Certas canções de Erasmo Carlos e Gal Costa, 1980-2022

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Se as duas primeiras décadas das histórias de Gal Costa e Erasmo Carlos são estelares, o que vem a seguir quase sempre é a vida real, com todos os altos e baixos que a caracterizam. Muito mais coisa aconteceu entre os 1980 aos 2020 que nos anos de concentração e juventude. Gal se expandiu para uma hitmaker carnavalesca (uma década antes da explosão da axé music), para cantora romântica ultrapopular, para cultuadora da música e dos ritos afrobaianos, para cantora errática à procura da própria voz na dissipação da influência de Caetano Veloso, para novamente porta-voz na órbita do parceiro mais afeito à exposição intelectual. Erasmo viveu um período efêmero de apogeu pop, retraiu-se nos anos 1990 (com apenas um álbum de temas inéditos), viu-se mais uma vez sentado à beira do caminho na dupla histórica com Roberto Carlos (a rigor, a parceria minguou no final dos anos 1990, para nunca mais recobrar o vigor), retomou a alta produtividade a bordo de um leque impressionante de novos parceiros, desviou-se como pôde das inevitabilidades do mito de juventude iê-iê-iê.

Como de praxe, o fardo foi mais leve para o rapaz que para a moça. A densidade da produção de Gal nas duas primeiras décadas tomou o baque das decréscimo da condição de “sex symbol”, com efeitos perceptíveis na voz, no fogo interpretativo, na auto-imagem, na identidade própria, individual e intransferível. Sob o álibi da frugalidade da jovem guarda, Erasmo teve oportunidade de ajustar os ponteiros com a própria identidade, desde a adolescência como autor de “Maria e o Samba” (1959, gravada apenas quando o jovem já contava 78 anos de idade) até a consolidação como força motriz da MPB legitimada por nomes como Caetano, Gal, Gilberto Gil, Nana Caymmi, Milton Nascimento etc. etc. etc. No percurso, enquanto uma oscilava entre tentar se reencontrar com a tropicália e libertar-se dela, o outro conseguiu firmar aquilo que ensaiou chamar de “jovem samba”, entre o marketing do mentor Carlos Imperial e o samba-soul de raízes profundas dos parceiros Jorge Ben Jor e Tim Maia. A crônica musical, via de regra, percebe pouco a trilha monumental de sambas tortos deixados como legado pelo “roqueiro” Erasmo Carlos. Tampouco a transformação de Gal, de “diva” “tropical” para intérprete de tons soturnos e depressivos, tem sido avaliada pela perspectiva trágica, e não só pelo culto e pelo modismo. Se os jovens Erasmo e Gal dizem (até hoje) aquilo tudo que gostamos de ouvir e mitificar, a maturidade de ambos conta muito mais sobre a arte de viver e sobre as instabilidades do país a construir (como sempre insiste Caetano) que chamamos Brasil, e que a música nacional do século passado vocalizou com precisão inigualável. Abaixo, algo sobre a intensa produção dos dois artistas no intervalo de 1980 a 2022, em continuação ao roteiro da fase 1963-1979.

Erasmo Carlos e Gal Costa, “Detalhes” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1980 – O inédito encontro vocal entre Erasmo e Gal se dá na quarta obra-prima erasmiana em dez anos, Erasmo Carlos Convida…, LP que sedimenta a incorporação do ex-rebelde da jovem guarda ao panteão da MPB, em duetos formidáveis com Roberto Carlos (“Sentado à Beira do Caminho“, 1969), Gilberto Gil (“Mané João“, 1972), Rita Lee (“Minha Fama de Mau“, versão rockão do sucesso roberto-erasmiano que lançou o nome do “tremendão” em 1964), Maria Bethânia (“Cavalgada“, 1977), Caetano Veloso (“Quero Que Vá Tudo pro Inferno“, obra-prima gravada por Roberto em 1965), Jorge Ben (o samba-rock “O Comilão“, extraído de um compacto de 1973), Nara Leão (“Café da Manhã“) e Wanderléa (“Na Paz do Seu Sorriso“, 1979). A Gal é reservado o clássico romântico “Detalhes”, lançado por Roberto em 1971, em tratamento que mistura músicos da banda da cantora (Perinho Albuquerque, Moacyr Albuquerque, o clubedaesquinista Wagner Tiso) com os magos dos sintetizadores pós-discothèque Lincoln Olivetti e Robson Jorge. O elenco o autotributo se completa com dois grupos em voga na virada dos anos 1970 para os 1980, as discotequeiras Frenéticas e os afrobaianocariocas A Cor do Som. Erasmo Carlos Convida… se divide entre cinco canções gravadas originalmente por ele, contra sete lançadas por Roberto.

Erasmo Carlos e Tim Maia, “Além do Horizonte” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1980 – À parte a constelação reunida acima, o momento sísmico de Erasmo Carlos Convida… pertence ao companheiro de juventude suburbana Tim Maia, numa releitura abrasiva da balada pop idílica robertoerasmiana “Além do Horizonte”, alçada ao estrelato por Roberto em 1975. Com Tim, o idílio imerso na natureza é envenenado pelo funk, ao som dos teclados de Robson & Lincoln, da guitarra de Robson, de orquestra de cordas, da percussão do próprio Tim, do baixo e dos sopros da Banda Black Rio (Oberdan Magalhães à frente) etc. Se no final dos anos 1960 Erasmo, Roberto e Elis haviam embranquecido o black power de Tim, agora acontecia o inverso, e Tim Maia salpicava 13 variedades de pimenta funk no soul branquelas de Erasmo e Roberto.

Erasmo Carlos, “Feminino Coração de Deus” (Sérgio Sampaio), 1981 – Assim como Roberto Carlos, o cantor e compositor Sérgio Sampaio nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Seu imaginário inclinava-se mais para o do parceiro Raul Seixas que para o de Roberto, mas ainda assim ele acalentava o sonho de ser gravado pelo conterrâneo mais ilustre, um desejo que ficou inscrito para sempre na canção “Meu Pobre Blues” (1974). Roberto jamais cedeu, mas Erasmo deu ouvidos a Sérgio, instigou-o a seguir na música e esteve por trás da criação do maior (e único) sucesso popular da história do segundo cachoeirense, “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (1973). Já que Roberto não gravava Sérgio, Erasmo resolveu fazê-lo por si mesmo, e assim surgiu, sob encomenda, o blues tristonho “Feminino Coração de Deus”, incluído no álbum mais pop do cantor e compositor carioca, Mulher, quase todo dedicado a temas protofeministas (“Mulher”, “Minha Superstar”, “Feminino Coração de Deus”, a algo contrariada “A Lenda do Ciúme”) e familiares (“Filho”, “Primogênito”). “Mulher” e “Minha Superstar” foram sucessos, assim como a gaiata “Pega na Mentira”, mais ainda, e Sérgio Sampaio seguiu sem tocar no rádio, seja na própria voz ou na de Erasmo.

