O realismo mágico do mineiro Murilo Rubião (1916-1991) ganha bela homenagem na livre adaptação do conterrâneo Helvécio Ratton do conto “O Lodo”, que também intitula o novo filme do cineasta.
Falo em homenagem para que tentemos nos afastar de eventuais comparações, aquela velha lenga lenga sobre qualidades e defeitos das obras original e adaptada e se esta é melhor que aquela ou vice-versa: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Quem conhece o conto de Rubião rapidamente percebe a licença para inventar de Ratton, seja a mudança do nome do protagonista, seja o deslocamento temporal, percebido, por exemplo, no uso constante de telefones celulares.
A liberdade da imaginação de Ratton, no entanto, preserva o essencial de Rubião: a paisagem mineira, a mineirice de seu povo – evidenciada nas inspiradas atuações de integrantes do Grupo Galpão, destacado na cena teatral de Belo Horizonte, onde se passa o filme –, o enredamento de Manfredo (Eduardo Moreira) em uma teia de sucessivos e inescapáveis absurdos e um humor sutil e ferino, muito particular.
Manfredo tem um emprego (chato) em uma companhia de seguros, tem um caso com a mulher de seu chefe, que gosta de mostrar quem manda por puro sadismo, precisa disputar uma promoção com um colega antiético e chantagista, mas sente-se apático, sem vontade de nada, situação que o leva a procurar o renomado doutor Pink (Renato Parara).
Não demora mais que uma sessão de análise, e de sua indisposição para responder a questões colocadas pelo psicanalista, consequentemente impedindo qualquer avanço, para ele perceber que aquela não foi sua melhor escolha. “Eu vim atrás de um médico para me curar, não de um padre para me confessar”, chega a dizer. Mesmo tendo ido a apenas uma sessão e afirmado que não voltaria, ele é obrigado a pagar uma fábula por sessões a que faltou, algo surreal.
A partir do conto, bem-humorado para quem sabe apreciar, o roteiro (do diretor com L. G. Bayão), idem, consegue ser um espelho do espectador: Manfredo passa a ser literalmente perseguido pelo doutor Pink e sua secretária como qualquer um de nós o é cotidianamente por operadoras de telefonia, por exemplo, em maior ou menor grau. E lá pelas tantas, ganham uma aliada: a irmã de Manfredo (Inês Peixoto), que aparece de repente em mais um entre tantos absurdos.
Kafkiano é adjetivo que descreve bem a atmosfera da obra. “O que mais me atraiu no conto foi a naturalidade com que Rubião insere o absurdo na vida dos personagens, à maneira de [o escritor checo Franz] Kafka [1883-1924]. No filme, há uma tensão crescente entre a narrativa realista e a sucessão de acontecimentos insólitos na vida do protagonista. Por um lado, tudo está em seu lugar, a vida parece seguir seu curso normal. Mas, por trás dessa normalidade aparente, irrompe o absurdo, com sua própria lógica, e nos desconcerta”, diz o diretor Helvécio Ratton no material de divulgação do filme distribuído aos meios de comunicação.
A atmosfera claustrofóbica é evidenciada pela direção de fotografia do craque Lauro Escorel, com a maior parte da trama se desenvolvendo em ambientes fechados. O grande trunfo da livre adaptação é justamente levar quem a assiste a perceber o quanto estamos paranóicos, apesar de (ou justamente por causa dela) toda tecnologia ao nosso redor. E que se procurarmos direito, sem carecer de bisturis no peito, encontrando o trauma certo, Manfredo pode ser qualquer um de nós.
Serviço: “O Lodo” (drama cômico, Brasil, 2020, 94 minutos, classificação indicativa: 14 anos), de Helvécio Ratton, livre adaptação no conto homônimo de Murilo Rubião. Estreia nesta quinta-feira (13) nos cinemas brasileiros.
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