O baile do Macca

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O “edifício da vida” de Paul McCartney passa sempre no telão, em um vídeo, antes do início do show, como se fosse uma contagem regressiva. Um gigantesco álbum de fotografias que começa nos primórdios, com fachadas de casas, moradias, terraços, janelas, automóveis, Swingin London, Beatles, amigos, colaboradores, Pete Best, bottons, pins, George Martin, Wings, Linda. O filme percorre uma certa ordem cronológica, a vida de Paul vai avançando em fatos, fotos e pulôveres pela carreira solo até atingir a maturidade, o agora. Mas aí, no topo do edifício, quando tudo chega ao presente (ou ao terraço, ao rooftop do mundo), vêm os Beatles em preto e branco de volta sintetizando tudo, a música do início se reapresentando como uma tela mais hegemônica do que todo o acervo do museu.

Pode não ter sido essa a intenção da edição do vídeo do telão, mas resume magnificamente a presença mitológica de Paul McCartney, aos 82 anos, em cima de um palco correndo o mundo como se fosse um artista mambembe, um coletor irrefreável de ingressos. Ele é o inventariante do legado mais importante da música popular. Como lidar com a ideia de que as coisas que você criou ainda na mais tenra juventude mudaram o curso da cultura universal? Influenciaram o comportamento, a musicalidade, a perspectiva existencial de gerações? É possível ir à frente lambendo a si mesmo infinitamente? Qual combustível pode mover essa lenda adiante? É a pergunta que mais mobiliza o copioso Clube dos Observadores Críticos do Macca.

A segunda noite da turnê Got Back 2024 no Brasil, no Allianz Parque, em São Paulo, na noite desta quarta-feira, 16, veio para dar mais uma chance de respondermos a essas questões. Nunca é uma ocasião frugal: como de hábito, o olímpico Paul desfilou 34 canções em duas horas e meia de festa. Logo após o vídeo da contagem regressiva, ele entrou em cena com sua banda com Can’t Buy Me Love, de 1964 (no dia anterior, terça, 15, abrira com A Hard Day’s Night, também do epicentro da beatlemania). Dali em diante, trocou pouco, mas o suficiente para tornar o show “único” em relação aos outros, oferecendo os presentes possíveis para um show dessa envergadura – em vez de Drive My Car (do álbum Rubber Soul, de 1965), tocou All my Loving (do disco With the Beatles, de 1963); no bis, em vez de Birthday (White Album, 1968), Day Tripper (do single We Can Work It Out, de 1965). O resto foi tudo rigorosamente igual, até a “nova” canção Now and Then no meio.

A excelência do show de Paul se assenta não na tecnologia, na mise-en-scène, na féerie (apesar do belo foguetório em Live and Let Die). Ali se celebra o poder da música, a reafirmação do valor da criação artística, do engenho humano, é quase como se estivéssemos assistindo a um ato de resistência. Paul não apela a grandes manobras e, quando eventualmente lança mão de um truque, é somente porque é também de natureza sonora – durante a execução de Got to Get You Into My Life (do álbum Revolver, de 1966), uma homenagem dos Beatles ao som negro da Motown, subitamente, uma seção de metais (trompete, trombone e sax) é revelada tocando no meio do público, no lado esquerdo da plateia, e o show joga holofotes sobre os músicos, reacendendo a infusão psicodélica que Paul teve quando a compôs.

Na banda, já é amplamente sabido, pontifica a figura do baterista Abe Laboriel Jr., fusão de scholar de Berklee com fã dos trovões de John Bonham (1948-1980). Laboriel tem um coté de showman, de caras e bocas e danças, e providencia “escada” para o chefe brilhar ainda mais. As guitarras de Brian Ray e Rusty Anderson formam uma escolta de mil solos em volta de Paul, uma de cada lado, e o veterano Paul Wix, nos teclados, sintetiza até os assobios para as canções que os pedem, para desafogar o anfitrião. Paul, que toca cerca de 40 instrumentos, coloca o baixo no centro por seu referencial histórico, mas toca até bandolim – na música Dance Tonight (faixa de abertura do disco solo Memory Almost Full, de 2007).

A atriz Natalie Portman, no telão, é quem faz a transposição da letra de My Valentine para a linguagem dos sinais. Muito delicado. Bastante gente parece se incomodar com a gentileza, a elegância e a reverência com que Paul trata a plateia, em especial o público brasileiro e o Brasil. Se vem demais aqui, algo está errado – é o mesmo raciocínio vira-latas que já tentou fustigar o fascínio que outros artistas demonstraram pelo País, gente como Dionne Warwick, Nick Cave, Peter Tosh e Chrissie Hynde. Essa autodepreciação vem de segmentos recalcados que vendem a frustração como commodity. Se Paul pode se dar ao luxo de entrar no Clube do Choro de Brasília e fazer um show-surpresa (como fez em 2023), é porque conquistou essa iluminação.

O show tem de fato esse clima de “Traga sua mãe, sua tia, seu vizinho aposentado para fazerem o reconhecimento das pulsões que os mobilizaram na juventude!”, mas é insuficiente para definir o alcance da música de Paul McCartney. Não é um ancoradouro de nostalgia, é um propulsor de humanidades.

Bom, falamos muito, mas também não conseguimos explicar o combustível que Paul toma para ir adiante. Mas parece muito mais simples do que imaginamos. Um chute: se você conseguiu reunir uma puta banda, possui um repertório de composições extraordinárias que o público conhece de cor e salteado (e canta todas as letras em coro), dispõe de um som de magnífica qualidade, já tem dinheiro, fama e amigos talentosos em todo o planeta, então por que não fazer um show colocando todos esses trunfos no palco e se esbaldando em 34 canções e duas horas e meia de festa? Bom, só existe um artista que reúne todas esses requisitos acima, e ele pensou justamente nisso: vou fazer um baile eterno porque eu posso. Quer diversão melhor?

Fiquemos então com um tributo do Macca ao Brasil, de 2018, que parece explicar quase tudo:

Bright lights ahead
Music and fun
Nights are for dancing
And the days for the sun
All kinds of weather, will surely come and go
But they’re together
And together they will steal the show
Wooh ooh ooh

(Back in Brazil, Paul McCartney, 2018)

SERVIÇO

Got Back Tour 2024. Paul McCartney e banda. Último show no Brasil sábado, dia 19, Florianópolis, no Estádio da Ressacada

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