“Kananciuê” foi a música que consagrou o Grupo Acaba, quando ficou em primeiro lugar no Festival Sul-Mato-Grossense da Canção (Fessul), em 1979, depois de mais de uma década de atividades musicais, como documenta em pormenores o jornalista, músico e professor gaúcho (radicado no Mato Grosso do Sul) Rodrigo Teixeira, no belíssimo livro Grupo Acaba – A História dos Canta-Dores do Pantanal (Life Editora, 2024). A canção e o prêmio no festival ajudaram a conquistar a atenção de Marcus Pereira, que esquadrinhava o Brasil musical com seu selo fonográfico homônimo e encontrou no Grupo Acaba um representante à altura de um pedaço então culturalmente inexplorado do Centro-Oeste brasileiro.
Em sintonia com o momento histórico/político em que o estado do Mato Grosso se desmembrava em dois, “Kananciuê” trazia à tona a mitologia indígena com base em referências às etnias Xavante e Karajá, habitantes originárias do território ocupado por europeus que veio a se chamar Brasil. Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul, nenhum dos dois estados fazia jus a seus primeiros habitantes, a canção parecia dizer, sem dizer.
Presente no álbum de estreia do selo Discos Marcus Pereira, Cantadores do Pantanal (1979), “Kananciuê” iniciou a aventura de, pelo menos, reconhecer a existência e a sobrevivência de populações que eram donas destas terras quando o Brasil não se chamava Brasil. Não por coincidência, “Kananciuê” e o Acaba permaneceram confinados em círculo restrito ao Mato Grosso do Sul, de que o resto do país mal tomou conhecimento. “Nasci na terra onde o sol se levanta/ com jenipapo, urucum pintei meu corpo/ com rabo de canastra fiz flauta/ pra ter meu cantar/ pesquei pirarucu com arupema e cipó timbó/ mandioca-brava, inhame e cará plantei/ pra alimentar meu corpo”, ensinava a canção, assumindo a narração em primeira pessoa.
A vertente indígena continuou importante no segundo álbum, Última Cheia (independente, 1984), em que o Grupo Acaba adotava (para sempre) como codinome Canta-Dores do Pantanal, inserindo em sua espinha dorsal, com um hífen, o lamento e a dor dos pantaneiros, principalmente dos indígenas. Mais duas canções fizeram mesura aos indígenas sul-americanos em Última Cheia: “Waradzu” (“perdi meu arco/ perdi meu retrato/ minha dança se perde/ no canto e no pranto”) e “Nos Mares de Xaraés“. Essa última cita as etnias Ñandewa, Kadiwéu, Guarani, Tupi, Terena, Guató, Guaicuru, Paiaguá e Kaiowá, mencionando com máxima sutileza o genocídio praticado por portugueses contra os pré-brasileiros e seus descendentes.
Outros temas predominantemente indígenas do Acaba são “Arrebento de um Príncipe” (1989), “As Monções” (1994), “Filhos do Sol” (2002) e “Vale dos Ossos (Kuarup)” (2002). “Se foram as raças da América do Sul”, chora “Vale dos Ossos”, algo resignada, em atitude típica de tempos em que quem sabe não faz a hora e espera acontecer sempre o pior. O Brasil conhece esse comportamento como a palma de sua mão, no passado e no presente.
Em certos momentos, o grupo faz a ponte entre a identidade indígena e a mestiça, à qual seus integrantes parecem pertencer. “Eu vi minha raiz/ eu vi o rosto do meu pai/ estampado no sorriso/ de um bugre/ eu vi meu amor nas pinturas de um pajé”, diz “Raízes” (1984). Não era à toa que “Kananciuê” emergiu cantando dores indígenas em primeira pessoa.
A terra, a água, o fogo, o ar, a fauna e a flora resplandecem no primeiro disco e continuam a resplandecer no segundo, Última Cheia, de canções fortes como “Pássaro Branco” e “Fernando Vieira” (apelido corriqueiro de “um barco reformado da Guerra do Paraguai que faz parte da memória afetiva da população pantaneira”, segundo explica Teixeira no livro). Mais que na faixa-título, é essa última que retrata o cotidiano dos povos pantaneiros diante dos ciclos de enchente e estiagem.
A natureza toma posse do segundo disco desde a faixa de abertura, a divertida e gostosa “Papagaiada” (1984), que, além da algazarra de pássaros explicitada no título, faz um tratado sobre plantas pantaneiras de poder curativo: “No tronco do jenipapo foi curado o meu umbigo/ na folha do sabugueiro meu sarampo acabou/ a catapora secou na folha da bananeira/ pra barriga, fedegoso/ pra nervo, capim-cidreira”. A sabedoria indígena não é nomeada, mas está entranhada no jenipapo, no sabugueiro, na bananeira, no fedegoso, no capim-cidreira.
