Filha de mãe brasileira com pai alemão, nascida baiana e criada carioca, Astrud Evangelina Weinert tornou-se Astrud Gilberto em 1960, ao se casar com um seu conterrâneo que estava despontando do Brasil para o mundo como inventor da bossa nova: João Gilberto. Uma aura de segredo sempre circundou essa cantora de voz sutil (“pequena”, não se cansam de gritar os clichês), que no país natal não adquiriu a carga mítica de sua correlata e amiga Nara Leão, talvez por jamais ter se caracterizado plenamente nem como brasileira, nem como estrangeira – uma história antiga, vivida desde Carmen Miranda por artistas brasileiros cujo sucesso cruzou as fronteiras locais. Se Nara personificou a feminilidade da bossa no Brasil, Astrud o fez em escala planetária.
Pouco notada durante os anos de ascensão de João e da bossa (embora cantasse com ele em alguns shows), Astrud adquiriu personalidade musical própria a partir de 1963, quando participou da gravação do antológico álbum norte-americano de bossa e jazz Getz/Gilberto (1964), de encontro entre a voz bossa-novista baiana de João e o saxofone jazzístico estadunidense de Stan Getz, e no qual figurava também o ascendente maestro carioca Antonio Carlos Jobim, a outra face da moeda rara que flutuou sobre o Brasil e o mundo sob o nome de bossa nova. Ali, Astrud, aos 22 anos, cantou “Corcovado”, de Tom, e nada menos que “The Girl from Ipanema”, versão em inglês para “Garota de Ipanema”, de Tom com Vinicius de Moraes.
Lançada em 1962 pelo comportado cantor Pery Ribeiro (filho e herdeiro de dois emblemas musicais da geração anterior, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins), essa bossa a um só tempo praieira e urbana abre o LP Getz/Gilberto em português, na interpretação de João, até que a voz triste de Astrud entra entoando a versão em inglês assinada pelo letrista norte-americano Norman Gimbel, seguida pelo sax de Getz e pelo piano de Jobim. Pelas cordas vocais de Astrud Gilberto, “The Girl from Ipanema” deslizaria para se tornar a segunda canção popular mais executada da história do mundo, atrás apenas de “Yesterday” (1965), dos Beatles.
Num retrato cru do que significava ser mulher na música mundial nos anos 1960 e além, Getz/Gilberto foi atribuído a “Stan Getz-João Gilberto featuring Antonio Carlos Jobim”, sem nenhum crédito para a voz feminina, fosse na capa, na contracapa, no rótulo da bolacha ou nos textos assinados no interior do álbum por Getz e por João. A única menção ocorre no sétimo parágrafo do texto do músico e letrista canadense Gene Lees, versionista de “Corcovado“, que, mais uma vez, João canta em português e Astrud, em inglês: “A voz da garota que você ouve no álbum é de Astrud, esposa de João, uma doce e quieta garota que é ela própria uma compositora – e, se necessário, tradutora de inglês para João”.
No ano passado, o jornal britânico The Independent contou essa história nos seguintes termos: “O que deveria ser uma história edificante – celebrar uma cantora que fincou uma marca extraordinária em sua primeira aparição profissional – tornou-se uma triste história de como uma jovem tímida foi explorada, manipulada e ferida por uma indústria musical dominada por homens e repleta, como ela afirmou, de ‘lobos em pele de ovelhas”. Consta que a jovem Astrud não recebeu nenhum royalty pelo álbum que ajudou a imortalizar e que bateu recordes de vendagem e prestígio mundo afora.
Imediatamente após o estouro de “The Girl from Ipanema”, o diretor da Verve Records e produtor de Getz/Gilberto, Creed Taylor, editou em compacto uma versão mais curta da faixa, da qual foram suprimidos os vocais de João (a não ser breves vocalizações na introdução). Creditada num compacto simples a Getz, a João e, agora, a Astrud, foi essa a versão que correu mundo, bem mais que a original de cinco minutos e meio iniciada em português por João.
