Há um choque de percepções quando a gente assiste a Let’s Get Lost, o filme-testamento do trompetista e cantor Chet Baker (1929-1988), uma das figuras mais singulares do jazz. A primeira delas diz respeito ao contexto em que tudo aconteceu. Era um tempo em que a música exibia a capacidade de tornar as pessoas indestrutíveis, maiores do que a realidade, dotadas da dádiva de tocar a eternidade com a ponta dos dedos – ou com um sopro.

Filmado até 1987 pelo fotógrafo Bruce Weber, um nome mais ligado à moda (e um pouco antes da morte do trompetista, em 13 de maio de 1988), Let’s Get Lost afigura-se como um dos filmes mais importantes já feitos sobre a música. Não é apenas sobre um gênero, o jazz, mas sobre toda a questão da transcendência, da elevação possível a que nos conduz a arte, e o preço que ela cobra aos seus estafetas mais vulneráveis. As imagens capturadas pelo filme, sejam frescas ou do passado, buscam traduzir toda a ligação celestial a que a música nos empurra quando porta um ethos elevado. Também não é só um filme sobre um artista, mas sobre a condição humana do artista, a tarefa de seguir criando sua arte mesmo quando ele é um campo de ruínas.

Bruce Weber, autorizado pelo artista a documentar seus derradeiros passos pelo planeta, teve à frente um desafio-monstro: não podia deixar que a decadência humana ficasse maior do que a música em seu retrato, mas também não calhava passar pano para nenhuma das grandes merdas que Chet deixou como trilha em sua passagem.

A trajetória de Chet Baker oscilou entre o sublime e o Datena. Para alcançar o sublime, foi mais fácil: Weber só precisou da música de Chet (mesmo quando era só um fiapo de música) e um roteiro de cenas ligado às composições mais íntimas do repertório do trompetista, começando por Moon and the Sand e Imagination e terminando com Everything Happens to Me e Almost Blue. Sentado no banco traseiro de um conversível, envolto em um cobertor de sem-teto, cercado de mulheres lindas e carinhosas, Chet Baker responde a questões não jornalísticas sobre preferências, escolhas, estilhaços de memórias, enquanto a cidade se dissolve atrás do carro, e as meninas dançam no ar, na praia, no desejo perdido.

Mas, para alcançar a baixeza de Chet, era preciso fazê-lo falar, e quase sempre ele estava em estado claramente alterado, sonado, a voz pastosa. Mas não é que foi fácil? Chet não evita nenhum tema, sua memória não é traiçoeira, ele lembra de tudo. E fala de quase tudo com uma naturalidade que chega a ser assustadora – por exemplo, quando relembra os estratagemas psiquiátricos que usou para tentar ser dispensado do Exército, onde foi enfiado pela família, mas sempre cuidando de não chegar ao extremo de levar eletrochoques.

Os perrengues se acumulam, mas curiosamente não nos impelem a ter pena do artista, tampouco raiva. Ficamos sabendo que, após ter todos seus dentes arrancados em uma violenta desinteligência com traficantes, Chet Baker, banguela, não conseguia mais tocar trompete nem cantar, e o único emprego que arrumou foi como frentista num posto de gasolina. Trabalhou lá por 11 meses, quem o resgatou foi Dizzy Gillespie. Chet Baker era dotado de uma amoralidade inata, uma despreocupação quase predatória com os sentimentos das pessoas próximas – chegou a transar com a namorada de um amigo enquanto este estava descuidado, enfiando-se na cama do parça. O espectador ri nesse ponto das confidências, mas aquilo revela uma tragédia em curso, uma incompreensão brutal do custo da alienação social de Chet Baker, que explode em seus relacionamentos com as quatro esposas.

Essa é basicamente a chave do filme: a presença feminina. Por meio dos depoimentos das ex-mulheres, da mãe e dos filhos, sabemos mais sobre a dolorosa ausência de Chet Baker no mundo real do que as imagens poderiam nos levar a perceber. As diferentes personalidades das garotas, suas distintas motivações sobre Chet (a derradeira, a cantora Ruth Young, conta que ficou com ele porque equivalia a uma admiradora da pintura a ficar com Picasso), tudo isso amplifica a solidão que sentimos quando a voz acaricia a escuridão, em canções como For Heaven’s Sake, ou o trompete faz levitar a sala toda, no balanço de You’re My Thrill.

