Entre ficção e realidade, a disputa pela memória da tragédia da boate Kiss

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Cena ds série ficcional "Todo Dia a Mesma Noite"

Qual é o limite ético para representar grandes tragédias em obras audiovisuais? Até que ponto a representação de tragédias e/ou crimes reais serve como mecanismo de denúncia ou de preservação da memória e até que ponto serve para saciar o voyeurismo da audiência, em nome do lucro? Essas são algumas das questões que emergiram com o lançamento das séries Todo Dia a Mesma Noite (Netflix), de Julia Rezende, baseada no livro de Daniela Arbex, e Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria (Globoplay), de Marcelo Canellas. Ambas retratam o episódio do incêndio da Boate Kiss, ocorrido em 27 de janeiro de 2013, com um saldo de 242 mortos e mais de 600 feridos, a primeira de forma ficcional e a segunda de forma documental.

Alguns parentes de vítimas reclamaram da série ficcional, não só porque não foram consultados ao longo do processo de sua realização, mas também porque o episódio da tragédia foi dramatizado, misturando ficção e realidade e os fazendo reviver o trauma, principalmente por meio das cenas que antecedem o incêndio e da própria cena do incêndio. Alegaram, por outro lado, que as imagens de arquivo utilizadas na série documental já eram conhecidas por todos e, portanto, não foram surpreendidos por elas. Esse tipo de reclamação não é inédito. Em 2013 o Poder Judiciário proibiu o grupo Os Satyros de exibir a peça teatral Edifício London, inspirada no assassinato de Isabella Nardoni, a pedido da mãe da vítima. A série sobre o serial killer Jeffrey Dahmer, também produzida pela Netflix, foi duramente criticada por alguns parentes das vítimas, que se sentiram desrespeitados.

É comum que no imaginário popular o documentário, assim como o jornalismo em geral, seja encarado como mais fiel à realidade e objetivo do que obras ficcionais. Esquece-se, todavia, que, assim como uma obra ficcional, um documentário também possui roteiro, edição, trilha sonora e outros elementos que contribuem para a dramatização dos fatos e a construção de uma narrativa. Nesse sentido, a escolha do que mostrar e do que não mostrar, para além de questões éticas, é fundamental para conferir força a um documentário, e muitas vezes o não mostrado acaba gerando debates que conferem ainda mais visibilidade ou destaque a um episódio do que se tivesse sido mostrado.

Na série documental da Globoplay, por exemplo, um dos momentos mais dramáticos se dá justamente quando a promotora exibe para os jurados, no tribunal do júri, as imagens das pilhas de mortos na boate Kiss, a fim de sensibilizá-los para a dimensão da tragédia/crime. Por mais que as imagens em si dos corpos não sejam mostradas na série, o efeito de horror é transmitido para o público em casa não só pela fisionomia das pessoas no tribunal ao verem as imagens, mas principalmente pela fala da mãe de uma das vítimas, que defende que as imagens da filha morta sejam exibidas para todo mundo, por mais que causem dor a ela, como forma de denúncia, posição semelhante à da novelista Gloria Perez, que defendeu a exibição das imagens do corpo de sua filha assassinada na série da HBO Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez.

Essa preocupação dos pais das vítimas em mostrar as imagens dos filhos mortos se explica como uma forma de reação a uma política de esquecimento que faz parte da tradição brasileira. Enquanto os argentinos, por exemplo, estão acostumados a construir lugares de memória para relembrar seus mortos em eventos traumáticos, como o incêndio da boate Cromañon em 2004 ou a ditadura militar (1976-1983), o Brasil tem adotado uma política de esquecimento em relação às suas feridas históricas, sob o pretexto de “virar a página”. Uma cena emblemática da série ficcional da Netflix reside justamente num personagem de Santa Maria que reclama a respeito da tenda em que as fotos das vítimas da boate Kiss ficam expostas, alegando que a cidade precisava superar o que aconteceu.

A questão fica ainda mais complexa quando se leva em conta o fenômeno da vitimização secundária, ou seja, a forma como o processo judicial faz as vítimas e seus parentes reviverem o trauma do acontecimento, causando dor. A Segunda Guerra Mundial foi decisiva para fortalecer a vitimologia, o ramo da criminologia que estuda a vítima. O direito penal, sob a justificativa de oferecer uma resposta técnica, neutra, racional e asséptica ao crime, fez com que o Estado tomasse o lugar da vítima no conflito criminal, ou seja, que a vítima ficasse relegada ao segundo plano. A vitimologia recupera o protagonismo da vítima, entendendo que ela deve participar do processo judicial, que algumas medidas devem ser tomadas para evitar a vitimização secundária, como evitar determinadas perguntas, e que muitas vezes o interesse das vítimas não é o mesmo interesse do Estado. Isso fica claro na série ficcional da Netflix, que retrata de forma mais acentuada do que a série documental da Globoplay o conflito entre o Ministério Público e alguns pais de vítimas, que chegaram a ser processados pelos promotores pelos crimes de calúnia, difamação e falsidade ideológica.

