O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto

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Romeiros na frente da capela de Santo Inácio de Loyola, no Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no município do Crato, Ceará, durante a missa em memória dos camponeses assassinados pelas forças públicas em 1937

Há 24 anos, todo mês de setembro, uma romaria rasga as terras secas e empoeiradas do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, a 38 quilômetros do Crato, no Ceará, em busca de reacender uma história há muito tempo apagada. Os romeiros vêm a pé, a cavalo, de carro, em cadeira de rodas, de moto, e trazem cestos de alegrias de quintal: melancias, laranjas gigantes, bananas, mamões, feijão de corda, rapadura, maracujás. As barracas vendem baião molhado com galinhada, pastel, caldo de feijão verde com queijo coalho. A exibição de fartura tem um motivo: naquela comunidade, há cerca de 90 anos, produzia-se de tudo e em grande quantidade, e tudo era de todos. Não havia fome nem flagelo, a água brotava de um riacho e de um poço que resiste num cânion na parte de trás do vale. A comunidade era liderada por um religioso, o beato paraibano José Lourenço Gomes da Silva, filho de escravos alforriados. Até que seus cerca de 1.500 moradores foram considerados “extremistas”, uma ameaça à institucionalidade, e se viram furiosamente atacados pelas forças públicas, polícias locais e estaduais e federais, sendo expulsos dali. Milhares foram mortos nessa ação do Estado brasileiro – alguns estimam as perdas em 400 mortos, outros falam em milhares assassinados (antigas fontes chegaram a falar numa vala comum onde foram jogados mais de mil corpos).

No domingo, 22 de setembro, a romaria começou nas primeiras horas da manhã. Cerca de 2 mil pessoas acorreram ao vale em que prevalece a rara construção sobrevivente do massacre, uma capelinha com uma imagem destacada de Santo Inácio de Loyola. O padre Vileci Vidal, que habitualmente celebra a missa dos romeiros, veste o tradicional chapéu de couro de sertanejo encimando a batina. O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto hoje possui três construções, restauradas pelo governo cearense, e um único morador: Raimundo Batista Lima, de 80 anos, que chegou ao Caldeirão em 1991. Raimundo é uma espécie de guia autonomeado, mas sua presença é extraoficial ali, o que o incomoda sobremaneira. “O senhor acha isso justo?”, pergunta, a todos que o interpelam, reivindicando seu reconhecimento como anfitrião.

Há algumas décadas, um grupo de trabalhadores sem terra tentou voltar a habitar o vale do Caldeirão. O governo não viu com bons olhos aquele reagrupamento, e o Estado cearense achou por bem comprar umas terras em outro lugar, mais adiante, para que passassem a viver. O local tornou-se o Assentamento 10 de Abril, que hoje possui 50 famílias a poucos quilômetros do antigo domínio do Beato José Lourenço. “Mas não tinha água, não tinha nada, tivemos que fazer tudo”, conta Francisco Ismael, rapaz filho de assentados que veio ajudar na limpeza das instalações do Caldeirão.

A romaria do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (ou Caldeirão dos Jesuítas, como também é conhecido) evoca uma pequena Canudos no coração do Ceará, uma gigantesca tragédia que é simbólica na luta pela autossuficiência e autogestão empreendida pelos estratos mais humildes do povo brasileiro. A produção do Caldeirão, abastecido pela água do entorno, era distribuída nos currais onde os governos confinavam os flagelados da seca, conhecidos como Campos de Concentração de Flagelados. Dessa história, espalhou-se um sétimo ser mitológico incorporado à cultura popular do sertão (ao lado de Lampião, Antonio Conselheiro, Frei Damião, Padre Cícero, Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré): o beato José Lourenço. Que, não por coincidência, era negro, era pobre, era nordestino, e apregoava a independência dos camponeses em relação aos senhores da terra.

“Nós temos o caldeirão como a memória da democratização da terra, como a memória da reforma agrária, do uso adequado da terra e da socialização disso”, diz Angelita Maciel, do movimento de romaria em Juazeiro do Norte, ligada à pastoral da Basílica Nossa Senhora das Dores. Angelita conta que o Caldeirão foi exemplar na questão do acolhimento dos flagelados, dos mais humildes, e sua experiência socializante começa com a cessão de uso de uma terra pelo Padre Cícero Romão Batista ao seu seguidor, o beato José Lourenço, que tinha sido expulso de uma terra arrendada pelo fazendeiro local. A terra do Caldeirão pertencia ao Padre Cícero, que protegia os camponeses. “E quem vinha aqui comia e levava para casa, então aqui tinha fartura e era de todos, na medida de precisão de cada um”, conta Angelita. Mas o padim morreu em 1934, e sua herança passa a ser disputada pela Igreja. A Igreja católica, para se livrar do incômodo de um líder messiânico (e, principalmente, retomar a propriedade), insuflou o descontentamento contra o Caldeirão, na visão dos historiadores, o que culminaria no massacre, dois anos depois.

