Sergio Krakowski em um mergulho radical na improvisação

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Sergio Krakowski - foto: divulgação
Sergio Krakowski - foto: divulgação

Gravadora e fábrica de elepês, uma das poucas em atividade no Brasil, a Rocinante vem se destacando pela qualidade de seu elenco e lançamentos. Alguns destes estarão reunidos hoje (16) e amanhã (17) no festival Noites Rocinante: Bernardo Ramos, Sergio Krakowski, Marcelo Galter e José Arimatéa se apresentam no Teatro Brigitte Blair, em Copacabana, com ingressos a partir de R$ 50,00, disponíveis no site Sympla e na bilheteria da casa.

Discípulo de Hermeto Pascoal e Itiberê Zwarg o guitarrista Bernardo Ramos se apresenta hoje acompanhado por Reinaldo Boaventura (percussão) e Bruno Aguilar (contrabaixo), levando ao palco o repertório de Poemas Para Trio, seu álbum recém-lançado, no primeiro show do Noites Rocinante. Na sequência é a vez do pandeirista Sergio Krakowski, com a experiência radical de improvisação, cantando, acompanhado de pandeiro e eletrônica. O músico, que já chamava a atenção desde os tempos de Tira Poeira, lidera o trio – que se completa com Todd Neufeld (guitarra) e Vitor Gonçalves (piano) – que gravou com Jards Macalé (voz e violão) o álbum Mascarada, dedicado ao repertório (e improvisações sobre ele) de Zé Kéti (1921-1999).

A programação do Noites Rocinante continua amanhã, quando Marcelo Galter leva ao palco do Brigitte Blair o aclamado Bacia de Cobre, seguido por José Arimatéa e seu Brejo das Almas.

FAROFAFÁ conversou com exclusividade com Sergio Krakowski.

Sergio Krakowski - foto: Aline Müller/ divulgação
Sergio Krakowski – foto: Aline Müller/ divulgação

QUATRO PERGUNTAS PARA SERGIO KRAKOWSKI

ZEMA RIBEIRO: A Rocinante reúne um time de primeira linha em seu cast e, particularmente no evento Noites Rocinantes. Como você se sente integrando esta constelação?
SERGIO KRAKOVSKI: Fazer parte da Rocinante, para mim, é mais que uma alegria, é a realização de um sonho, que é o de poder fazer a música que eu faço sem precisar me preocupar com adequações e realmente me sentir livre para expressar o que eu preciso. Eu acredito que essa Noite Rocinante é uma atitude revolucionária, considerando o cenário atual, contemporâneo, a gente poder apresentar, primeiro, no Rio, que tem muito poucos espaços para experimentação, para música investigativa, a gente poder fazer isso com essa infraestrutura da gravadora, eu acho que é uma atitude mesmo revolucionária, fundamental, eu acredito nisso como forma de transformação da situação atual, precária, que a gente se encontra, cultural e até humana. Essa é a ação que a gente pode fazer no mundo, como artista que trabalha nesse lugar, nesse nicho da investigação musical, e aí eu falo por mim, é a isso que eu me dedico há tantos anos, eu diria que toda minha carreira.

ZR: Teu trabalho mais recente é Mascarada, homenagem a Zé Keti, com Jards Macalé. Qual o lugar dele em tua formação e memória afetiva?
SK: O trabalho Mascarada, para mim, é uma coroação de trabalho autoral que eu faço e fiz, morando em Nova York, e continuo fazendo à distância, com meu trio lá, sempre que eu posso voltar para lá ou trazê-los para cá. Esse meu trio, que é um trio com o Vitor Gonçalves no piano, o Todd Neufeld na guitarra, e eu no pandeiro, sem eletrônica, só o pandeiro. Para mim esse trio é o primeiro trabalho que eu considero completamente autoral, num certo sentido. É uma busca de muitos anos, que começou lá no meu envolvimento com o choro, que é onde eu nasci musicalmente, que culminou lá em Nova York ao encontrar e construir esse trabalho de investigação musical. A gente primeiro lançou um disco meu [Pássaros: The Foundation of The Island], todo autoral, lá em Nova York, em 2016, e aí a gente começou a trabalhar um repertório de clássicos do samba, que depois migrou realmente para a obra do Zé Kéti. Quando eu digo coroação é porque a gente já vinha trazendo essa pesquisa de improvisação ligada à raiz da música brasileira, sem cair em maneirismos, realmente buscando através da raiz, da conexão com a raiz, e aí a gente sentiu necessidade de ter um cantor com a gente, para expressar a parte da letra do Zé Kéti, que é algo fundamental, e o Jards topou, a gente propôs pro Jards, e nesse sentido eu acho que é uma coroação, a gente poder ter a presença do Jards Macalé cantando o disco praticamente inteiro e trazendo a linguagem que a gente já pesquisava durante os oito anos que eu passei lá em Nova York para dentro da esfera do samba e junto com o Jards que teve contato pessoal, direto com o Zé Kéti. Nesse sentido também a gente honrar essa tradição do encontro pessoal, da transmissão da experiência, na vivência musical que o Jards teve com o Zé Kéti, que a gente pode ter com o Jards e seguir nessa cadeia de compartilhar a experiência, não simplesmente lidar com o conhecimento como algo estéril, que você fica ali passivamente vendo um vídeo no youtube [risos], não que isso não seja também uma fonte, pode ser maravilhosa, mas buscar também esse encontro, que eu acho que falta tanto nesse mundo virtual, completamente sem conexão corpórea [risos]. A gente buscou isso, eu acho que com o álbum tem muito dessa conexão corpórea, de trazer realmente para o som essa investigação do samba e do que é a nossa raiz como país, como cultura.

ZR: O que o público pode esperar de tua apresentação no Noites Rocinante e quem te acompanha na apresentação?
SK: Essa minha apresentação hoje no Noites Rocinante é o meu show solo. Esse show solo é, para mim, o meu maior desafio artístico, até hoje. Ele vem sendo gestado há mais de 20 anos, literalmente. Era um desejo que eu tinha há muitos anos, antes até de ter feito um doutorado em computação musical, que me permitiu desenvolver muito do que eu uso no palco, mas ele é muito mais do que só essa aplicação, ele é uma busca pessoal por uma expressão total usando o pandeiro como sample de emissão dessa expressão. Então é um desafio muito grande, porque eu me exponho completamente, em todos os sentidos, quer dizer, eu estou ali no palco, só com um pandeiro na mão, e também canto, que é algo que é uma novidade para mim, mas vem também de uma busca muito longa, de cantar no samba, durante décadas, junto com o Gallotti [Eduardo Gallotti, cantor, compositor e multi-instrumentista (1964-2022)], nas rodas de samba no Anjo da Lua, que a gente fazia, no Democráticos, na Orquestra Republicana, que são trabalhos de baile que a gente viveu, em que eu também pude compartilhar ali no coro, cantar e tudo mais. Mas tem essa questão de eu estar sozinho no palco e o show é completamente improvisado, então tem esse segundo elemento de risco total, além de eu estar sozinho, eu estou sozinho sem saber para onde eu vou [risos], digamos assim, mas justamente por essa posição totalmente vulnerável é que eu acho que a gente encontra, e quando eu digo a gente, eu e o público, a gente encontra um caminho conjuntamente. Essa, para mim, é a experiência mais explícita de improvisação que eu pude encontrar. Eu acho que foi por isso que eu cheguei nesse formato, porque para mim, a improvisação tem a ver com esse risco absoluto, se não houver o risco absoluto eu não me sinto em perigo a encontrar esse canal de comunicação. E quando há esse risco esse canal se apresenta na maioria dos casos, quer dizer, depende muito dessa conexão imediata entre o meu estado como um todo, o estado da plateia, e essa conjunção que a gente cria quando acontece esse show. Então, esse show tem essa característica, ele é um salto no escuro, ele é um salto completo, mas evidentemente que para esse salto acontecer existe uma estrutura que eu construí durante esses mais de 20 anos de pesquisa. Então, a coisa não acontece simplesmente porque eu estou ali, fecho o olho e pronto. Primeiro tem um trabalho muito árduo, físico, de construção da linguagem de pandeiro, e da fisicalidade que o pandeiro exige para poder canalizar esse tipo de experimentação. E depois, justamente, a voz, que entra como um elemento catalisador da comunicação com o público, que é algo que vai direto no outro, no ouvido do ouvinte. E por fim esse elemento eletrônico, que foi um grande desafio, esse demorou mais do que todos os outros, porque eu tive que construir um software, um software que me permita tocar com a máquina, ou seja, fazer uso da máquina para expandir a minha expressão, mas que não me tire do lugar, porque o grande problema da computação é que ela exige uma atenção racional que é completamente o contrário da catarse do transe musical. Então o grande problema ali, que demorou tanto, foi justamente encontrar como eu podia construir softwares que me permitem que eu os use, mas que não me tirem a atenção, não me tirem a presença profunda que exige esse tipo de conexão. Então quando eu consegui encontrar isso foi que eu me senti pronto para fazer esse projeto solo mesmo. E é junto com isso, além da construção do software, além da construção técnica do pandeiro e da voz, tem também as composições que eu criei nesse percurso, que são composições que dizem respeito também à minha vivência, à minha história, a expressões políticas que eu quero tomar nesse momento, e eu acho que formam então esse show solo chamado Boca do Tempo, que a gente vai apresentar hoje.

