A audição de Rua (2025), segundo álbum da banda Música de Montagem, remete imediatamente o ouvinte mais esperto a nomes como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção (1949-2003), Premeditando o Breque e Grupo Rumo, ou seja, a vanguarda paulista.
Rua começou em “Escuta” (Clara Bastos, Gustavo Lenza, Juçara Marçal, Marcelo Segreto, Priscila Brigante, Romulo Alexis e Sérgio Molina) – faixa composta no Laboratório Música em Nuvem, a que Sérgio Molina (piano, teclado, violão processado e vocais; que em 2009 musicou letras inéditas de Itamar Assumpção em Sem pensar, nem pensar, álbum dividido com Miriam Maria e a que comparecia o primeiro embrião do Música de Montagem), líder do grupo, foi convidado pelo Sesc São Paulo, que consistia em reunir artistas pela internet para compor uma canção em público; estávamos em plena pandemia de covid-19, o grupo passava por mudanças e aos remanescentes se somaram os nomes que viriam a ser convidados do álbum.
“Tudo mutado surdo mudo/ Tudo vai virar canção”, diz o refrão, sinal dos tempos. Ou como cantam em “Psiu!”, faixa que abre o disco: “Silêncio é a resposta do astuto/ Silêncio é a pergunta do burro”, também refletindo os tempos de orgulho da própria burrice que (ainda) acomete parte da população do planeta. Ou em “Elegia”: “O que será dessa triste lavoura/ Que já foi um país?/ Quanto ainda esperaremos em vão?/ Dias iguais, noites sem fim”.
O grupo se completa com Xofan (voz principal), Clara Bastos (baixo e pedais), Vitor Ishida (guitarra e pedais) e Priscila Brigante (bateria e bateria eletrônica).
A cantora é um daqueles acontecimentos inusitados da música popular brasileira: Xofan era fanática pelo grupo, comparecia a quase todos os shows antes da pandemia e era aluna de Molina na Universidade. As felizes coincidências não param por aí: Xofan sugeriu convidarem Ishida e descobriram que eles e Molina nasceram todos dia 13 de março.
O nome do grupo vem do primeiro livro de Molina, Música de Montagem: a Composição de Música Popular no Pós-1967 (É Realizações), publicado no mesmo ano do álbum de estreia da banda, o homônimo Música de Montagem (Circus). O livro é um ensaio sobre a revolução provocada pelos Beatles na produção musical após o lançamento de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). Rua marca uma guinada em relação ao álbum de estreia, entre o reencontro de Molina com o piano e o trabalho com samplers e, a partir daí, tudo sendo criado e arranjado coletivamente.
Como a própria São Paulo que sedia o Música de Montagem, com o fim da pandemia a banda (se) voltou para (a) Rua, expandindo os próprios horizontes: além de Marcelo Segreto, cantor e compositor à frente da Filarmônica de Pasárgada (outro grupo herdeiro e hoje representante da vanguarda paulista), parceiro na citada “Escuta” (e em “Espelho”), o álbum registra parcerias de Sérgio Molina com Kléber Albuquerque (“Psiu!”, “Quem será que eu sou?”), Lilian Jacoto (“Sentido”, “Elegia”). A faixa-título é assinada por Molina, Segreto e Albuquerque.
O time se completa com os vocais de Aninha Ferrini, Melina Molina e Klaus e a participação especial de Juçara Marçal (voz em “Escuta”), outro nome que participou do experimento durante a pandemia e permaneceu até o álbum.
Gestado desde a pandemia e com ecos dos pesadelos da época nas temáticas abordadas, Rua está longe de ser um disco datado ou anacrônico. A faixa-título, por exemplo, debate o uso excessivo de telas e as mudanças climáticas: “A rua ruindo indo indo, te seguindo pra te apavorar/ E o sol ardendo doendo dentro derretendo/ O seu cérebro, o seu celular”.
O mercado e a forma de consumir música têm mudado rapidamente – seja pelo uso de inteligência artificial e algoritmos ou pela concorrência da audição com outros afazeres cotidianos, inclusive as telas. O esmero com que os músicos, operários humanos do Música de Montagem elaboram coletivamente composições, arranjos e gravações merece fruição atenta. Cada audição de Rua é e merece um ritual particular.
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Serviço: o show de lançamento do álbum Rua, do grupo Música de Montagem, acontece no Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, São Paulo/SP), dias 15 (sábado, às 20h30) e 16 (domingo, às 17h30). Os ingressos custam entre R$ 15,00 e R$ 50,00 e podem ser adquiridos no site do Sesc/SP.
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Ouça Rua: