A apropriação de ‘Eu sou um Hamlet’

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Imagem mostra o ator negro Rodrigo França, que interpreta o monólogo 'Eu Sou um Hamlet', com
'Eu Sou um Hamlet', com Rodrigo França, no Sesc Pinheiros - Foto: Marcio Farias/ Divulgação

A tragédia shakespeariana encontra um novo e potente corpo na interpretação de Rodrigo França em Eu Sou um Hamlet, monólogo em cartaz no Sesc Pinheiros. A montagem, sob direção de Fernando Philbert, opera uma costura complexa e visceral entre a tessitura clássica de William Shakespeare e a realidade enfrentada por homens e mulheres negros no Brasil. França não apenas veste o papel de um príncipe dinamarquês; ele o encarna, transpondo as angústias e dilemas de Hamlet para o contexto brasileiro, onde a busca por justiça transcende a vingança individual e se manifesta na luta diária contra o racismo estrutural e a herança da escravidão.

O título Eu Sou um Hamlet já carrega uma ousadia implícita. Em um primeiro momento, a imagem de um ator negro interpretando um príncipe dinamarquês pode soar dissonante. Mas é justamente nessa aparente contradição que reside a força do solo. França se apropria do personagem, reivindicando para si e para a comunidade negra o direito de habitar espaços historicamente negados. Ao dizer Eu Sou um Hamlet, ele não está apenas representando um papel, mas afirmando uma identidade, uma presença, uma humanidade frequentemente questionada e silenciada a milhões de negras e negros brasileiros.

A peça, com tradução de Aderbal Freire-Filho, Wagner Moura e Barbara Harrington, e adaptação de Jonathan Raymundo, Fernando Philbert e Rodrigo França, se distancia da interpretação do texto original para criar um diálogo profundo com a realidade brasileira. Não se verá, no palco, a trama palaciana de Shakespeare. Montagens como O Dia das Mortes na História de Hamlet, adaptação do dramaturgo francês Bernard Marie-Koltès (1948-1989), confinava a clássica história ao “dia da matança”. A tragédia original se encerra como um cenário de morte e destruição, simbolizando as consequências da vingança e da corrupção.

O monólogo utiliza a história de Hamlet como um fio condutor para tecer reflexões sobre temas urgentes como a violência, a segregação e a busca por identidade dos negros. O Hamlet de França não busca vingar a morte do pai; ele encarna a luta ancestral por reconhecimento, dignidade e um lugar de direito na sociedade. A peça questiona o mito da democracia racial, expondo as feridas abertas pela história e a persistência de um sistema que marginaliza e oprime. Eu Sou um Hamlet convida o público a confrontar suas próprias certezas e a repensar as narrativas que moldam a nossa sociedade, a partir da potente costura proposta por Rodrigo França entre o texto shakespeariano e a vivência negra no Brasil.

Eu Sou um Hamlet. Com Rodrigo França. No Sesc Pinheiros, quinta-feira a sábado (20 horas), até 22 de fevereiro. Ingressos a 50 reais.

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