ZR: Eu conheci o teu trabalho no grupo Tira Poeira, curiosamente um dos meus primeiros textos publicados na imprensa foi sobre o álbum de estreia [2003] de vocês, saudado por Guinga como “uma vassourada na mesmice”. Ali o teu pandeiro já chamava a atenção. Me dê notícias do grupo: segue na ativa ou acabou?
SK: O Tira Poeira, para mim, é uma grande emoção, eu acho que aquele grupo é uma emoção cristalizada num encontro muito energético, muito profundo, muito explosivo, que foi esse encontro dos cinco. São cinco elementos que são peças chave para essa explosão acontecer. O grupo praticamente não tem nenhuma agenda, mas eu sinto que está sempre na iminência de fazer acontecer. Foi ali que eu plantei tudo que eu estou construindo agora, colhendo em termos musicais, já estava, num certo sentido, latente, naquilo que a gente gravou no primeiro disco, que é um disco que a gente fez só choro. E eu continuo tendo a mesma sensação absolutamente arrebatadora de tocar choro. Tocar choro para mim é uma coisa que é inacreditável, eu me sinto completamente imerso na música, é uma parte, um braço meu [risos], eu me entrego, faz parte fisicamente do meu corpo. Inclusive agora, há pouco tempo, eu tive uma experiência que foi maravilhosa, de ir na roda do Edu Neves, que aconteceu na semana passada, numa casa chamada Gloriosa Cultural, no Catete, e o Edu Neves tem essa roda que, para mim, quando eu entrei, eu não acreditei, eram os músicos que eu mais admiro no mundo [risos], sentados ao redor de uma mesa tocando aquela música que é inacreditável, e fazendo ela existir de uma forma real, de novo, sem maneirismos, sem pudor, sabe?, diretamente na fonte, e com uma vitalidade, de buscar também, fazendo experimentações no contexto do choro, mas totalmente abertos a outras hipóteses. Às vezes ele para todos os instrumentos, deixa só a percussão e ele tocando flauta, experimentações que o Edu traz como líder do grupo, mas que também é um grupo, são pessoas, músicos inacreditáveis. E por acaso, nesse dia, que foi o primeiro dia que teve essa roda, foi o Marcos Suzano, grande, queridíssimo amigo e mestre, figura que foi uma referência fundamental para minha carreira, e a gente ali dando canja, o Bernardo Aguiar tocando junto com o Suzano, junto comigo, junto com o Jovi [Joviniano, percussionista], todo mundo ali naquela roda, poxa, com uma [interrompe-se]. Por isso que eu digo que a sensação é que quando eu entro em contato com o choro é uma explosão, é inacreditável a potência do choro. Eu acho que a gente explora muito pouco. Essa roda é fundamental, essa roda do Edu Neves e todas as rodas que buscam isso, essa potência, que eu acho que é o que o Tira Poeira buscava, essa experimentação usando a matéria direto da raiz, sem pudor.

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