Ainda em 1964, o nome da cantora debutaria na capa de um LP, Getz au Go Go – A Live Performance, de “The Stan Getz Quartet featuring Astrud Gilberto”. Na abertura, ela interpreta mais uma vez “Corcovado”, agora sem a voz de João, de quem havia se separado ainda em 1963. E aparece solando em metade das faixas, divididas entre bossas (“Você e Eu” e “One Note Samba”, em português, e “The Telephone Song”, versão em inglês para “Telefone”) e clássicos da canção norte-americana (“It Might As Well Be Spring”, “Only Trust Your Heart”).
A ruptura com João demarca, simultaneamente, a ruptura com o Brasil. Já apartada de Stan Getz, Astrud iniciou carreira solo pela Verve em 1965, definindo um estilo em The Astrud Gilberto Album, acompanhado por Tom Jobim, que foi creditado na contracapa da versão estadunidense e na capa da brasileira, lançada pelo selo Elenco, de Aloysio de Oliveira, produtor e músico brasileiro-estrangeiro que acompanhou a escalada de Carmen Miranda a Hollywood com o Bando da Lua. Tom é autor de dez das 11 faixas, exceto “And Roses and Roses”, versão em inglês para “…Das Rosas”, de Dorival Caymmi. Está presente também nos vocais secundários de “Água de Beber” (1961).
Tal como acontecera em “The Girl from Ipanema”, a fusão entre jazz e bossa impera, ora em português, nas faixas “Água de Beber”, “Photograph” (a mesma “Fotografia” lançada em 1959 na voz da precursora Sylvia Telles), “O Morro Não Tem Vez” e “Só Tinha de Ser com Você”, ora em inglês, em “All That’s Left Is to Say Goodbye” (“É Preciso Dizer Adeus”) e “Dindi”, também lançadas em português por Sylvia Telles (em 1958 e 1959, respectivamente), “Once I Loved” (“O Amor em Paz”), “Meditation” (“Meditação”), “How Insensitive” (“Insensatez”) e “Dreamer” (“Vivo Sonhando”), todas gravadas em português por João.
Ainda em 1965, Astrud alarga horizontes no também bilíngue The Shadow of Your Smile, acrescentando standards norte-americanos como a faixa-título e “Fly Me to the Moon“, um tema do italiano Ennio Morricone (“Funny World”) e bossas de segunda geração de Carlos Lyra e Geraldo Vandré (o protesto afro “Aruanda”, transformado em “Take Me to Aruanda“) e do também migrante Luiz Bonfá (em “The Gentle Rain”, “Tristeza”, “O Ganso” e uma leitura delicadíssima da bossa inaugural “Manhã de Carnaval”). “O Ganso“, em aparente diálogo com “O Pato” eternizado em 1960 por João, é um tema apenas vocalizado, sem letra.
A associação com a Verve perdurou por mais seis álbuns invariavelmente inspirados, sempre sob a fórmula bossa-jazz Brasil-Estados Unidos consagrada em 1964. Look to the Rainbow (1966) se reveste de arranjos e regências do jazzista canadense Gil Evans, entre temas de Baden Powell (“Berimbau”), Jobim (“Frevo”, “A Felicidade”, “Ela É Carioca” – vertida a “She’s a Carioca”), João (“Bim Bom”), Marcos Valle (“Preciso Aprender a Ser Só”, ou “Learn to Live Alone”) e Carlos Lyra (“Maria Moita”, transformada em “Maria Quiet” por Norman Gimbel, mantendo os versos de projeção feminista criados para Nara Leão por Vinicius de Moraes).
A seguir, A Certain Smile a Certain Sadness (1966) é dividido com o trio do organista pernambucano Walter Wanderley, outro exilado na América do Norte, com Claudio Slon na bateria e José Marino no baixo. A dualidade entre bossa e jazz se mantém, mas afrouxada em ambos os extremos. Semi-standards norte-americanos como “Here’s That Rainy Day”, “A Certain Smile” e “It’s a Lovely Day Today” são suavizados pelo órgão de Walter Wanderley, na fronteira entre o samba e o pop easy listening (e até o iê-iê-iê, se formos mais longe).
No front brasileiro, Astrud se desapega da bossa ortodoxa em favor de versões pop levadas ao órgão para canções tradicionais-populares como (a hoje politicamente inaceitável) “Nega do Cabelo Duro“, “Tristeza” (ou “Goodbye Sadness”) e “Você Já Foi à Bahia?”, de Caymmi (essa com versos não creditados de “Dora”, outro clássico caymmiano). A bossa de núcleo duro se restringe a “So Nice (Summer Samba)“, versão em inglês para o megahit “Samba de Verão” (1964), do modernizador Marcos Valle.
Em Beach Samba (1967), a bossa pop incorpora e atualiza a tradição, em “Canoeiro”, composto por Caymmi, mas creditado ao arranjador do disco, o brasileiro exilado Eumir Deodato, mas também as novas gerações da música brasileira, em “Parade”, versão de arranjo fortemente marcial para “A Banda” de Chico Buarque, e o suingue vocalizado “Não Bate o Coração“, assinada por Deodato, mas de arranjo bem próximo à pilantragem de Wilson Simonal.
No ano seguinte, Windy adotou uma estética próxima à de cantoras como Françoise Hardy, Nancy Sinatra e Dusty Springfield e aprofundou a tendência popizante, ensolarando a bossa jovem de Marcos Valle em “Chup, Chup, I Got Away” e “Crickets Sing for Anamaria” (tradição do clássico soul-pop-jazz “Os Grilos”), o jazz leve dos filmes infantis de Walt Disney (em “The Bare Necessities”, do filme Mogli), o rock dos Beatles (“In My Life“) e a fofura já ligeira de baladas chiclete como “Dreamy”, “Sing Me a Rainbow” e “Where Are They Now?“. Nessa altura, a volta ao mundo de “Garota de Ipanema” já levava Astrud a gravar versões de seus próprios sucessos em francês, alemão e espanhol e a lançar álbuns inteiros em italiano (Astrud Gilberto Canta in Italiano, de 1968) e japonês (Gilberto Golden Japanese Album, de 1970, com canções em japonês de Sadao Watanabe (“Street Samba“) e outros e traduções japonesas para “The Shadow of Your Smile”, “Garota de Ipanema” e “Mas Que Nada“, de Jorge Ben Jor, entre várias).
Nos anos seguintes, a escalada pop aproximou Astrud de Bee Gees (“Holiday“, em September 17, 1969, de 1969), The Doors (“Light My Fire”, idem) Burt Bacharach (“Trains and Boats and Planes“, em I Haven’t Got Anything Better to Do, 1969), Bob Dylan (“If Not For You“, num compacto de 1971) e Romeu e Julieta (“A Time for Us“, tema da adaptação cinematográfica de Franco Zeffirelli para a peça de William Shakespeare, num compacto de 1968).
A fase Verve se encerra em 1971, quando Astrud se muda com Creed Taylor para o novo selo do produtor, CTI, e lança Gilberto with Turrentine, dividido com o saxofonista estadunidense Stanley Turrentine, mais uma vez com arranjos de Eumir Deodato. A compreensão da música brasileira para além da bossa nova leva a releituras para o tema tradicional nordestino “Mulher Rendeira” (sob o título “Brazilian Tapestry“), “Zazueira“, de Jorge Ben, “Vera Cruz“, de Milton Nascimento, e o protesto festivalesco “Ponteio“, de Edu Lobo. “Just Be You“, uma então rara composição própria de Astrud, foi gravada nas sessões de Gilberto with Turrentine, mas permaneceu inédita até uma reedição expandida em 2003.
A fase dourada de Astrud Gilberto se encerra em 1972, com ensolarado, suingado e excêntrico álbum Now, pelo selo independente Perception, que parte do conceito desenvolvido na parceria com Walter Wanderley e apresenta versões pop pós-bossa nova do tradicional canto de trabalho “Escravos de Jó” (renomeado “Zigy Zigy Za” e introduzido por um cântico indígena), do “Baião” pernambucano de Luiz Gonzaga, do standard mineiro de Milton Nascimento “Travessia” (na versão em inglês elaborada para o mercado internacional, “Bridges“), do sucesso carnavalesco “General da Banda” (gravado originalmente em 1950 nas vozes de Blecaute e de Linda Baptista) e do suingue carioquíssimo “Take It Easy My Brother Charlie“, de Ben Jor.
