"Bagaceira" - capa/ reprodução
"Bagaceira" - capa/ reprodução

O que Cartola (1908-1980), Clementina de Jesus (1901-1987), Nelson Cavaquinho (1911-1986), Antonio Vieira (1920-2009), Patativa e Dona Onete têm em comum? Além de todos serem grandes nomes da música popular brasileira, estrearam em disco apenas quando já viviam a terceira idade.

A cantora e compositora paraense Dona Onete completa 85 anos neste 18 de junho, data escolhida para o lançamento de seu quarto álbum: Bagaceira chegou hoje às plataformas digitais, com seu colorido rítmico, passeando por diversos gêneros musicais tipicamente paraenses, alguns citados na letra da faixa-título, que abre o trabalho.

Alguns destes gêneros dão nome a algumas faixas, casos de “Chamego Caboclo”, “Banguê Latino” e “Lunlambimbarimbó”, que desde o título marca essa mescla, além da alegria, uma das principais características do trabalho de Dona Onete.

A garça namoradeira, o urubu namorador e o pitiú do Mercado Ver-O-Peso, um dos principais cartões postais de Belém do Pará, voltam a ser personagens e figuram na letra da faixa-título. Em Bagaceira, o álbum, Dona Onete está acompanhada por músicos como o baterista Vovô, o percussionista Nazaco Gomes, o baixista Breno Oliveira, o flautista Marcos Sarrazin e o guitarrista Pio Lobato, considerado um dos maiores nomes do Brasil em seu instrumento.

Numa parceria entre as rádios Timbira FM, Universidade FM e o FAROFAFÁ, conversamos com Dona Onete sobre o lançamento.

Ouça a versão radiofônica da entrevista, veiculada das rádios Timbira FM (95,5) e Universidade FM (106,9)
A cantora e compositora Dona Onete - foto: Tereza Maciel/ divulgação
A cantora e compositora Dona Onete – foto: Tereza Maciel/ divulgação

SEIS PERGUNTAS PARA DONA ONETE

ZEMA RIBEIRO: Brega, lambada, carimbó e guitarrada. A letra da faixa-título de seu novo álbum enumera diversos gêneros tipicamente paraenses. Como a senhora conceituaria a Bagaceira que batiza o trabalho?
DONA ONETE: Primeiro que os nossos ritmos, eu não estou levando para esse lado de que seja bagaço, não. Nossos ritmos do Pará, meu Deus!, para mim é ouro, vale brilhante, vale diamante, pedras preciosas. Mas com o Bagaceira é o que acontece dentro de uma festa: você chega, você dança, você bebe, você faz o que você quiser, a festa termina e você ainda está dançando sem música, e já vem sem sapato, já não sabe onde está a banda, já tem pessoas que surgem com outra banda de sapato que não é dele, é do outro, porque caiu na bagaceira, chega também o corpo fica um bagaço. Quem bebe, bebe, quem não bebe, dança, sabe? Parece que é contagiante, você já vai embora, toca uma música que você lembra de mil novecentos e antigamente, volta! Vai dançar de novo. Eu acho que é um ritmo, uma coisa nossa. Eu acho que nós herdamos isso de muitos povos. Belém teve grande mistura, negro, índio, branco, gente de cor amarela, que eram aqueles turcos que vinham, e é misturado todo esse sangue, principalmente aqui em Igarapé-Mirim,que é o lugar que eu vivi a metade quase da minha vida, aqui aconteceu muita coisa disso. E está aqui na cabeça de Dona Onete, enquanto esse robô estiver funcionando… E também fica, porque eu não sei nada de televisão, eu não sei mexer em celular, vocês sabem disso. Nada disso tomou conta da minha mente. Vejo, mas não mexo. Não respondo a ninguém, quem responde são vocês, é o meu pessoal [assessoria e produção], que toma conta de mim.

ZR: A senhora conquistou definitivamente o Brasil com a hoje clássica “No Meio do Pitiú” e algumas faixas deste seu novo álbum, a começar pela de abertura, que dá título ao trabalho, evocam esse seu sucesso. Gostaria de ouvi-la sobre esta opção de citar o próprio trabalho. É uma forma de agradecer o Brasil pelo reconhecimento?
DO: Sim, eu agradeço muito, principalmente às minhas criancinhas, que são meus fãs. Os maiores fãs são os idosos, as criancinhas e o povo em geral, tudo bem. Mas eu tive a coragem, como compositora, de falar de um local, em Belém, que era muito discriminado. Pessoas que vieram cantar em Belém falar que nós éramos fedorentas, as coisas. E eu não gostei também disso. E como acontece, como eu vejo muitos músicos dizerem, que muitas vezes o sucesso entra na última música que não ia entrar, foi a que eu fiz, era já fechamento, e aí surge uma bagaceira, eu indo no Ver-O-Peso, e venho encontrar com a garça e o urubu namorando três horas da tarde, essa pessoa no sol quente do Pará, é muito amor. Aí eu fiz a música e deu no que deu e graças a Deus a gente está bem.

