da cultura brasileira — se surpreenderá com Não me entrego, não!, espetáculo que transforma memórias em filosofia, anedotas em reflexão e a vida em arte. Dirigido e escrito por Flávio Marinho, amigo e parceiro de longa data, a peça é o oposto de um desfile de glórias passadas, mas a confissão de que a jornada de um homem que atravessou décadas foi cheia de percalços e acasos que nunca o fizeram perder o brilho no olhar nem a coragem de se reinventar.

Aos 92 anos e com 74 de carreira, Othon Bastos não sobe ao palco para contar sua história em Não me entrego, não!— ele a revive, com uma energia que desafia o tempo. O texto, esculpido a partir de centenas de páginas de anotações pessoais do ator, não se limita a episódios conhecidos, como seu papel em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, ou sua parceria com Gianfrancesco Guarnieri, em Um Grito Parado no Ar, peça de 1973 que afrontou a ditadura. Ele tece, com humor e profundidade, uma tapeçaria de afetos, frustrações e epifanias, revelando um Othon tão grandioso no palco quanto humano nos bastidores.

A direção de Flávio Marinho em Não me entrego, não! evita a armadilha da nostalgia, que já seria justa, porém previsível. Segue uma linha cronológica, mas não tão rígida. Sobressai uma narrativa que se organiza em blocos temáticos — amor, política, teatro, cinema —, cada um pontuado por citações de autores e momentos que influenciaram o ator. De forma perspicaz, Marinho transformou cerca de 600 páginas de escritos de Othon Bastos (pensamentos, anotações, preferências, entre outras palavras) em esquetes, nada alongadas, que sintetizam episódios marcantes – e outros nem tanto assim – da vida do ator. De tanto sucesso, o texto da peça virou o livro homônimo, editado pela Cobogó.

Se dependesse do jovem baiano Othon Bastos, descobre-se que o Brasil teria ganho mais um dentista e perdido um grande ator, com o perdão do clichê. Sua professora Eliete, em uma aula de literatura, recomendou firmemente que ele fizesse qualquer coisa, menos algo ligado à arte. Nesse pequeno episódio, a plateia é presenteada com o início da jornada do herói grego, que recebe o chamado para fugir para bem longe do palco. Sem ressentimento, amargura, mas repleto de um refinado humor, o texto revela que os percalços não foram poucos em sua carreira. E é isso que toca o público, que percebe que naquele palco está alguém tão frágil quanto qualquer um de nós.

Othon Bastos é capaz de trazer falas de peças e filmes antigos com o mesmo ímpeto e potência originais. Mas a encenação reverbera os tantos personagens vividos como Corisco, o cangaceiro do filme que Glauber que profere a antológica frase “Não me entrego, não!”. Pelo palco desfilarão referências a importantes nomes do teatro, do cinema e da TV, como Anton Tchekhov, William Shakespeare, Paschoal Carlos Magno e Walter Clark.

A peça tem um achado que só dignifica o espetáculo autobiográfico: a invenção da Memória. A atriz Juliana Medella, diretora-assistente, sobe ao palco e exerce papéis certeiros para o bom desenrolar da contação de histórias. Ela, a Memória, serve de ponto, contraponto para possíveis esquecimentos de Othon e contracena com ele, trazendo leveza e um tanto de espírito crítico contra qualquer forma de egolatria. Com mais de 100 apresentações, 40 mil espectadores e inúmeros prêmios, Não me entrego, não! está longe de ser um grito de resistência, mas um convite à permanência — no palco, na vida, na arte.

O ator chega a lamentar que tenha se tornado um coadjuvante, como ocorreu em filmes como Central do Brasil e Bicho de Sete Cabeças, e faz poucas referências aos trabalhos na televisão. Não me entrego, não! funciona como uma homenagem a uma carreira que merece ser relembrada pelos mais velhos e conhecida pelas novas gerações. Como o próprio Othon Bastos faz questão de frisar, o cinema é resultado do diretor; a TV, da edição; e o teatro, de atores que como ele amam o ofício de atuar.

Não me entrego, não!. De Flavio Marinho. No Sesc 14 Bis, sextas-feiras e sábados (20 horas) e domingos (18), até 21 de abril. Ingressos a 70 reais.

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