“Eu já cantei no Pará, toquei sanfona em Belém/ cantei lá no Ceará e sei o que me convém”, canta nostalgicamente, em “Baião”, a intérprete nordestina que nunca mais voltou a morar no Brasil. “Eu sou doido pelo baião”, conclui, afastando-se da letra original de 1949 e acenando sem sucesso a uma possível reconciliação com o país. “Zigy Zigy Za” e o samba-rock de Jorge Ben foram atribuídos como autorias de Astrud, assim como o sambão de cuíca e batuque “Gingele“. O caminho não estava aberto para que Astrud Gilberto se firmasse como compositora.
Daí por diante, Astrud Gilberto será para sempre uma artista underground tentando se consolidar como compositora. Os raros álbuns lançados a partir de That Girl from Ipanema (1977) conterão sempre composições próprias, nesse primeiro momento em meio a apelos à tradição (“Meu Pião”, de Zé do Norte, e as marcas musicais de Carmen Miranda “Mamãe Eu Quero” e “Chica Chica Boom Chic”, em 1977) e uma versão de punho próprio para a umbanda “A Gira“, lançada pelo Trio Ternura em 1973, transformada agora em “Black Magic“.
No disco de 1977, além de cometer uma exótica releitura discothèque para “The Girl from Ipanema“, Astrud canta Cole Porter (“Love for Sale”) e conta com a participação vocal do ídolo Chet Baker em “Far Away”, assinada por ela com Hal Schaeffer. Mesmo em discos divididos com o trombonista japonês Shigehari Mukai (So & So, de 1983) e com o baixista e compositor alemão de jazz James Last (Plus, 1986), as canções autorais majoritariamente em inglês predominaram, o que se repetiu em dois derradeiros e extemporâneos álbuns solo, Temperance, em 1997, e Jungle, em 2002, ano em que se afastou definitivamente dos palcos. “Uma reconciliação/ estou pedindo uma reconciliação/ você não vai levar em consideração/ que estou implorando que não vá embora?/ estou pedindo uma reconciliação pelos velhos tempos/ me perdoe pelos erros”, compõe e canta, em inglês, em “Reconciliation” (1997).
Se para Temperance Astrud só compôs uma canção em português (“Festa do Berimbau”, ao som do berimbau do carioca emigrado Duduka da Fonseca), no derradeiro Jungle ela utiliza o idioma natal nas autorais “É Só Me Pedir”, “Xaxado do Safado” e “Rebola, Bola” (um vibrante samba-repente rappeado pela voz brasileira de Magrus) e abre o álbum em português, no sambão de candomblé “Jungle (Xangô)“, pela voz brasileira de Valtinho: “Xangô, Xangô/ ah, venha me ajudar/ Xangô, Xangô/ venha me abençoar”. Tal como fizera com João Gilberto em 1964, ela aparece depois de Valtinho, cantando em inglês – desta vez, porém, acaba por cantar o refrão em português.
Há dois anos, de olho nas paradas mundiais, a pós-funkeira carioca Anitta elaborou uma recombinação perspicaz de Carmen Miranda, João Gilberto e Astrud Gilberto, substituindo a girl from Ipanema por uma “Girl from Rio” sediada em Honório Gurgel e na praia de Ramos, como a afirmar que havia um Brasil não-branco oculto embaixo dos calçadões da zona sul carioca que fascinaram norte-americanos, europeus e japoneses. Não deixava de ser uma homenagem transversa à baiana Astrud Gilberto, que viveu 21 anos de reclusão até sua morte, neste dia 6 de junho de 2023, sem jamais ter se reencontrado frente a frente com o país que a pariu, fosse o da república de Ipanema, fosse menos ainda o do piscinão de Ramos.
A musica da Cabritta foi uma critica a Garota de Ipanema, não uma homenagem. De Astrud e Bossa Nova até a Cabritta, a gente pode ver bem como a musica brasileira evoluiu do estilo pra bagaça.