Gal Costa, “Estrela, Estrela” (Vitor Ramil), 1981 – Na fúria louca da indústria fonográfica extremamente lucrativa da década de 1980, o LP Fantasia marca o início de uma fase de inédita popularização para Gal. Os principais combustíveis são a balada “Meu Bem, Meu Mal”, de Caetano, dois blues do alagoano agora superstar Djavan, “Faltando um Pedaço” (também gravado pelo autor em 1981) e o inédito “Açaí” e, sobretudo, o frevo junino “Festa do Interior”, que acabaria por se revelar um hino carnavalesco, de autoria do conterrâneo Moraes Moreira (com Abel Silva), que Gal ajudara a revelar lá atrás, em 1971, ao gravar “Dê um Rolê“, uma das muitas obras-primas dos Novos Baianos. Não significava que a cantora estivesse voltando as costas para os novos caminhos da MPB, como prova a gravação de “Estrela, Estrela”, do gaúcho Vitor Ramil (irmão mais novo da dupla então bastante popular Kleiton & Kledir), a duas vozes com o cantor paulista Zé Luiz Mazziotti. “Estrela, estrela/ como ser assim/ tão só, tão só/ e nunca sofrer?”, especulava a letra, entre a melancolia e a esperança. Vitor, então com 19 anos, começava a lançar discos naquele ano de 1981, mas só na década seguinte se consolidaria como compositor e cantor denso, criador das “ramilongas” e da “estética do frio” dos pampas gaúchos.

Simone e Gal Costa, “Bárbara” (Chico Buarque-Ruy Guerra), 1981 – Ainda audaz mesmo diante da massificação, Gal topou o desafio imposto pela conterrânea Simone, em seu álbum Amar, de regravar em dueto feminino a canção lésbica “Bárbara”, mutilada pela censura militar quando seu autor, Chico Buarque, tentou incluí-la em Calabar – O Elogio da Traição (1973), peça teatral censurada cuja trilha sonora saiu afinal toda retalhada e sob o título Chico Canta. “Bárbara”, por exemplo, teve a palavra “duas” suprimida do trecho “vamos ceder enfim à tentação das nossas bocas cruas/ e mergulhar no poço escuro de nós duas”, substituída por um rude e abrupto silêncio. A verdade só reapareceu no leito da chamada abertura política, primeiro pela voz de Angela Ro Ro (em 1980), e em seguida neste dueto Simone-Gal.

Erasmo Carlos, “Mesmo Que Seja Eu” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1982, e Marina Lima, “Mesmo Que Seja Eu” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1984 – Em 1982, Erasmo forjou o último sucesso de massa gravado em sua própria voz, a obra-prima “Mesmo Que Seja Eu”, incluída no LP Amar pra Viver, ou Morrer de Amor, antológico desde a surreal capa pacifista de coração rasgado. Nesse mesmo momento, a ascendente Marina Lima gravava uma versão blues, áspera, personalíssima de “Emoções” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos, 1981), sucesso romântico lançado por Roberto no ano anterior. Dois anos mais tarde, Marina dobrou a aposta e apresentou sua própria visão de “Mesmo Que Seja Eu”, no álbum Fullgás, seu trabalho mais bem-sucedido até esse momento. Na voz sexualmente livre de Marina, o refrão alçou voos inesperados: “Você precisa de um homem pra chamar de seu/ mesmo que esse homem seja eu”.

Gal Costa, “Bahia de Todas as Contas” (Gilberto Gil), 1983 – De volta ao começo, a voz de Gal lança mais um tema inédito de loa à Bahia por Gilberto Gil, o candomblé “Bahia de Todas as Contas”, no álbum Baby Gal, sua despedida da gravadora Philips/PolyGram após 16 anos de associação. Daqui sai “Grande Final”, o terceiro tema carnavalesco da lavra de Moraes Moreira (o segundo foi “Bloco do Prazer”, em Minha Voz, de 1982), também usado no especial global infantil A Turma do Pererê, inspirado nos personagens de Ziraldo: “Viver dá pé, dá pé viver/ pé de Saci/ Pererê, Pererê, Pererê, Pererê”.

Erasmo Carlos, “Close” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1984 – Enquanto Marina Lima revolvia “Mesmo Que Seja Eu”, Erasmo cravava sucesso controverso nas paradas, celebrando a então popular travesti Roberta Close, protagonista também de um videoclipe gravado nas ondas da empolgação pela abertura política e pelas “diretas já”. O tom tecnopop-new wave marca o álbum Buraco Negro, com subversão sexual de Caetano Veloso (“Comeu”), reggae de Gilberto Gil (“Indigo Blue”), pacifismo de Gonzaguinha (“Sementes do Amanhã”), rockabilly para Narinha (“Nara”, de Roberto e Erasmo) e loa nostálgica à “Turma da Tijuca” (Roberto-Erasmo) integrada, na virada dos anos 1950 para os 1960, pelos Beatles brasileiros (caso tivessem formado um conjunto), Roberto, Erasmo, Jorge Ben, Tim Maia e Wilson Simonal.

Erasmo Carlos, “Boba” (Lulu Santos), 1984 – Buraco Negro marcou, ainda, a aliança de Erasmo com a nova geração de roqueiros emergente desde 1982, em “Homem Lobo Lunar”, de Eduardo Dussek, e a deliciosa balada pop carioca de separação “Boba”, de Lulu Santos. “Nossos caminhos vão/ quem sabe um dia se encontrar/ como seremos, como será?/ quem saberá?/ agora é hora de enxugar os olhos/ é tempo de não esquecer/ que não demora, a noite vira aurora/ tempo de outro amor nascer”. Erasmo retribuiu o presente de Lulu, participando de “Ronca Ronca” (1984), num coro rock’n’roll completado por Rita Lee, Roberto de Carvalho e o líder da Blitz, Evandro Mesquita.

Zé Ramalho e Erasmo Carlos, “O Tolo na Colina (The Fool on the Hill)” (John Lennon-Paul McCartney-versão Zé Ramalho), 1984 – Em encontro paraibano-carioca nada trivial, Erasmo e Zé Ramalho cantam juntos “O Tolo na Colina”, gentil versão para “The Fool on the Hill” (1967), dos Beatles, no álbum de crossover Pra Não Dizer Que Não Falei do Rock ou… Por Aquelas Que Foram Bem Amadas. “Dia após dia/ sentado e só/ do alto de uma colina/ um homem vive a pensar/ ninguém sabe o nome dele/ nem se importam com o que ele faz/ todos caçoam dele/ mas um homem normal/ não se importa nem vê/ que os olhares do mal/ brilham mais que os do bem”, entoa Erasmo, profético à moda de Zé Ramalho, desenhando um ermitão em quase tudo divergente do ídolo Roberto Carlos.

Gal Costa e Luiz Gonzaga, “Cabeça Feita” (Jackson do Pandeiro-Sebastião Batista da Silva)/ “Tililingo” (Almira Castilho)/ “Tem Pouca Diferença” (Durval Vieira), 1984 – O espírito brega-chique dos anos 1980 prevalece no álbum de estreia de Gal na gravadora RCA, então sob influência dos hitmakers populares Michael Sullivan e Paulo Massadas. A faixa de prestígio resiste no clássico “Vaca Profana”, de Caetano, ao mesmo tempo que o pop radiofônico romântico toma conta de “Chuva de Prata”, híbrido composto por Ed Wilson, egresso da jovem guarda, e por Ronaldo Bastos, autor de ponta do Clube da Esquina, e de “Nada Mais”, uma versão também de Ronaldo para “Lately” (1980), soul norte-americano de Stevie Wonder. Na corda bamba entre as duas pontas, o veio carnavalesco se amplia para o rasta-pé nordestino sertanejo, num pot-pourri com o pernambucano Luiz Gonzaga, que faz ao lado de Gal uma rara visita ao repertório do paraibano Jackson do Pandeiro, unindo “Tililingo” (1965, composta pela pernambucana Almira Castilho, parceira e esposa de Jackson), “Cabeça Feita” e “Tem Pouca Diferença” (ambos de 1981). “Tem Pouca Diferença” investe na macheza do homem nordestino (e brasileiro), com esgares de homofobia que revelam um ruído na devoção inter-geracional de Gal por Gonzagão. Em retribuição à cortesia do patrono, Gal gravará com ele o popularíssimo “Forró Nº 1“, da compositora paraibana Cecéu, para o LP Sanfoneiro Macho (1985).

https://www.youtube.com/watch?v=kdOFkbCEyYg

Almir Ricardi e Erasmo Carlos, “Raça” (Lincoln Olivetti-Robson Jorge), 1984 – Egresso da jovem guarda e extemporâneo na cena black power, Almir Ricardi fez sucesso em 1984 com a faixa-título disco-funk do LP Festa Funk, composta em parceria com Lincoln Olivetti e Robson Jorge. Erasmo reata laços com a black music participando de “Raça”, também de Robson & Lincoln, também em ritmo de festa disco-funk.

Gal Costa, “Acende o Crepúsculo” (Marina Lima-Antonio Cícero), 1985 – Sullivan & Massadas avançam na popização/popularização de Gal e concebem um clássico da soul-MPB romântica, promovendo inédito encontro vocal de Gal e Tim Maia, em “Um Dia de Domingo“, carro-chefe do LP Bem Bom ao lado de “Sorte”, de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, em dueto charmoso com Caetano Veloso e sob tratamento suavemente tecnopop. A renovação se dá pela via do pop-rock dos anos 1980, por intermédio de “Todo Amor Que Houver Nessa Vida” (1982), de Cazuza e Frejat, e “Acende o Crepúsculo”, parceria dos irmãos Marina Lima e Antonio Cícero, de tom moderno e despojado: “Sou de carne e osso e eletrônica/ cara, me dá um sorriso/ que a vida é crise/ (…) o amor é só roleta-russa/ não existe regra nem exceção”. Graças a Cícero e Marina, Gal pronuncia versos como “acende o crepúsculo de Cubatão”, referência underground ao Crepúsculo de Cubatão, boate dark-gótica da juventude roqueira de Copacabana. Confirmando o ecletismo dos anos 1980 (que será referência logo adiante para Marisa Monte e Adriana Calcanhotto), Gal coloca lado a lado a vanguarda paranaense-paulista de Arrigo Barnabé (“Bem Bom”) e o pop carioca, em “Musa de Qualquer Estação“, primeira composição de Roberto e Erasmo para Gal desde “Meu Nome É Gal” (1969).

https://www.youtube.com/watch?v=5joLa2AyKE4

Gal Costa, “70 Neles” (Antônio Edgard Gianullo-Vicente de Paula Salvia), 1986 – Nas asas da popularidade em alta, Gal grava o sambão “70 Neles” para a Copa do Mundo de 1986, em clima de exaltação e na torcida pela repetição da vitória brasileira da Copa de 1970, afinal não consumada.

https://www.youtube.com/watch?v=LK_0ElzGMh4

Obina Shok, Gilberto Gil e Gal Costa, “Vida” (Maria Juçá-Roger Kedyh), 1986 – Formada por músicos brasileiros e africanos filhos de diplomatas residentes em Brasília, a banda Obina Shok antecedeu a explosão da axé music numa mistura de sons caribenhos e afrobrasileiros, e contou com as presenças de Gal e de Gilberto Gil em “Vida”, um reggae alegre de aceitação da vida: “Vida é alegria/ vida me dá prazer/ vida é a luz do dia/ vida, vida vivida/ vida é o amor/ vida é cor e confusão/ vida é som e paixão”.

Erasmo Carlos e Leila Pinheiro, “Samba-Rock” (Billy Moore-Reg Simpson-Johnny Bradford-versão Erasmo Carlos), 1986 – Mais para bossa-jazz que para samba-rock, esta versão em português de uma gravação de 1959 de Billy Moore and The Four Lords, da Guiana Inglesa, e regravada em 1960 pel’Os Cariocas, traz a paraense Leila Pinheiro nos vocais e mesmeriza na ironia cantada por Erasmo com sotaque gringo estadunidense: “Vim ao Rio de Janeiro/ esperando encontrar/ jacarés pelas calçadas/ índios nus à beira-mar/ o que vi foram guitarras/ namorando o violão/ fui gostando e fui ficando/ entre amores e canções/ samba, tem rock no samba”. Em colisão com a passeata contra as guitarras elétricas comandada por Elis Regina em 1967, Erasmo elabora a vitória acachapante do jovem samba, providenciando um namoro safado entre guitarra e violão.