Chet Baker começou na carreira, aos 20 e poucos anos, tocando com o topo da cadeia alimentar do jazz, que o reconheceu como um monstro precoce, gênios como Gerry Mulligan e Charlie Parker. Chet era um garoto caipira vindo de um lugar improvável, Oklahoma, sem disciplina, um gênio que desprezava o suor, a prática, o estudo, a dedicação obsessiva. Mas Chet superou Miles Davis e Clifford Brown em votações de melhores jazzistas no seu tempo, virou lenda precoce. O fotógrafo William Claxton, em precioso depoimento, lembra de quando se surpreendeu com Chet, ainda garoto, em uma sessão de fotos de um quarteto, atraindo suas lentes como um imã, demonstrando que tinha “star quality”, uma propensão inata para o estrelato, algo que não se explicava, que vinha com o personagem.

Chet Baker tornou-se uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo. Para os fãs, para o ouvinte, para o espectador distanciado, era uma supernova em toda a magnitude, um deus grego, um James Dean do jazz; para a família, os filhos, as ex-esposas, era um fantasma, um enganador, um falseador. Sua versão das coisas é confrontada em tempo real – como quando ele explica o que o levou à prisão na Itália, e como aquilo desencadeou uma série de prisões em série das pessoas próximas, incluindo a esposa que foi visitá-lo. Sua vida social foi, toda ela, feita de relacionamentos abusivos.

Quando ele fala sobre a música, ou aparece fazendo música, o filme parece arrancar o espectador de sua presumível isenção. É uma gangorra intermitente. Vamos ao céu, depois somos atirados ao chão de novo, agora é Chet explicando qual é a fórmula para se fazer um speedball seguro (uma mistura de cocaína com heroína). Chet, um dos possíveis modelos da bossa nova brasileira, demonstra indignação em raras ocasiões, uma delas com o barulho da plateia no festival de Cannes, em sua derradeira apresentação, a parte mais brutalmente emocionante do filme, quando ele canta Almost Blue, de Elvis Costello. 

Chet Baker não reivindica os créditos por sua arte maravilhosa em nenhum momento. Mas não é modéstia, ele apenas se conforma com o dom, parece carregá-lo com naturalidade e despreocupação. Como se fosse algo que não tem a menor intenção de saber de onde veio. Uma pergunta feita à mãe do trompetista, Vera Pauline Moser Baker, sobre se, apesar da fama alcançada, o filho a tinha desapontado, é crucial nesse entendimento. Vera diz que sim, ele a desapontou, mas prefere não ir além no comentário. 

Bruce Weber expõe Chet Baker em um momento da mais aguda vulnerabilidade, mas não poupa a si mesmo. A tarefa de um cineasta que tem de tutelar o personagem de sua história é pesada, custa mais que 4 frascos de metadona (uma substância usada para desintoxicar o corpo de narcóticos). Let’s Get Lost, vamos nos perder, não é uma conclamação que atingirá só o artista, mas inapelavelmente também seu retratista (a expressão vem do título da balada de 1954 que assumiu uma nova conotação quando cantada por Chet, tornando-se a música que foi mais associada ao músico, um hino junkie).

Let’s Get Lost foi exibido (pela primeira vez no Brasil) em cópia restaurada em 4K na Mostra Flashback da 16ª edição do festival de documentários In-Edit Brasil, no Cinesesc, na quarta-feira à noite. Quando estreou, há 36 anos, o filme ganhou o Prêmio da Crítica do Festival de Veneza. Mas sempre foi visto mais em vídeo por aqui. Foi restaurado no ano passado e o resultado é impactante. 

Ninguém deu um pio na sessão do In-Edit, lotada. Ninguém saiu antes dos créditos terminarem. É um raro filme de um tempo em que as coisas aconteciam e modificavam a gente, fazia as pessoas refletirem sobre as coisas, impactavam na forma como víamos o mundo e nos relacionávamos com os outros. E então a gente escrevia sobre elas, no mínimo.

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