A epopeia libertária de Ajuricaba

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Assim como se estuda Mem de Sá, José de Anchieta, Fernão Dias e Villegagnon, os livros escolares deveriam incluir também a história do cacique Ajuricaba desde o ensino fundamental nas escolas brasileiras. Primeiro, porque ele não é lenda nem mito nem idealização do romantismo literário ou do interesse político: Ajuricaba, um revolucionário indígena do século 18, realmente existiu e de fato urdiu uma resistência fabulosa contra o colonizador, e a envergadura de sua ação ajuda a desarticular a balela da resignação atribuída pelo colonizador aos povos originários.

Equivalente indígena de Zumbi dos Palmares, Ajuricaba foi um cacique da tribo dos Manaós, grupo étnico que acabou batizando a grande capital da Amazônia, Manaus. Por sua própria natureza, ele se opôs a uma prática comum entre os povos indígenas do tempo da colonização portuguesa, a de ajudar a negociar como escravos outros indígenas de tribos inimigas às suas para firmar uma paz provisória com Portugal. Sua ação foi empreendida após firmar uma aliança incomum com outras nações indígenas fixadas entre São Gabriel da Cachoeira e Manacapuru, no Amazonas, nas proximidades do Forte São José da Barra do Rio Negro.

Daí a importância de se revisitar a história do líder manaó. Indicada ao Prêmio Jabuti de 2021, a portentosa graphic novel Ajuricaba, de Ademar Vieira e Jucylande Júnior, remonta a história de Ajuricaba desde sua assunção, em 1722. Filho rebelde do cacique Huiebene, cujo slogan é “vencê-los (os portugueses) é impossível”, Ajuricaba é um guerreiro destemido que se preocupa com o futuro dos povos indígenas sob o jugo de um invasor traiçoeiro e de interesses móveis, que se deslocam conforme suas necessidades. “Será que vocês não veem que um dia os escravos seremos nós?”, discursa o inconformado cacique.

O escritor amazonense Márcio Souza escreveu um livro sobre o líder dos Manaós, intitulado Ajuricaba, o Caudilho das Selvas (Atma Editora), e também uma peça, A Paixão de Ajuricaba (encenada pela primeira vez em 1974). Segundo explicou Souza, o nome “Ajuricaba” significa “reunião de marimbondos de ferroadas dolorosas”, o que dá uma ideia da natureza do guerreiro, e o heroi amazônico tinha 27 anos quando empreendeu sua grande saga liberticida. Há um fato que o distingue dos demais indígenas: ao ser tornado prisioneiro dos seus mais poderosos inimigos, Ajuricaba jogou-se nas águas escuras do Rio Negro, preferindo a morte ao cativeiro, e a partir dali sua lenda cresceu e passou a inspirar gerações.

HQ ultraviolenta (como de resto foi a saga escondida da destruição das Nações indígenas brasileiras), Ajuricaba tem cenas de canibalismo que incorporam uma certa dose de arrivismo, mais do que de tradição ritual, o que pode parecer estranho ao leitor que procura um certo distanciamento “hans-stadiano”, por assim dizer. Ajuricaba não se escora na idealização do “bom selvagem” rousseauniano; inventaria também a maldade, a crueldade e o espírito traiçoeiro entre as tribos e a ética de extermínio dos predadores (os caçadores de escravos indígenas). “É uma guerra justa! É nosso direito capturar esses índios”, diz um mateiro à beira da morte.

Na época, a região era regida pelo governador do Grão-Pará e Maranhão, João Maia da Gama que, alarmado com os avanços do exército de Ajuricaba, envia tropas para acabar com a rebelião indígena. A primeira providência desses comandantes é conseguir adesões traiçoeiras entre os indígenas, para poder surpreender o líder revoltoso. Mas Ajuricaba desenvolve técnicas de combates insólitas, dificultando não apenas o rastreamento de suas forças de combate, mas também a própria comunicação entre os inimigos.

O cerne da questão sobre a rebelião de Ajuricaba é o mesmo que acompanha os debates sobre Zumbi dos Palmares – a admissão do escravagismo entre os combatentes do escravismo. Para conseguir armas de fogo e apoio tático, Ajuricaba teria procurado, e obtido suporte, das tropas holandesas de colonização – no plano histórico, há controvérsias sobre essa aliança, que foi contestada por Joaquim Nabuco. Na própria HQ, o tema é controverso, já que Ajuricaba se vale de um blefe (sobre a aliança com holandeses) para enganar seus adversários. O revoltoso tombou em 1727 e, com ele, mais de mil indígenas foram feitos cativos e levados a Belém. A derrota apressou o desaparecimento do seu grupo étnico – acredita-se que os Baniwas, que habitam o Rio Negro e são do tronco linguístico Aruaque, sejam seus descendentes.

A HQ Ajuricaba, produzida durante a pandemia (e que também teve a edição postergada pela pandemia) foi urdida com zelo histórico, mas também com entusiasmo ativístico e de linguagem, pelos autores, Ademar Vieira (jornalista, roteirista e ilustrador, roteirista da série Lupita pelo Mundo, que ganhou prêmio em Gramado 2020) e Jucylande Júnior (quadrinista e desenhista que atuou nos estúdios DC Comics e Marvel Comics). Ao contrário de boa parte da produção acerca de mitos e da cosmogonia indígena de nossa época, seu trabalho não tem como meta somente resgatar uma literatura tolhida pelo período colonial. O objetivo está além: é o de dar mobilidade física aos personagens históricos desse período, reencenar sua importância e vitalidade, oferecê-los como exemplo de resistência ao futuro.

Ajuricaba singra de novo o Rio Negro após essa publicação, um vigoroso trabalho em branco e preto e de incrível familiaridade com a marca gráfica da influência inefável do gigante Flávio Colin (1930-2002), um dos maiores quadrinistas brasileiros de todos os tempos.

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