Apesar dos temas ambientais sensibilíssimos (hoje 10 mil anos mais atuais que nos anos de desenvolvimento dos cantadores sul-mato-grossenses), o Acaba preferia fazer a exaltação da natureza a denunciar sua destruição, o que se mostrou uma regra ao menos nos dois álbuns originais do grupo. Nos trabalhos de retorno, Pantanal – Coração da América (2002) e o quádruplo e maiúsculo Pantanal: Nascentes, Rios e Vertentes – 50 Anos (2016), a veia ativista aparece mais sobressaltada.
Em sua primeira encarnação, o Grupo Acaba criou canções mais descritivas que narrativas, estabelecendo uma espécie de enciclopédia de cores, perfumes, sabores e saberes da natureza do Pantanal, essa (até hoje) desconhecida porção central do Brasil (e do Paraguai, e da Bolívia, e da América do Sul. As canções rústicas e emotivas assinadas pelos irmãos Moacir Lacerda e Chico Lacerda e pelos diversos músicos que passaram pelo grupo tratam invariavelmente da exuberância da natureza do Pantanal, com referências mais tímidas e menos explícitas ao cerrado, aos estados do Centro-Oeste brasileiro, aos vizinhos sul-americanos. Algumas dessas composições despontam, também, como cantos de trabalho dos e para os humanos pantaneiros.
No geral, as canções formam um caleidoscópio dos elementos naturais do Pantanal. “Carandá” (1979) centra-se nas muitas utilidades dessa espécie de coqueiro: “Da folha sai abanico/ abanico pra abanar/ sai esteira pra deitar/ sai cavalo pra brincar”. A flora pantaneira está presente em abundância no cancioneiro acabense: caraguatá, cipó timbó, mandioca-brava, taboca, buriti, araputanga, cambará, camalote, tarumã, sabugueiro, bananeira, fedegoso, capim-cidreira, indaiá, babaçu, pindoba, coqueiro, veludinho, ipê, taquari, pindó, aguapé, para-tudo, sarã, hibisco…
No mesmo disco, a letra de “Carandá” é retomada mais ao final, em “Ciranda Pantaneira”, que ostenta o refrão mais melódico do Acaba: “Pantaneiro, chegou a hora de você cantar/ pantaneira, chegou a hora de você dançar/ e mostre esta ciranda nascida no Pantanal”.
Nos textos do Grupo Acaba, a multiplicidade da natureza (inclusive a natureza humana) se esparrama em todas as direções. Os frutos do Pantanal e do cerrado se misturam numa orgia de sabores e texturas: jenipapo, urucum, mangaba, cajá, jatobá, melancia, buriti, acupari, água-pomba, bacuri, pequi… Os alimentos, majoritariamente vegetais, enriquecem a horta: inhame, cará, feijão, rapadura, castanha, garapa, melado, mel, tereré, café, arroz carreteiro, pirão, farinha, farofa de frango, paçoca, chipa, peixe frito…
Os bichos pantaneiros vagueiam livres pelas canções, dos menos aos mais selvagens: cavalo, burro, vaca, boi, tatu, tatu-canastra, tamanduá, capivara, anta, javali, veado-campeiro, caititu, jacaré, jacaré-açu, macaco, onça, ariranha, bugio, caramujo, lagartixa, tapir, jaguar, chacal… Por intermédio dos pássaros, o Acaba extravasa o sonho humano de voar: sabiá, marrequinha, tuiuiú, pipira, tucano, pica-pau, periquito, papagaio, caturrita, papo-branco, cara-suja, socó-boi, zabelê, batuíra, gaivota pantaneira, pombo, garça, condor, arara… Peixes (pirarucu, piranha, jaú, surubim) e insetos (esperança, marimbondo, abelha, formiga) se somam à fauna inesgotável do Acaba. Na sonoplastia das músicas, entre flautas e apitos, os pássaros trinam e silvam, os grilos cricrilam, o gado muge, os bichos da noite murmuram, os humanos cantam.
Como não poderia deixar de ser, a água é elemento onipresente, em harmonia com outras entidades e fenômenos naturais (trovão, monções, vento, vento forte, poeira, fogueira, arco-íris, relâmpago…) e em todos os estados da matéria: chuva, rio, lago, lagoa, pingo d’água, águas barrentas, águas correntes, águas rasas, cachaça, mar, terra molhada, terras encharcadas, lago de lama, pântano, corixo, arroio, correnteza, sede, vendaval, tempestade, lágrimas, pranto, arco-íris…
O desagravo mais completo e pungente à água acontece em “Lágrimas Ácidas (Réquiem para o Rio Doce)” (2016), uma carta-protesto contra a destruição do rio mineiro-capixaba, embalada em uma pletora aquática com mina d’água, lagoa, córrego, rio, nascente, corixos, vazantes, igarapés, olhos d’água, fontes, minas, chuvas em cântaros, enchentes, sereno, neblina, serração, açude, bacias, baías, geleiras “que se derretem”, Oceano Atlântico, Oceano Pacífico, mares subterrâneos, cascatas, quedas d’água, bicas, cataratas, lágrimas ácidas, choro, lamento: “Sem vida, o Doce parou/ sepultado numa lápide de lama/ os homens, os bichos, os peixes, os sonhos morreram também”.