https://www.youtube.com/watch?v=GxMTmTweVZM

Marcos Valle, “Sem Você Não Dá” (Marcos Valle-Erasmo Carlos), 1986 – O pop ginástico não é especialmente inspirado, mas trata-se da primeira parceria gravada de dois titãs da música nacional, Erasmo pelo iê-iê-iê, Marcos Valle pela bossa nova, ambos pelo soul branco à brasileira, em memória do tempo soberbo em que o primeiro gravou o protesto iluminado de sol “26 Anos de Vida Normal” (1971), do segundo. A parceria se repetiria em “O Verão É uma Festa” (1990), feita para a dupla adolescente Luan & Vanessa, “Frases do Silêncio” (2001), lançada por Nana Caymmi, e “Hóstia” (2009), gravada por Simone. Menos caudalosa a produção de Roberto Carlos, Erasmo abre-se mais, daqui por diante, para parcerias outras, com Guilherme Arantes (“Bicho Solidão”, 1990), Ritchie (“Onde Que Eu Errei?”, 2002), Frejat (“Paz Nunca Mais”, 2003), Paula Toller [“? (O Q E Q Eu Sou?)”, só de Erasmo, 2007] e Paulo Miklos (o pop de protesto e escárnio “País Elétrico“, 2017), gravadas em discos dos respectivos. A essa série pertence também a última canção inédita lançada em vida, a bossa triste “Nanda“, registrada em single do parceiro Celso Fonseca 36 dias antes da morte de Erasmo. Era uma homenagem ao 93º aniversário da atriz Fernanda Montenegro.

Gal Costa, “Arara” (Lulu Santos), 1987 – Ao mesmo tempo que leva adiante o encontro com Tom Jobim na trilha sonora do filme Gabriela (1983), cantando “Dindi”, “Wave” e “Corcovado” no disco ao vivo Rio Revisited (1987), do maestro soberano, Gal se embrenha pelo pop em Lua de Mel Como o Diabo Gosta, lançando três canções inéditas do pop-roqueiro Lulu Santos, a irreverente “Arara”, o pop sexy de guitarra havaiana “Lua de Mel” e a balada delicada “Creio”. Eclética, Gal grava pela primeira vez uma canção da compositora bossa-novista de jazz e MPB Joyce Moreno, “Todos os Instrumentos“. No front ultrapop, o toque de Midas de Sullivan & Massadas dá sinais de esgotamento, em “Sou Mais Eu”. Em 1994, Gal e Joyce cantarão em dueto a bela “Mistérios” (1978), composição femininíssima da segunda.

Erasmo Carlos, “Feijoada de País” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1988 – A parceria permanece intacta, mas, enquanto Roberto Carlos uma para si a ufanista “Verde e Amarelo” (1985), Erasmo reinveste na crítica sociopolítica e lança “Feijoada de País”, no álbum Apesar do Tempo Claro… (cuja faixa mais notável é “100% de Chance de Chover“, assinada por Cecelo). O mote principal é a espera pela volta das eleições diretas pós-ditadura: “Misturem as cores da nossa bandeira/ símbolo augusto dessa paz/ a burocracia e um montão de siglas/ com a eleição que jamais se faz/ (…) vamos torcer pra não virar desgosto/ o nosso otimismo tropical/ respeitem as cores da nossa bandeira”.

Gal Costa, “Brilho de Beleza” (Nego Tenga), 1990 – Já afastada da pasteurização eletrônica do tecnopop dos anos 1980, Plural recoloca Gal em patamar vanguardista, com repertório fundado no jazz de Cole Porter e Richard Rodgers & Lorenz Hart, afro-MPB de João Bosco (“Holofotes”) e samba-rock concreto de Jorge Ben Jor e Arnaldo Antunes (“Cabelo“). A maior novidade, no entanto, se dá na estilização mais intelectual que carnavalesca dos novos sons que vêm da Bahia, do afoxé do bloco Muzenza (na pungente releitura de “Brilho de Beleza”, de 1988, um lamento de saudades por Bob Marley), do samba-reggae do Olodum (na dupla “Salvador Não Inerte/Ladeira do Pelô“, de 1987, com vocais de apoio de Caetano) e do futuro timbaleiro Carlinhos Brown (“Zanzando“), difundido desde o ano anterior por Caetano. A associação com o Olodum se prolonga para o álbum Gal, de 1992, numa versão visceral da engajada “Revolta Olodum“(1989): “Eta, cabra da peste/ Pelourinho, Olodum, somos do Nordeste”. Gal traz ainda outro momento alto do encontro de Gal com a Bahia do afoxé, do samba-reggae e do axé: o candomblé “É d’Oxum”, de Gerônimo.

https://www.youtube.com/watch?v=8noPnNRz7vg

Leo Gandelman e Gal Costa, “Hip-Hop de Candeal” (Leo Gandelman-Carlinhos Brown), 1990 – Em parceria com o emergente Carlinhos Brown, o saxofonista carioca Leo Gandelman compõe “Hip-Hop de Carnaval”, recombinando jazz, hip-hop, tambores afrobaianos, eletrônica new age, orquestra afrobrasileira e a voz de Gal Costa.

Johnny Alf e Gal Costa, “Ilusão à Toa” (Johnny Alf), 1990 – Na abertura do LP Olhos Negros, do cérebro da bossa negra Johnny Alf, Gal reinterpreta “Ilusão à Toa” (1961), após uma introdução do anfitrião que leva as ondas para direção contrária àquela da macheza ostensiva de Luiz Gonzaga, amor discreto para uma só pessoa: “Eu acho engraçado quando um certo alguém se aproxima de mim/ trazendo exuberância que me extasia/ meus olhos sentem, minhas mãos transpiram/ é um amor que eu guardo há muito dentro em mim, bem dentro em mim”. Na mesma direção, mas mais direta é “É o Amor” (1991), de Dominguinhos e Guadalupe, gravada em álbum do sanfoneiro: “Aprenda a gostar do meu amor/ aprenda a amar o meu amor/ o amor não tem nome, o amor não tem sexo/ o amor não tem cor, o amor é o amor”.

Erasmo Carlos, “Fases da Lua” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1992 – Com arranjos mornos, o CD Homem de Rua traz momentos curiosos como canções inéditas de Jorge Ben Jor (“Namorada“), Gilberto Gil (“O Jornal“) e Sá & Guarabyra (o rock rural “A Terra É dos Homens”), uma versão para “Nikita” (1985), de Elton John (transformada em “Moscovita“), uma rendição erasmiana à parceria robertiana “Fera Ferida” (1982) e um dueto desencontrado com Renato Russo (numa nova versão da jovem-guardista “A Carta”, de 1966). Cabem a Erasmo três boas parcerias inéditas com Roberto, a faixa-título, a bela “Deixe-Me Outro Dia” (quase homônima, mas diferente de “Deixe-Me Outro Dia, Menos Hoje”, lançada em 1968 por Agnaldo Timóteo) e a balada de guerra dos sexos “Fases da Lua”: “Se o mundo ouviu os gritos e sussurros/ que vinham lá do quarto/ tanto amor, por que o mau humor/ se ela estava tão feliz?”.