ZR: A capa [de Maitê Zara] traz um colorido bonito, com diversos personagens, demonstrando a riqueza e diversidade da música do Pará. A senhora pode falar um pouco dessa escolha e do processo de elaboração dessa arte? A senhora faz questão de acompanhar isso de perto no processo de produção de seus trabalhos?
DO: Estou acompanhando, esse cd agora, esse último, eu estou acompanhando de perto mesmo. Tudo que está acontecendo eu estou acompanhando de perto. Porque eu não sei o que está acontecendo. Antes eu pudesse trazer todas as culturas do interior para mostrar em Belém. Mas eu ainda vou fazer, eu ainda vou fazer isso. Eu só espero que me dê oportunidade. Quem sabe se quando eu parar mais de cantar, viajar, eu não passe a fazer isso, que eu quero fazer lá em Belém, procurar uns sócios, que embarquem nessa doidice minha, e a gente faça. Porque o que nós temos de coisa bela, meu amor, principalmente agora que eu estive numa terra falando do banguê, que é o banzeiro, o mesmo ritmo do banzeiro, eu estou muito feliz. E obrigada, gente, pelo carinho de todos.

ZR: “Meu Boi Campeou” aproxima o Pará do vizinho Maranhão, de onde faço estas perguntas, terra do bumba meu boi. Lembro que a senhora esteve aqui em 2022, no Festival Zabumbada, eu estava lá na plateia. Qual a sua relação com a música maranhense? O que a senhora conhece e chama sua atenção?
DO: Olha, maranhense, antes de eu entrar para essa vida de cantar, eu gravei cacuriá. Um grupo que veio de São Paulo e não sabia o que fazer no Pará, porque ninguém conhecia a música e eles trouxeram a música do cacuriá, e eu gravei com eles, uma dança maranhense, cacuriá. E aí, eu já fui três vezes ao Maranhão e agora estive no boi. Foi a coisa mais linda, eu bati até aquela matraca, aqueles batuquezinhos, de tamanquinhas que eles usam lá, de madeira, eu estava também fazendo, participando. Eu fiz um grande show. Essa história do boi é uma história de reinado, é uma história linda, é para um teatro, é para teatro municipal, se apresentar o enredo [o auto] do boi. Porque aqui no Pará, na belle époque, vinham essas coisas para o Pará, de fora, e tudo o que é de fora a gente gosta. E o maranhense ele dança noite e dia na rua, eles só vão mudando de lugar, e batendo e o pessoal atrás, cantando as toadas lindíssimas. Lá é bumba meu boi, no Pará é boi bumbá. Também o boi anda na rua, enfeitado de flores, de fita, de tudo. E não é à toa que eu também já fui cantar no Boi de Parintins. Eu sou azulão, eu sou azul. Estou até de azul, agora. Eu sou caprichosa, caprichosa na coisa, alô, socorro! Eu gosto muito. E Marajó é a terra de boi bumbá. Morreu agora um amigo nosso, amigo do pessoal, eu não cheguei a conhecer. Eu quis homenagear ele e quis homenagear Mestre Fabico [1929-2012], um grande amo de boi, cantador de boi. E aí eu falo que meu boi campeou, é uma história que acontece no Marajó. No mês de dezembro o boi começa a bater a poeira, andar, eles correm, correm, a gente não sabe para fazer o quê. E aquela poeira vai levantando. Aí o pessoal diz: hum, hum, já sei, amanhã vai ter trovoada. Ou hoje mesmo. Não demora o trovão começa [onomatopeias imitando o som do trovão]. Já anunciando o inverno, a invernada nos campos marajoaras. O que era seco vai virar rio.

ZR: A senhora está com 84 anos [quando as perguntas foram enviadas] e estreou em disco com mais de 70. Para isto contribuiu um primeiro marido, cujo ciúme acabou obrigando a senhora a escrever música escondida, e também o medo de a carreira musical não dar certo, o que levou-a às salas de aula, aos gabinetes da gestão cultural e ao movimento sindical. Como a senhora se sente agora, reconhecida como um dos maiores nomes da música popular brasileira em atividade?
DO: Eu estou feliz, muito feliz, lisonjeada, agradecida por me escolherem como patrimônio cultural [sua obra musical foi declarada patrimônio cultural imaterial do Pará em setembro passado], me deram a maior responsabilidade agora. Eu não era responsável [risos], mas agora eu tenho que me responsabilizar por esta cultura paraense. Eu ainda espero viver alguns anos, para poder, nem que eu não cante mais, nem que eu não vá fazer show, mas dando sempre entrevistas, falando para as pessoas, propagando a cultura, a beleza que esse meu Pará tem. De interior para interior, só muda o jeito de dançar, mas que tudo é alegria, tudo é carimbó e tudo termina em bagaceira.

ZR: Hoje, como falei, a data em que a senhora completa 85 anos, foi também o dia escolhido para o lançamento de Bagaceira. A senhora faz aniversário e quem ganha o presente somos nós?
DO: É, porque não puderam festejar, eu fui proibida pelos médicos, que eu quase vou de novo, é a terceira maresia, acharam melhor eu não fazer. Ano passado eu fiz uma grande festa, mas a festa agora vai ser de vocês. É tocando a Bagaceira na casa de vocês e vocês tomando aquele drinque, tomando cerveja, tomando caipira [caipirinha], tomando tudo, fazendo uma bagaceira para não parar. Também não é para sair para chegar no xadrez. É para ficar na casa. Tudo vai acontecer lá. Depois toma um café amargo e dorme. Maranhenses, vocês brilham muito também, eu gosto de ver essa força, no sol quente, não tem… principalmente quando tem aquela bebidinha, um golinho, esquenta, vamos embora! Já pensou a quentura da bebida e a quentura do sol? Só quem vence são vocês. Parabéns, Maranhão, pelo bumba meu boi que vocês têm.

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Ouça Bagaceira:

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