Nesse manifesto e por toda a obra do Acaba, os rios são soberanos e constantemente celebrados: Uruguai, Paraguai, Paraná, Taquari, Coxim, Jatobá, Amazonas, São Francisco, Negro, Solimões, Madeira, Xingu, Araguaia, Tocantins, Tapajós, Apa, Miranda, Jatobá, Tietê – “e o Aquífero Guarany“, arremata o réquiem para o Rio Doce.
O relicário pantaneiro tende ao infinito e compreende utensílios (arupema, tacape, machado, anzol, espinhel, arco, berrante, bule, lamparina, peneira, remo, rádio, bacamarte, espada, chicote, esporas, arreio, matula, sacola), meios de locomoção (canoa, chalana, presiganga, trem), lugares (Porto Esperança, Porto da Manga, Piúva, Corumbá, Cuiabá, Serra da Bodoquena, Assunção, Campo Grande, Miranda, Fecho do Morro), ritmos e danças (siriri, cururu, catira, chamamé), instrumentos musicais (sanfona, viola, violão, baugudu – esse último um instrumento de bambu e taquara criado pelos próprios acabenses), gentes (em “Manoel Menino de Barros“, de 2016)…
“Serpente de Ferro”, de 2016, retoma o tema transcendental de “Trem do Pantanal” (1979), clássico local e nacional composto pelos não-sul-mato-grossenses Paulo Simões e Geraldo Roca, lançado em disco em 1981 pela baiana Diana Pequeno e consolidado em 1982 pelo pantaneiro sul-mato-grossense de alcance nacional Almir Sater.
“Enquanto este velho trem atravessa o Pantanal/ as estrelas do Cruzeiro fazem um sinal/ de que este é o melhor caminho pra quem é como eu/ mais um fugitivo da guerra/ enquanto este velho trem atravessa o Pantanal/ o povo lá em casa espera que eu mande um postal/ dizendo que eu estou muito bem e vivo/ rumo a Santa Cruz de la Sierra”, cantava “Trem do Pantanal”, concorrente não-classificada para a final do mesmo festival que o Grupo Acaba venceu com “Kananciuê”.
Em 2016, os acabenses pranteiam o mesmo trem do Pantanal em tons alegres, como se ele ainda existisse e não tivesse sido desativado duas décadas antes para o transporte de seres humanos: “Soltando fumaça, lá vem o meu trem/ o trem vem chegando e matando saudade/ com pouco dinheiro, o sonho viaja/ levanta poeira, é só alegria/ a vida começa na marcha do trem”.
O cantos de trabalho artesanais dos Canta-Dores do Pantanal são intrincados e não parecem ter como antever os caminhos que levariam ao latifúndio, à música sertaneja urbana, ao agronegócio pesado, ao agrotóxico, ao desmatamento da Amazônia e do Pantanal. Soam como se pertencessem a tempos imemorias canções singelas como “O Tempo do Boi“, “Canoa, Canoeiro” (1979), a vibrante “Vaca Tucura, Boi Pantaneiro” (1984), “Boi de Carro” (2002), e mesmo o idílio instrumental “Sinfonia do Boi” (2002)…
Por fim, o Pantanal em si protagoniza um número expressivo de canções do inventário reunido em Nascentes, Rios e Vertentes: “Pantanais“, “Dizeres do Pantanal“, “Terra Pantaneira“, “Tema do Pantanal“, “Estórias Pantaneiras – O Conto da Garça“, “Pai Nosso do Pantanal“, “Flor da Fronteira“, “Descendo o Rio Jatobá“, “Gaivota Pantaneira” (do sanfoneiro sul-mato-grossense Dino Rocha), a linda “Rio Paraguai” (de Geraldo Roca, responsável por dar ao Pantanal a poética alcunha de “Litoral Central“).
Em termos nacionais, o Grupo Acaba foi uma das faces menos audíveis da modernização da música (sul-)mato-grossense nos anos 1970, embora tratassem de assuntos e problemas de alcance planetário (e que estão em primeiro plano hoje mais do que jamais estiveram). Para o Brasil, apareceram Ney Matogrosso, Almir Sater, Tetê Espíndola, Alzira E e poucos mais. Num recanto invisível à maioria dos brasileiros, o Grupo Acaba é a ponta de um iceberg (ou melhor, de um aquífero) que, como mostra o livro de Rodrigo Teixeira, tem profundidade, variedade e vivacidade insuspeitas. Enquanto queima o Pantanal, parte substancial do Brasil oficial permanece alheia ao que fica atrás do litoral.
Grupo Acaba – A História dos Canta-Dores do Pantanal, de Rodrigo Teixeira, Life Editora, 360 pág. A versão em audiolivro está no ar no YouTube. Mais informações nos canais do projeto no Instagram e no Facebook.
(Leia mais sobre o Grupo Acaba aqui.)
Uma maravilha de texto,eu não conhecia o Grupo.