Gal Costa, “Comunidá” (Gilberto Gil), 1992 – No segundo disco afrobaiano da cantora, Gal, Gilberto Gil apresenta a inédita (e até hoje só gravada nesta versão) “Comunidá”, uma misturança que começa com rito indígena, viaja pelo Caribe, encontra a tecnologia à la Parabolicamará (1992), de Gil, e à la “A Verdadeira Baiana” (em que Caetano soma os tambores de candomblé rum, pi e lé à drum machine dos ascendentes DJs, em Plural), e volta ao colo de África. “Comunidá” se integra perfeitamente ao candomblé “Saudação aos Povos Africanos“, de Mãe Menininha do Gantois, que percorre o CD do início ao fim, em forma de vinhetas construídas à base de tambores. Uma observação: com exceção de Profana e Plural, nenhum dos álbuns de Gal na RCA/BMG até 1992 está disponível nas plataformas digitais.

Gal Costa, “Alkahol” (Jorge Ben Jor), 1993 – O Sorriso do Gato de Alice usa a batida percussiva da afro-Bahia para lançar 11 canções inéditas da lavra da alta MPB, três de Caetano Veloso (“Bahia, Minha Preta”, “Errática” e “Gratitude”), três de Jorge Ben Jor (“Bumbo da Mangueira”, “Eu Vou Lhe Avisar” e “Alkahol”), três de Gilberto Gil (“Mãe da Manhã”, “Lavagem do Bonfim” e a áspera e densa “Você e Você“) e duas de Djavan (“Nuvem Negra” e “Serene”). De Ben Jor, Gal apanha o auge da fase ultrapop aberta por “W/Brasil (Chama o Síndico)” (1991), na igualmente surrealista “Alkahol”, que Gal interpreta como uma celebração de candomblé sobre tons de funk. A cantora compensa a ausência de Chico Buarque nesse disco com o seguinte Mina d’Água do Meu Canto, formado por 16 regravações, metade de Chico, metade de Caetano. A única faixa inédita é a bossa melancólica “Como um Samba de Adeus“, parceria entre Caetano e Chico.

Erasmo Carlos, “Moço” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1995 – Erasmo grava, na trilha sonora da novela A Idade da Loba, da TV Bandeirantes, uma gostosa versão latinizada de “Moço”, de 1972, sambalanço que integrou originalmente um trabalho único na música brasileira, a trilha sonora da novela global O Bofe, inteiramente assinada por Roberto & Erasmo. Betinho cantava a primeira versão, em meio a um elenco que inclui Elza Soares (“Rainha de Roda“), Osmar Milito e nomes hoje esquecidos do início da ascensão das trilhas da Globo. No mesmo 1972, a suingada cantora Doris Monteiro deu versão espetacular ao hoje obscuro sambalanço robertoerasmiano.

https://www.youtube.com/watch?v=YnXwrpZl9kM

Carlinhos Brown, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa, “Quixabeira” (domínio público-adaptação Carlinhos Brown-Bernard von der Weid-Afonso Machado), 1996 – O baiano ascendente promove o reencontro dos Doces Bárbaros 20 anos depois, em seu álbum solo de estreia, Alfagamabetizado. Num balé estelar de vozes alternadas e/ou em coro, os cinco cantam juntos a tradicional “Quixabeira”, sobre uma cama percussiva com potência para ribombar por todo o Candeal.

Erasmo Carlos e Adriana Calcanhotto, “Do Fundo do Meu Coração” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1996 – A exemplo do que fez quatro anos antes ao gravar “Fera Ferida” e 16 anos antes no álbum de 1980, Erasmo volta a cantar parcerias reveladas pela voz de Roberto, no delicado álbum de revisão É Preciso Saber Viver, começando por “Do Fundo do Meu Coração” (1986), em dueto com Adriana Calcanhotto. Assim, enfrenta “É Preciso Saber Viver”, lançada em 1968 pela dupla Os Vips e levada ao sucesso em 1974 por Roberto, e “Detalhes” (1971), além de reler “Como É Grande o Meu Amor por Você” (1967), só de Roberto (dois anos depois, Erasmo gravará a parceria “Não Se Esqueça de Mim”, lançada por Roberto em 1977, como convidado em álbum de Nana Caymmi). O baladão “Joia” fora lançado por Rosemary em 1982, e nunca tivera até aqui registro nas vozes dos parceiros. “Ela é uma mulher, precisa ser amada”, canta Erasmo, convertendo a letra para a terceira pessoa.

https://www.youtube.com/watch?v=VKlV-jWk58g

Gal Costa, “Jovens Tardes de Domingo” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 1997 – O trio Roberto-Gal-Erasmo volta a se cruzar na versão em bossa-valsa-MPB de “Jovens Tardes de Domingo”, gravada por Gal para a novela global Zazá. O pedacinho de nostalgia foi llançado originalmente por Roberto em 1977, como bilhete de saudade do programa Jovem Guarda, e se multiplica na voz de Gal, ainda mais agora: “Eu me lembro com saudade o tempo que passou/ o tempo passa tão depressa, mas em mim deixou/ jovens tardes de domingo, tantas alegrias/ (…) o que foi felicidade me mata agora de saudade/ velhos tempos, belos dias”. No mesmo ano, Gal faz a revisão do próprio passado sob a fórmula Acústico MTV, duetando com Luiz Melodia a canção de apresentação do autor, “Pérola Negra” (1971), revelada por ela em Fa-Tal. Na outra ponta da corda do tempo, Gal apresenta nesse mesmo trabalho o maranhense iniciante Zeca Baleiro, que havia feito a ponte de sua “Flor da Pele” com “Vapor Barato “(1971), do mesmo Fa-Tal, fusão à qual Gal se rende com amor, invertendo a ordem dos fatores com grande beleza.

https://www.youtube.com/watch?v=3m53QnznGLs

Gal Costa e Caetano Veloso, “O Que Será (À Flor da Terra)” (Chico Buarque), 1996 – Gravação ao vivo exibida no canal Multishow e posteriormente inserida na trilha sonora da série global Dona Flor e Seus Dois Maridos, “O Que Será (À Flor da Terra)”, de Chico Buarque (lançada originalmente por Simone, em 1975), ganha versão samba-reggae, bem marcada nos tambores da Didá Banda Feminina e nas vozes de Gal e Caetano. O espírito é o da trilha sonora do filme Tieta do Agreste (1996), do megassucesso “A Luz de Tieta“, também estrelada por Caetano, Gal e a banda Didá.

