É possível dizer, do compositor, produtor, letrista, apresentador e escritor carioca Hermínio Bello de Carvalho que ele realizou, na música, na segunda metade do século 20, uma tarefa análoga à que Mário de Andrade (1893-1945) realizou na primeira metade do mesmo século. Em atividade desde 1951, Hermínio completou 88 anos em 28 de março deste ano. Em mais de 70 anos atuando nas fundações da música brasileira, foi parceiro (e amigo) de Cartola, Dona Ivone Lara, Chico Buarque, Paulinho da Viola e Pixinguinha. Foi cantado por Chico Buarque, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Gal Costa, Ney Matogrosso, Baden Powell, Cristóvão Bastos, Elton Medeiros, Francis Hime, Martinho da Vila, Maurício Tapajós, Roberto Frejat, Rildo Hora, Sueli Costa, Alcione, Caetano Veloso, Cyro Monteiro, Dalva de Oliveira, Elba Ramalho, Isaurinha Garcia, Nara Leão e Zélia Duncan e mais incontáveis nomes da música brasileira.
A vitalidade da obra, das intervenções e da presença de Hermínio no evidenciamento da riqueza da música do Brasil poderá ser conferida neste final de semana, dias 15 e 16 de julho, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Além de celebrar seu songbook privilegiado com refinados shows (Hermínio estará em cena ao lado de Alaíde Costa, Ayrton Montarroyos, Áurea Martins e Vidal Farias), o encontro promove o lançamento digital do disco Cataventos, de Hermínio, pelo Selo Sesc. Além do disco e do show, o Sesc SP está lançando o livro Passageiro de relâmpagos : crônicas friccionais e perfis inexatos (Edições Sesc São Paulo), que reúne um compilado de textos, em sua maioria inéditos. Organizado pela cantora Joyce Moreno e entremeado por caricaturas feitas por Eduardo Baptistão, o livro traz à tona as memórias do autor, a maioria traçando perfis de artistas que conviveram e trabalharam com ele.Falar da importância desse produtor na música é chover no molhado, mas FAROFAFÁ existe para isso mesmo: repor no devido lugar, cotidianamente, certas obviedades, para que não se percam no fast show contemporâneo. Ir ao show de Hermínio Bello de Carvalho neste final de semana é como ter o privilégio de ver a História fazendo seu trajeto em forma de canção. E nada melhor do que ter a chance de bater um papo com esse notável da música de todos os tempos:
FAROFAFÁ: Você é co-autor de sucessos da música em parceria com Paulinho da Viola (Sei lá, Mangueira e Timoneiro), Chico Buarque (Chão de esmeraldas), Cartola e Carlos Cachaça (Alvorada), Elton Medeiros (Pressentimento), Jacob do Bandolim (Doce de coco), entre outros grandes compositores. Uma era de ouro da música. Mas você nunca se acomodou “nos ombros dos gigantes”, como disse o Isaac Newton. Seguiu fazendo a prospecção dos novos talentos, como se revelou na sua parceria com o jovem Vidal Assis. O que é capaz de mobilizar sua atenção e tanta dedicação no trabalho dos jovens? Qual é o principal elemento que você destaca?