A historiadora Fátima Pinho, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, professora da Universidade Regional do Cariri (URCA) e pesquisadora da história religiosa e social de Juazeiro, conta como se organizou a demonização do beato José Lourenço e sua comunidade. Ela debateu o tema recentemente em uma tese sobre a ação da imprensa na criação de versões convenientes para apoiar ações bárbaras, e acredita que isso envolve uma discussão sobre comunismo e fé. Espalhavam que o Caldeirão, na verdade, era integrado por comunistas que tinham tentado a a revolução em 1935, tinham sido derrotados e criaram um abrigo ali. O beato José Lourenço foi acusado de ter santificado um boi, de manter um harém com 33 mulheres, de acumular ouro, depois disseram que era homossexual, em seguida que era estuprador. O estopim para o massacre, presume-se, foi uma acusação de que o beato teria mandado importar armas da Alemanha. As caixas com as armas estariam escondidas na igreja. Depois do morticínio, abriram as caixas, e eram santos que iriam decorar a nova capela construída pelos moradores (entre eles, o Santo Inácio de Loyola que permanece no altar).

A primeira invasão do Caldeirão se deu em 1936. Houve então uma dispersão da população do caldeirão, porque o beato José Lourenço aconselhou os seguidores: “Olha, não vamos reagir, vamos fazer a coisa de forma pacífica”. No dia 11 de setembro de 1936, o beato foge para Pernambuco. Alguns vão para a Bahia, integrar-se a uma comunidade em Pau de Colher. Muita gente foi presa. Entre esses, estava o braço direito de José Lourenço, o beato Severino Tavares. Severino era um porta-voz do Caldeirão, andava pelo sertão pregando arrependimento e dizendo das vantagens do lugar, o que atraiu muitos romeiros. Esses romeiros seguiam Tavares como um líder. Quando o beato Severino Tavares é solto da prisão em 1937, ele arregimenta alguns seguidores e retorna. A diferença é que o beato Severino não achava muito legal a história de oferecer sempre a outra face.

Os remanescentes então voltam a reerguer a comunidade do Caldeirão. Desse momento, o beato Zé Lourenço já não participa, está em Pernambuco, em Exu. Quando o governo descobre que já está sendo reorganizado o Caldeirão, organiza uma nova invasão, em 1937. Antes do massacre, mandam avisar que os habitantes têm a permissão para sair e levar tudo que fosse deles. Responderam que não havia nada deles. “Tudo é nosso”. O beato Severino Tavares esboça uma reação, uma resistência. Até hoje não se sabe direito quantas pessoas morreram. Severino foi morto. Dizem até que houve bombas jogadas de um avião sobre os camponeses em fuga, e que o piloto seria natural do Crato, essas tragédias que se aprofundam nos detalhes. Mas o comandante da operação, o tenente do Exército José Goes de Campos, negou posteriormente que tenha mandado bombardear os seguidores do beato. Nunca encontraram o corpo de Severino Tavares. O tenente Goes era orientado pelo então Chefe de Polícia, o capitão Cordeiro Neto (que morreu nos embates, assim como seu filho; cinco policiais morreram, segundo jornais de época).

Nos anos de 1938 ou 1939, o governo permite ao beato José Lourenço voltar ao caldeirão, mas com compromisso de não reorganizar uma comunidade. Ele volta sozinho, com apenas algumas pessoas mais próximas. Um jornalista dos Diários Associados vai entrevistá-lo para confirmar a inexistência de “perigo” messiânico. O beato almoça com o jornalista, e a reportagem que publica em seguida relata que José Lourenço tomava vinho francês e comia camarão – algo praticamente impossível de ser encontrado naquele sertão.

A saga do Caldeirão é narrada num importante documentário de Pingo de Fortaleza e Rosemberg Cariry, que encontrou ainda remanescentes da história.

A romaria do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto começou há 24 anos com 26 pessoas. Não havia ainda uma estrada, então vinham pelo meio da vegetação seca. Houve anos em que vieram 5 mil pessoas. No domingo, 22, eram mais de 2 mil.

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