Gal Costa e Milton Nascimento, “A Voz do Tambor” (Celso Fonseca-Ronaldo Bastos), 1998 – Os tambores afrobaianos dão vez aos tambores afromineiros em “A Voz do Tambor”, composta pelos fulminenses Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, mas com tom africano e mineiro impresso pelo arranjo e pela presença vocal soberana de Milton Nascimento. O álbum Aquele Frevo Axé tem por carro-chefe uma versão de “Imunização Racional (Que Beleza)” (1974), do outrora enjeitado e agora cult Tim Maia Racional, funk de entrada de Gal ao universo dos sons eletrônicos dançante que dominam os anos 1990. “Aguarte Agora”, de Carlinhos Brown e Cézar Mendes, faz uma louvação em regra dos blocos afro e da axé music (Ilê Aiyê, Olodum, Timbalada, Araketu “e tudo que for patuscada”).

Erasmo Carlos e Marisa Monte, “Mais um na Multidão” (Erasmo Carlos-Marisa Monte-Carlinhos Brown), 2001 – Erasmo Carlos chega ao século 21 bem-acompanhado, por Marisa Monte, na inédita “Mais um na Multidão”, parceria de ambos com Carlinhos Brown. “Você pensa em mim, eu penso em você/ eu tento dormir, você tenta esquecer/ longe do seu ninho, meu andar caminho/ deixo onde passo os meus pés no chão/ sou mais um na multidão”, canta Marisa, no carro-chefe do CD Pra Falar de Amor. Outro intercâmbio geracional se dá na faixa-título, composta por Marcelo Camelo, então no auge do sucesso pop com a banda Los Hermanos. Bônus mimoso é a versão do versionaista para “It Should Have Been Easy” (Bob McDill, 1976), que ele e Roberto transformaram no country-pop “Qualquer Jeito” sucesso em 1987 na voz da cantora Kátia, com os versos grudentos “não está sendo fácil/ não está sendo fácil/ viver assim/ você tá grudada em mim”. Pra Falar de Amor faz duas referências elegantes e discretas ao suicídio de sua ex-esposa Narinha, em 1995, nas faixas agridoces “Ela Conversava com o Olhar” e “A Família“, ambas compostas sem Roberto.

Clube do Balanço e Erasmo Carlos,Mané João” (Erasmo Carlos-Roberto Carlos), 2001 – Numa onda de redescoberta da originalidade samba-rock na virada do século, o Clube do Balanço, do paulistano Marco Mattoli, revigora suingues de Ed Lincoln, Jorge Ben, Bebeto, Marku Ribas, Luis Vagner, Bedeu e Helio Matheus, além de dois exemplares samba-soul-rock-etc. de Erasmo & Roberto: “Coqueiro Verde” (1970) e “Mané João” (1972), essa última com participação vocal de Erasmo. Mattoli morreu em agosto de 2022, de parada cardíaca, aos 57 anos.

https://www.youtube.com/watch?v=nmagYucGjzQ

Max de Castro e Erasmo Carlos, “A História da Morena Nua Que Abalou as Estruturas do Esplendor do Carnaval” (Max de Castro-Erasmo Carlos), 2002 – Numa emocionante parceria transgeracional, Erasmo divide composição e vocais do samba-soul-jazz-drum’n’bass “A História da Morena Nua Que Abalou as Estruturas do Esplendor do Carnaval” com Max de Castro, filho de Wilson Simonal, no segundo álbum solo do multimúsico, Orchestra Klaxon. Outro gostoso sambalanço com a mesma temática Erasmo entregou para o Clube do Balanço: “Sem Anjo na Multidão” (2004), com uma crítica ácida, já então, à superoferta de silicone, botox e lipoaspiração. No polo oposto do binômio entre experimentalismo e pop desbragado, Erasmo se soma, no mesmo ano, ao grupo de pagode soul Raça Negra, no CD Samba Jovem Guarda. Ele sambeia com voz malemolente o antigo sucesso iê-iê-iê “O Bom” (de Carlos Imperial), gravado por Eduardo Araujo em 1967.

https://www.youtube.com/watch?v=TQVV_BJLYBs

Gal Costa, “Socorro” (Arnaldo Antunes-Alice Ruiz), 2002 – Num período particularmente agarrado à fossa, Gal enfileirou tributo ao vivo a Tom Jobim (Gal Costa Canta Tom Jobim, 1999, três anos após a morte do maestro), releituras pálidas da própria obra (Gal de Tantos Amores, 2001) e de sambas-canções pré-bossa nova (Todas as Coisas e Eu, 2003). Nesse meio, Bossa Tropical funcionou como oásis (mais ou menos) antitristeza, com releituras de transgressão de Rita Lee (“Ovelha Negra“, 1975), protofeminismo de Erasmo [“Mulher (Sexo Frágil)“, 1981], samba duro baiano de Riachão [“Cada Macaco no Seu Galho (Cho Chuá)“, 1972], Beatles em bossa nova (“The Fool on the Hill“, 1967), iê-iê-iê pré-histórico (“Marcianita“, sucesso com Sergio Murilo em 1960, uma predileta dos tropicalistas) e bossa-fossa de Caetano (“Desde Que o Samba É Samba”, 1993), mas também novas do mineiro Vander Lee e do paraibano Chico César. O espírito dessa fase parece se traduzir logo de início, em “Socorro”, reggae de Arnaldo Antunes e Alice Ruiz lançado em 1994 por Cássia Eller: “Socorro, não estou sentindo nada/ nem medo, nem calor, nem fogo/ não vai dar mais pra chorar nem pra rir”.

https://www.youtube.com/watch?v=lcgjaniaUrw

Erasmo Carlos, “Tim” (Erasmo Carlos), 2004 – Santa Música é o único álbum de Erasmo constituído 100% de canções compostas solitariamente, e o momento mágico é o disco-funk “Tim”, de saudades rasgadas de Tim Maia, morto em 1998, aos 55 anos. “Tim, por que você foi embora/ um pouco fora de hora/ nem ao menos se despediu?/ (…) Tim, a turma aqui vai levando/ o povo sempre cantando/ seu azul da cor do mar/ Tim, parece até brincadeira/ imagina a bebedeira/ que nós dois vamos tomar/ quem sabe sai até um novo hit quando a gente se encontrar”. Foram 24 anos até Erasmo ir de encontro a Tim, e agora talvez estejam compondo o tal novo hit.

