Para além de tudo o que fez em termos de tradução, sempre nutri a vontade de conhecer pessoalmente, trocar uma ideia e tomar uns chopes com o jornalista, escritor e tradutor Eric Nepomuceno. Tirando os chopes, ontem (18) foi dia de apertar sua mão (esquerda).
Ele conversou com o público razoável que se fez presente ao auditório da Academia Maranhense de Letras (AML). Se digo conversou é porque ele mesmo dessolenizou a coisa: palestra é coisa séria, eu fico com medo e não vou. E se digo razoável é porque eu queria, apesar do chuvisco, o auditório entupido de gente, com gente fora reclamando de não conseguir entrar ou voltando da porta.
Meu desejo se justifica por estarmos diante de um monumento vivo da literatura, do jornalismo e da tradução – e muito dos Gabriel García Márquez (1927-2014), Juan Carlos Onetti (1909-1994), Juan Rulfo (1917-1986), Júlio Cortázar (1914-1984) e Eduardo Galeano (1940-2015) que conhecemos foi graças a suas traduções.
E volto ao “para além de tudo” com que abro o texto: além de traduzir estes (e outros) autores, ele se tornou amigo da maioria deles – além de Chico Buarque, Ruy Guerra e Darcy Ribeiro (1922-1997), a quem chamava de vice-pai.
Era a primeira vez de Eric Nepomuceno em São Luís e, nos passeios pela cidade, ele lembrou-se de outro amigo: o poeta Ferreira Gullar (1930-2016), para quem adorava cozinhar, mas com quem abstinha-se de discutir política – a partir da “endireitada” que o maranhense deu na vida, em colunas que escrevia para jornais.
Eric Nepomuceno é uma espécie de Jards Macalé de seu ofício: só faz o que quer. Só traduzo livros de amigos ou livros que me instiguem, disse, sem falsa modéstia. Homem de esquerda convicto, nunca traduziu, por exemplo, o Nobel de literatura Mario Vargas Llosa, pelo mesmo motivo que não discutia política com Gullar.
Sua fala é por vezes digressiva e quando se afastava de um assunto ia a outro igualmente delicioso. Pediu permissão para ler “Telefunken”, primeiro conto que escreveu na vida, aos 20 e poucos anos, contado do ponto de vista de uma criança, publicado em 1973. Quando tossiu a primeira vez, desculpou-se e afirmou: não é covid, é cigarro, o bom humor sempre presente.
Tira sarro de si mesmo dizendo ter pouca imaginação. Para adiante afirmar, sério, que a principal matéria-prima de sua escrita é a memória. O que me provocou a tentar escrever este texto usando apenas a minha, sem ter anotado nada, a caneta sacada do bolso apenas para colher seu autógrafo e o celular apenas para um retrato.
Sem diploma de jornalismo, Eric Nepomuceno formou-se no ambiente então estimulante de redações como a do Jornal da Tarde. No exílio foi colaborador de veículos como a revista Crisis, fundada pelo amigo Eduardo Galeano. Hoje colabora com diversos jornais estrangeiros, porque vê a mídia brasileira como um amontoado de veículos de voz única.
Admirador de Bob Dylan, Eric Nepomuceno acha injusto o americano ter um Nobel de literatura e Chico Buarque, que ele julga melhor letrista, não. Mas o que lhe causa indignação mesmo é o fato de nenhum agente do Estado, responsável por crimes perpetrados durante a ditadura militar, jamais ter sido condenado. O [Sérgio Paranhos] Fleury morreu porque estava de barco, bebeu demais, caiu e se afogou, lembrou.
Sobre Ainda Estou Aqui revelou ter visto o filme de Walter Salles depois de ler o livro de Marcelo Rubens Paiva, porque geralmente o livro é melhor que o filme. Indagado se já tinha visto a adaptação da Netflix para Cem Anos de Solidão, foi categórico: nem assisti, nem vou. Por fidelidade a Gabo, que passou a vida negando pedidos para adaptações ao cinema e televisão. Ele queria que cada um imaginasse o rosto do coronel Aureliano Buendía. Os filhos acharam por bem ceder, embora tenham se preocupado com critérios como a série ser rodada na Colômbia, com diretor e atores colombianos, mas eu não vou ver.
Entre tantas histórias deliciosas que contou, uma envolve o próprio Gabo, a quem consultou uma única vez sobre uma tradução. Eric Nepomuceno se viu diante de uma encruzilhada para a qual não encontrava solução e passou um fax com uma lista com meia dúzia de palavras, cujas frases não faziam sentido ao serem traduzidas. Gabo devolveu o fax: ao lado de cada palavra escreveu algo como “vide dicionário”. Ao lado de cada um dos seis conselhos do traduzido, a tréplica arrancou gargalhadas dos presentes: escreveu seis vezes “vai-te à merda”. Depois trocaram um telefonema, riram de si mesmos e a tradução avançou com Gabo se valendo do mesmo princípio que levava-o a negar pedidos de adaptações para Cem Anos de Solidão.
Eric Nepomuceno é, repito, um monumento vivo da literatura, do jornalismo e da tradução. Ontem ele contou, para mais gargalhadas, que além do que é poderia ser outras duas coisas: cozinheiro, eu cozinho muito bem, mas nunca um restaurante me chamou para fazer um teste; e motorista, eu dirijo muito bem, mas nunca ninguém me chamou para assaltar um banco. Para nossa sorte e alegria restou-lhe escrever e traduzir. E conversar com quem tenha interesse em suas histórias.