Tanto a série ficcional quanto a documental dão muito destaque à luta dos sobreviventes e dos parentes das vítimas por Justiça. Em vários momentos esses personagens deixam claro que buscam justiça, não vingança. Em seu discurso, podemos identificar o reconhecimento da função preventiva geral positiva e negativa da pena. Ou seja, para que as mortes das 242 vítimas não tenham sido em vão, defende-se que a condenação dos réus teria duas funções: reafirmar que o que houve em Santa Maria foi um crime (de assassinato) (função preventiva geral positiva) e, servindo de exemplo, influenciar o comportamento de outras pessoas e fazer com que uma tragédia como aquela jamais se repita com os filhos de outras pessoas (função preventiva geral negativa). A eventual absolvição dos réus pelo crime de homicídio doloso é encarada como o corolário da impunidade no país. Por outro lado, nem sempre a resposta penal é a mais almejada pelas vítimas, ainda mais levando em conta que o direito penal costuma dar respostas binárias e maniqueístas (culpado/inocente), que não dão conta das nuances e das complexidades da vida. A construção de um memorial no local da tragédia, por exemplo, é uma das principais reivindicações dos familiares das vítimas da boate Kiss.

A esse respeito, cabe uma distinção jurídica importante. Os réus da boate Kiss que foram a júri popular foram acusados de homicídio na modalidade de dolo eventual. Enquanto na modalidade de dolo direto o acusado desejou o resultado morte e na modalidade de culpa consciente o acusado previu o risco do resultado, mas acreditou que não fosse ocorrer e demonstrou inconformismo com a ocorrência, na modalidade de dolo eventual o acusado prevê o risco do resultado, o assume e demonstra indiferença diante da ocorrência. Enquanto o homicídio culposo é julgado por um juiz togado e tem uma pena de até três anos de reclusão, o homicídio doloso, mesmo na modalidade de dolo eventual, é julgado pelo júri popular e tem uma pena de até 20 anos de reclusão, sem contar as eventuais qualificadoras e causas de aumento de pena. Críticos do tribunal do júri sustentam que cidadãos leigos teriam dificuldade de julgar casos tão complexos como o da boate Kiss e fazer as diferenciações técnicas que impactam decisivamente no destino dos réus.

Se na série ficcional os promotores são vilanizados em razão de não seguirem as reivindicações dos familiares das vítimas, alegando questões técnicas e políticas, a edição da série documental faz com que um dos principais vilões seja um dos advogados dos réus, acusado de dar um “showzinho” ofensivo aos parentes das vítimas no tribunal do júri. A antropóloga Ana Lúcia Pastore mostra em seus estudos que é comum o apelo às emoções dos jurados no tribunal do júri, tanto por parte da acusação quanto da defesa. Apesar de a decisão dos jurados não poder em tese contrariar a prova dos autos processuais, ela não precisa ser motivada, de maneira que pode ser guiada por elementos outros que não os aspectos técnico-jurídicos. Diante desse cenário, o tribunal do júri, além de um ritual, apresenta elementos que o aproximam de um teatro, em que os atores envolvidos usam recursos dramáticos que vão desde trilha sonora, vídeos e cenas de choro até cartas psicografadas das vítimas.

Nesse sentido, no tribunal do júri ocorre uma disputa de narrativas, e o crime é reconstruído dramaticamente tal como numa série ficcional ou documental. A depender de quem utiliza e como se utiliza o recurso dramático, a reconstrução pode soar ofensiva às vítimas, aumentando a vitimização secundária, ou funcionar como instrumento de denúncia, preservação da memória e até superação do trauma. Por outro lado, não se pode descartar a influência que filmes ou séries de TV sobre crimes pode ter sobre o julgamento de casos que ainda não transitaram em julgado, como é o caso da boate Kiss, independentemente de serem julgados por jurados leigos ou por juízes togados supostamente técnicos. As duas séries terminam com um final aberto. Não se sabe ainda, depois de dez anos, qual será o desfecho do processo judicial nem se será considerado justo pelos envolvidos. Assim como sentenças judiciais, produções artísticas não estão isentas de críticas. Entretanto, por mais falhas que sejam, a repercussão das duas séries aponta, pelo menos, para a necessidade que a sociedade tem de contar o que ocorreu em 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria. Já é um primeiro passo para a conscientização por memória e verdade.

Danilo Cymrot é doutor em criminologia pela Faculdade de Direito da USP e autor de
O Funk na Batida – Baile, Rua e Parlamento (Edições Sesc, 2021).

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