Gal Costa, “Mar e Sol” (Lokua Kanza-Carlos Rennó), 2005 – O inesperado é o ponto de partida da primeira tentativa de modernizar a música de Gal Costa nos anos 2000: a gravadora Trama, dirigida por João Marcello Bôscoli, filho de Elis Regina, incumbe o paulistano Cesar Camargo Mariano, ex-marido e diretor musical de Elis (e de Simonal), de conduzir Hoje, um CD que de certa maneira promove o encontro entre os pensamentos musicais quase sempre divergentes de Elis e Gal. Do imaginário de Elis, emerge a tentativa de revelar novos compositores para o primeiro time da agora veterana MPB, e o disco é montado sobre canções inéditas de compositores contemporâneos, entre eles Moreno Veloso (autor da tristíssima faixa-título e do samba baiano “Um Passo à Frente”), o pós-manguebit Junio Barreto, Péri, Tito Bahiense (ex-integrante da banda de Ivete Sangalo), Moisés Santana, os também artistas plásticos paulistanos Lenora de Barros, Nuno Ramos e Clima e o cantor e compositor congolês Lokua Kanza, que entrega a Gal a cálida “Mar e Sol”, a retraída “Te Adorar” e a dramática “Sexo e Luz” (todas com letras de Carlos Rennó) e participa dos vocais da terceira. Da geração de Gal e Elis, comparecem Caetano, com “Luto” (sobre um carnaval vivido em depressão), e Chico Buarque, com “Embebedado” (parceria com Zé Miguel Wisnik). Modernidades à parte, Hoje não chega a fugir da densa melancolia da fase madura da cantora.

Erasmo Carlos e Lulu Santos, “Coqueiro Verde” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 2007 – 27 anos após Erasmo Carlos Convida…, surge o Erasmo Carlos Convida Volume II, com mais 12 parcerias Roberto-Erasmo e elenco menos coeso que aquele imbatível de 1980. Aproveitando a boa fase de revival do samba-rock, o CD começa em sambalanço eletrônico ao lado de Lulu Santos, com “Coqueiro Verde” (1970), em versão celebratória que evoca a do Trio Mocotó para O Pasquim, em 1970. A eletrobossa suingada com scratches faz curto-circuito na nova versão do samba-rock de versos malandros impagáveis “Pão de Açúcar (Sugar Loaf)” (“pagamento à vista/ vendeu pro turista/ o morro da foto/ do cartão postal/ dando de graça/ a conexão/ da praia Vermelha/ com o Cara de Cão/ chegou a polícia/ e o Pão de açúcar/ virou notícia”), de 1982, com os veteranos Os Cariocas, os mesmos com quem Erasmo aprendeu a usar o termo “samba-rock”, ainda no longínquo 1960. O Volume II preenche lacunas que restaram do primeiro álbum, trazendo Chico Buarque (“Olha”, 1975), Milton Nascimento (“Emoções”, 1981), Simone (“Vou Ficar Nu pra Chamar Sua Atenção”, 1969) e Djavan (“De Tanto Amor”, 1971), e o samba ganha representação em “Cama e Mesa” (1981), com Zeca Pagodinho. Marisa Monte volta para “Não Quero Ver Você Triste” (1965, com a melodia acrescentada por Mário Telles em 1971 para a versão de Claudette Soares), e Adriana Calcanhotto, para a sensacional “Ilegal, Imoral ou Engorda” (1976). As gerações mais novas completam a escalação, com Kid Abelha, Skank e Los Hermanos.

Silvia Machete, “Gente Aberta” (Erasmo Carlos-Roberto Carlos), 2007, e “Feminino Frágil” (Erasmo Carlos-Silvia Machete), 2010 – Depois de gravar uma dulcíssima versão de “Gente Aberta” (1971), a carioca performática Silvia Machete ganha de Erasmo a balada inédita “Feminino Frágil”. O dono da gravadora que investe na nova MPB e lança os discos da cantora e compositora, Coqueiro Verde, se chama Erasmo Carlos.

Erasmo Carlos, “Mar Vermelho” (Erasmo Carlos-Nando Reis), 2009 – De volta ao básico, Erasmo devota o álbum Rock ‘n’ Roll ao dito cujo, privilegiando a crueza em rocks como “Jogo Sujo”, o auto-irônico “Cover” (“cover, eu sou um cover/ gosto de ser assim/ cover, eu sou meu cover/ cover, cover de mim/ … cover de Roberto ou de Elvis/ Michel Jackson, Beatles e Raul”), o rock-balada “Chuva Ácida”, “A Guitarra É uma Mulher” e “Encontro às Escuras”. Duas faixas estreiam parceria com Nando Reis: “Um Beijo É um Tiro” e “Mar Vermelho”, ambas com o lirismo característico do cancioneiro solo de Nando. “O beijo é como um tiro/ miro e desfiro/ a pele ele não fere/ é um corte invisível/ até te acertar/ atiro o beijo à queima roupa”, canta Erasmo. Sob ecos do rock estradeiro de Roy Orbison e do pós-grunge veterano de Neil Young, “Mar Vermelho” pinta um cenário de chuva ácida crepuscular por sobre o clássico “Além do Horizonte”, antecipação talvez de uma distopia pós-apocalíptica: “O mar pegando fogo lá na praia/ o ar queimando todo seu azul/ embarco nesse voo sem ter asas/ louco é quem não está nu/ (…) hoje o mar queimou o azul/ um incêndio dentro d’água/ mar vermelho, sol de anil/ tá pegando fogo, só não viu quem não sonhou”.

Simone, “Migalhas” (Erasmo Carlos), 2009 – Composição solitária de Erasmo gravada apenas por Simone, “Migalhas” formula uma nova e amarga queixa à maneira de “Sentado à Beira do Caminho” (1969): “Sinto muito, mas não vou medir palavras/ não se assuste com as verdades que eu disser/ quem não percebeu a dor do meu silêncio/ não conhece o coração de uma mulher/ (…) eu não quero mais ser da sua vida/ nem um pouco do muito de um prazer ao seu dispor/ quero ser feliz/ não quero migalhas do seu amor”. Éexplícita a citação ao primeiro verso de “Detalhes” (1971): “Não adianta nem tentar/ maquiar antigas falhas/ se todo o amor que você tem pra me oferecer são migalhas”.