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO: O principal elemento que destaco é ter tido a sorte de conhecer o pesquisador Lucio Rangel, que fundou a Revista da Música Popular, uma publicação que teve uma vida curta, de 1954 a 1956. Nela, o Lucio publicou um artigo do poeta Manuel Bandeira sobre literatura de violão, e tive o atrevimento de contestá-lo numa carta pessoal dirigida a ele. Lembro do Lucio lendo a carta, murmurando baixinho algumas coisas, e me perguntando se eu poderia acompanhá-lo, nem perguntei aonde. Uns 20 minutos depois estávamos diante do próprio Bandeira, que leu em silêncio a minha carta, dando uns risinhos frouxos e explicando depois: o artigo estava realmente defasado e fora escrito há muitos e muitos anos, acho que ele falou em 1937, revista Ariel – coisas assim. E aí o Lucio perguntou: o que eu faço? e ele : publica, ora!!! E ele publicou. A bem da verdade, todas as informações que dei em meu artigo foram todas elas fornecidas pelo Jodacil Damaceno, meu colega de trabalho numa empresa de rebocadores, ele sim um especialista no assunto. Começava ali a minha carreira de sei lá o quê; eu tinha na época uns 20 anos, era inquieto, gostava de escrever e pintar, de ler. Lembrei de outra coisa agora: eu era bem garoto e fazia uma faxina, prá ganhar uns trocados, na casa de Dona Otilia, vizinha na rua Hermenegildo de Barros, na Glória. Depois de limpar vidros e espanar os móveis, ela me fazia sentar ao seu lado para recitar em voz alta um poema, História d’um cão, que depois, muitíssimo tempo depois, eu já adulto, descobriria ser do Luiz Guimarães, História d’um cão: “Eu tive um cão/chamava-se veludo /magro asqueroso revoltante imundo / e para dizer numa palavra tudo / foi o mais feio cão que houve no mundo”. Eu enfatizava dramaticamente os adjetivos magro feio asqueroso imundo, e Dona Otilia desabava de chorar de um lado, eu do outro. E depois me pagava em moedinhas – mais pela recitação do que pela faxina. Ganhei bons trocadinhos às custas do Veludo… E voltando ao assunto (sou um rei em ziguezaguear, me perdoa ), acho que essa atenção para os jovens nasceu justamente pelo carinho e atenção que me deu o Lucio Rangel. E dou um exemplo : o Vidal Assis e a Gabi Buarque, que frequentaram a Oficina que ministrei na Escola Portátil, se tornaram meus parceiros – estão no CD Cataventos. E, não por acaso, o Lucas Porto trouxe para o estúdio uma turma da pesada egressa da Escola Portátil de Música, onde é professor. E a isso chamo de uma política de valorização de novos músicos e também uma porta aberta para ingressar no mercado de trabalho.
FAROFAFÁ: Hermínio, você foi o produtor responsável por fazer emergir a figura de Paulinho da Viola quando este tinha apenas 21 anos, segundo nos conta a historiografia. Paulinho agora tem 80 anos, assim como outros expoentes daquela geração. Muitos já se foram. Críticos e especialistas no período também se vão, como o Mauro Dias. Até o Bar do Alemão fechou. Como você vê essa transição de uma época para outra? O que perdemos e o que eventualmente ganhamos com a chegada do futuro?
HERMÍNIO: “Meu futuro é hoje, não existe amanhã pra mim”, sentenciou o Paulinho da Viola, num samba por sinal belíssimo. Essa transição é mais do que normal, e quanto às perdas e danos, cada um terá uma visão diferente para analisar essa transição. Estamos na época da Internet, de um fato regional que, de repente, ganha um espaço mundial – sem esquecer da IA – inteligência artificial – que os especialistas afirmam que vai mudar a nossa visão do mundo em que hoje vivemos, e que entraremos num circuito de infinitas transições. É esperar pra ver…
FAROFAFÁ: Você esteve à frente de um dos mais bem-sucedidos programas de fomento à música do estado brasileiro, o Projeto Pixinguinha, da Funarte. Acredita que ainda hoje o Estado pode exercer esse papel de indutor da vitalidade artística? O que falta para isso acontecer?
HERMÍNIO: Temos que analisar um aspecto importante daquele projeto e das políticas que foram adotadas na época: subvencionava-se não o empresariado, mas o espectador, através de uma política de ingressos de valor bem pequeno . E o que isso significava? Era um estimulo para a criação de novas e jovens plateias e também um apoio a um tipo de música de alta qualidade e um tanto ou quanto desprezada pelo circuito convencional e mercadológico da música. João Bosco e Clementina de Jesus, por exemplo. Simone, outro exemplo – ela ao lado de Sueli Costa ( ninguém ainda a conhecia…), e fazendo sessões extras num teatro do porte do Castro Alves com capacidade de receber mais de 1.560 espectadores. Foi uma loucura.
FAROFAFÁ: Quando você convidou Nelson Sargento para integrar o show Rosa de Ouro, de 1964, você foi com Elton Medeiros à casa dele. Eu encontrei essa declaração aqui do Sargento: “Eles foram três vezes lá em casa, mas eu fugia. Nunca tinha entrado em um teatro e pensava que queriam que eu fosse lá para pintar as paredes”. Você crê que ainda existam muitos Nelson Sargentos você por aí, soterrados pela dureza da lida pela sobrevivência, com essa dificuldade em mostrar seu trabalho?
