A árvore dos mamulengos

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Aquela expressão “nasceu em cima do palco” nunca foi tão literal quanto quando usada para descrever a pequena Amari.

Amari ainda estava aprendendo a engatinhar quando o espetáculo Histórias de Teatro e Circo estava sendo montado pela mãe, tias, primos, primas, avó e avô. No começo, é óbvio, atuava mais no revezamento da troca de fraldas.

Mas, nos últimos dias, agora já com um ano e meio de idade, ela era praticamente uma veterana girando seu boizinho no palco do grupo familiar Carroça de Mamulengos, no coração de São Paulo, no teatro do CCBB. 

Uma atriz de um ano e meio de idade (e outras duas com dois e três anos de nascidas, Luna e Liana) encantando uma plateia fascinada por esse teatro de sorriso franco e olho no olho de quase meio século do grupo oriundo do Cariri nordestino.

Também em cena como um griô, o avô das crianças, Carlinhos “Babau” Gomide, é uma referência no teatro de bonecos brasileiro. Foi agraciado com a Comenda Patativa de Assaré em 2022. Começou a viagem da Carroça de Mamulengos em Brasília, em 1977. Ali casou com a atriz candanga Schirley, com quem teve 8 filhos. Hoje, aos 70 anos, despe-se das vestes do patriarcado cercado por 14 mulheres, entre filhas, netas, noras e ex-companheira.

A avó das crianças, Schirley, é quem dá a chave para a compreensão de todo o espetáculo. “Um tempo atrás, eu entrei num curso de teatro. Um dia, eu perguntei aos orientadores: ‘Como faz para ser atriz e mãe ao mesmo tempo?”. Foi desenganada: é simplesmente impossível, responderam. “Foi aí que eu me voltei para a arte popular. Na cultura popular, a arte não está separada da vida”.

Assim, Histórias de Teatro e Circo passou a encenar essa simbiose encantadora entre o cotidiano e o espetáculo, mães e filhos, colo e picadeiro, tudo se entrecruzando todo o tempo. Como na trupe de Gilberto Gil, Nós A Gente, a família Gomide coloca no palco, em cima de um tablado coberto por encerado Locomotiva (que cobria os caminhões de pau de arara que desciam para o Sudeste), três gerações de uma dinâmica familiar única, entre o rigor e a improvisação.

Carregando as malas do teatro mambembe e bonecos minúsculos e gigantescos, eles trazem para a estrada não apenas o show, mas também a pedagogia do teatro – que as artistas e educadoras Maria Gomide e Schirley França conduzem em forma de seminário enquanto estão excursionando.  

Atentos às novas linguagens de redes sociais e comunicação instantânea, a trupe produz seus vídeos de divulgação, pede tagueamentos ao público, orienta as vendas online. E faz seu merchan, vendendo seu próprio “cheiro” (um spray com a essência que espalham pelos ambientes dos teatros antes das apresentações), piões de madeira, bonecos de dedo.   

Seja em cima de pernas-de-pau enormes, seja manuseando um repertório de gestos mínimos de um mamulengo circense que puxa seu circo por uma cordinha, as habilidades das atrizes e atores, dançarinos e dançarinas, cantores e cantoras vão sendo reveladas no próprio balanço da carroça.  

O conhecimento acumulado por Carlinhos Babau sacode a poeira folclorizante e assume, em seus netos e netas, a nova face do mundo, sem jamais esquecer os fundamentos, a estrutura encantatória, as coreografias da emoção. Babau é boneco na Paraíba, e Mamulengo em Pernambuco, João Redondo no Rio Grande do Norte, Cassimiro Coco, no Ceará, e por aí vai, ensina Babau – ele não é paraibano, é goiano, mas seu mestre, Antonio do Babau, vivia em Mari, na Paraíba, onde ele se iniciou (vive hoje em Juazeiro do Norte, no Ceará, onde semeia o que pode de árvores, arbustos e flores pelo sertão).

Carlos, Schirley, Maria, Isabel, Iara, Ana, Helena, Naiá, Liana, Luna, Amari, Idalia, Gabriela, Luiza, Luzia, Pedro, Matheus, João, Francisco: a família da Carroça de Mamulengos está há 48 anos vivendo e criando raízes em praça pública; entre uma valsa francesa, um aboio gonzagueano, um rap de ocasião e bois eternos do Nordeste brasileiro, vai ensinando ao Brasil como a melhor estratégia de sobrevivência ainda é o acolhimento e o carinho.

(Pena: a temporada de Histórias de Teatro e Circo, que abriga essa retrospectiva familiar, teve sua última apresentação nesse sábado, 22, no CCBB, que esteve lotado como sempre; mas há outros dois espetáculos a serem apresentados pela Carroça de Mamulengos nas próximas semanas, no mesmo local, para quem quer conhecer a trupe). Segue o serviço:

PROGRAMAÇÃO DE ESPETÁCULOS:

28/3 a 6/4: espetáculo Janeiros

Sextas, às 19h | Sábado e domingo, às 15h e 18h

11 a 21/4: espetáculo O Babauzeiro

Sexta (11/4) às 19h | Sábado e domingo, às 15h e 18h | Feriado, segunda (21/4), às 15h | 

Sexta 18/4 –  não haverá sessão

Centro Cultural Banco do Brasil – São Paulo

Rua Álvares Penteado, 112 – Centro Histórico – São Paulo – SP

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