HERMÍNIO: Claro que sim, basta exercer a arte de prestar atenção. Foi assim comigo, quando vi a Clementina na Taberna da Glória, ela cantando acompanhada pelas palmas de seu marido – o estivador Albino Pé Grande.
FAROFAFÁ: Você está com 88 anos. Você acredita que um dia surgirá um outro Hermínio Bello de Carvalho capaz de evidenciar toda uma geração de artistas ocultos ou camuflados pelos êxitos circunstanciais da música?
HERMÍNIO: Por que “um outro Herminio Bello de Carvalho”? Vocês se esqueceram do Albino Pinheiro, criador da Banda de Ipanema e do Projeto Seis-e-Meia? Existem muitos exemplos pelo Brasil afora.
FAROFAFÁ: Herminio, você é um homem branco, de classe média. Mas, ao lado de Nei Lopes e outros poucos, se tornou um dos maiores divulgadores da música dos pretos brasileiros, um dos que a compreenderam melhor e souberam fazê-la projetar-se como uma das expressões mais genuínas do Brasil. Voltando lá atrás em sua formação, ainda menino, lá em Olaria e na Glória, quais foram os elementos que o fizeram se voltar para a essência da cultura musical brasileira, o que acha que conduziu seu despertar? Foi seu pai, sua mãe, um professor de violão, um sambista, uma noite em especial?
HERMÍNIO: Antes de tudo uma retificação : não sou “um homem branco”, mas um mulato carioca de pele clara. Sou neto, por parte de mãe, de um afamado violeiro chamado de Gregório, pai de minha mãe Francisca, que nasceu de uma família povoada de gente preta – ao contrário de meu pai, de cabelos claros e olhos azuis. E o que despertou a minha paixão pela cultura brasileira? Nasci ouvindo a Rádio Nacional, cresci indo assistir os Concertos para a Juventude, cantava no coro da Igreja Sagrado Coração de Jesus – eu e minha irmã Gilda, soprano que estudou piano e cantando trechos de óperas nos recitais promovidos por seu professor de canto, o Professor Faini. Era uma delícia ouvi-lo cantar trechos de ópera – o “Largo al factotum” de Rossini, ele ia lá em casa, era uma festa! Sem falar que frequentei as aulas de Canto Orfeônico ministradas pela professora Maria Augusta Lopes da Silveira – e tive ótimos professores na Escola Pública 3-3, sobretudo uma professorinha bem baixinha, mulata, elegantíssima , Maria Lurdes Pinto Ribeiro Moreira Dias. Eita, que memória! Ela cantava! e seu registro era contralto. Cheguei a assistir um de seus recitais não me lembro aonde. Acho que no auditório da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), vizinho ao apartamento onde moravam Villa-Lobos e Mindinha – fui lá uma vez, em 1957.
FAROFAFÁ: Você descobriu Clementina, aos 64 anos, e uma vez disse que aquele acontecimento trouxe de volta a África que vivia dentro de cada um de nós. Ao examinar o Brasil de 2023, você acredita que essa África que existe em nós está devidamente absorvida pela nossa consciência enquanto Nação ou ainda falta muito?
HERMÍNIO: Não, vamos antes de tudo retificar a sua informação : não descobri Clementina. Ela tinha 62 anos quando a ouvi pela primeira vez na já citada Taberna da Glória – nunca havia pisado num palco – o que fez num movimento chamado “O Menestrel”, que eu achava que era de vanguarda por colocar música popular e erudita num mesmo programa e, no caso, Turíbio Santos na primeira parte e Clementina na segunda. Apenas exerci a tal arte de prestar atenção naquela senhora negra de voz poderosa que eu não ouvi nada igual antes.
FAROFAFÁ: Quanto a Zé Celso Martinez Correa, você teve algum tipo de trânsito entre essa vanguarda que ele integrou, o tropicalismo? Como você viu as mortes precoces de Gal Costa e Rita Lee?
HERMÍNIO: Não me lembro de tê-lo encontrado, mas a morte precoce de Gal e Rita – como não se comover?