Gal Costa, “Tudo Dói” (Caetano Veloso), 2011 – Na segunda e mais bem-sucedida tentativa de modernizar Gal Costa para os anos 2000, Caetano Veloso responsabiliza-se pelas 11 novas canções e pela direção de produção (ao lado do filho Moreno) do áspero álbum Recanto, seguidor da fórmula concebida por Caetano a partir de (2006), que formaria uma trilogia com Zii e Zie (2009) e Abraçaço (2012), de apelo roqueiro experimental ancorado numa banda jovem. Quarta perna da trilogia, Recanto reveste a voz de Gal de sinais eletrônicos e canto rappeado. À maneira das letras cruas da trilogia , Caetano leva Gal às profundidades em “Tudo Dói”, de múltiplos sentidos superpostos: “Tudo dói/ viver é um desastre que sucede a alguns/ nada temos sobre os não nenhuns/ que nunca viriam/ as cascas das árvores crescem no escuro/ as cascatas a 24 fotogramas por segundo/ os vocábulos iridescem/ os hipotálamos minguam/ tudo é singular/ dói/ tudo dói”. O momento mais eloquente é “Miami Maculelê“, que faz o encontro improvável, mas muito rico, entre a baianidade acústica da voz de Gal e a africanidade eletrônica do funk carioca.

Pedro Luís e Erasmo Carlos, “Tempo de Menino (Alô Tijuca)” (Pedro Luís), 2011 – O carioca Pedro Luís traz Erasmo de volta à “turma da Tijuca”, gravando com ele sua “Tempo de Menino (Alô Tijuca)”, de reverência explícita à linhagem: “Alô, Tijuca, você tá no cancioneiro/ desde os sambas de terreiro até o pop nacional/ Tim Maia, Jorge Ben, Erasmo Carlos/ o Aldir e o Roberto fazem seu manancial”. Nesse mesmo ano, Erasmo atua como compositor, ao lado de Eduardo Lages e Paulo Sérgio Valle, do samba-enredo “O Rei na Beija-Flor“, que concorreu (mas não venceu) a disputa para ser o tema do desfile da escola de samba Beija-Flor em homenagem a Roberto Carlos. A gravação é do Exaltasamba.

Erasmo Carlos, “Kamasutra” (Erasmo Carlos-Arnaldo Antunes), 2011 – Também influenciado pela fase de Caetano, Erasmo dedica a íntegra do álbum Sexo ao dito cujo (mas também ao amor e à paixão), inclusive com relevo às canções de escárnio e maldizer que o compositor baiano vem criando, tipo “Não Enche” (1997), “Odeio” (2007) e “Perdeu” (2009). O exemplo de Erasmo é “Roupa Suja“, estreia de parceria com Arnaldo Antunes, a lamentar a condição de homem-objeto: “E de mim/ quis o quê/ tava a fim/ sem querer/ quis me dar/ me comer/ ou brincar/ de esconder/ (…) foi para a cama com todos os meus inimigos/ se apaixonava e depois não sabia por quem/ e daí/ quer o quê/ ser feliz/ ter prazer/ quer gozar/ quer sofrer/ me amar/ me foder/ (…) quer saber/ você não sai de cima/ vai ver se eu tô na China/ não volta nunca mais”. De auto-escárnio é a perspicaz letra de “Sentimento Exposto“, de Erasmo sozinho: “Quando eu virei do avesso o meu dentro/ na hora pra fora mostrou pra você todo meu talento/ você me viu como um monstro gosmento/ de vísceras, rugas, sem pelos ao vento, um zumbi nojento/ (…) você se encantou com tanta feiura/ gostou do sentimento exposto da criatura”. A peça mais divertida, outra com Arnaldo, é “Kamasutra”, que lista um catálogo vasto de posições sexuais: frontal, de pé, por trás, de lado, “a hidra às voltas com o dragão”, tesoura, fechadura, de quatro, coqueirinho, ajoelhado, trapézio, carrinho de mão, gangorra, de cabeça pra baixo, o “improvável caranguejo”, 69, “o enroscado da trepadeira”, picada de escorpião, guindaste, tartaruga, vaqueira, “Fênix na caverna vermelha”, 90 graus de conexão, carrossel, chão de estrelas, “a borboleta em concha” (“fez você gozar primeiro”), o parafuso, a ponte, “o arco da rã, do caranguejo ou do cão”, lótus, vaivém, tiro ao alvo e… “o tradicional papai-e-mamãe”.

https://www.youtube.com/watch?v=fBK_5IaYKaU

Luiza Possi, “Dois em Um” (Erasmo Carlos), 2013 – A interpretação de Luiza Possi valoriza a potência do reggae “Dois em Um”, lançado nove anos em Santa Música. Tal como na versão original, Erasmo aparece fazendo um rap manso, mais para Rappin’ Hood que para Mano Brown. A exemplo da leitura da velha “Mesmo Que Seja Eu” por Marina Lima, os versos de maldizer de “Dois em Um” ganham novos contornos na voz quente de Luiza: “Às vezes acho que no mundo só existe uma mulher/ que por conveniência usa o rosto que quiser”.

Erasmo Carlos, “Gigante Gentil” (Erasmo Carlos), 2014 – No mesmo espírito garageiro de Rock ‘n’ Roll, Gigante Gentil retoma outro dos vários apelidos dados ao “tremendão” para fazer um tocante e poético autorretrato: “Dizem por aí que eu tenho cara de bandido/ e que mastigo abelha só pra degustar o mel/ que eu faço o tipo cafajeste de um gigante bruto/ que eu sou o espinho do caroço que sobrou do fruto/ só que eu não posso com a peneira o sol tapar/ e pelas curvas da ironia derrapar/ oferecer a outra face, nem pensar/ já que um leão por dia eu tenho que matar/ mesmo hostil, qualquer gigante pode ser gentil”. Erasmo aplica sua visão sobre o futuro cibernético em “Colapso” (“ondas solares/ bug no céu/ a nuvem foi virando véu/ a voz na Terra emudeceu/ a comunicação morreu”) e estreia uma tardia parceria com Caetano Veloso, “Sentimentos Complicados“, além de gravar duas novas com Arnaldo Antunes, o blues-rock de gaita “Teoria do Óbvio” e a bela fossa resignada “Manhãs de Love” (“sofro/ mas nunca me lastimo/ encaro o meu destino/ não sou de reclamar/ choro/ me escondo no escuro/ com fé no meu futuro/ espero a dor passar”). O espírito pré ou pós-apocalíptico além ou aquém do horizonte prevalece na bossa havaiana com Caetano: “Quando o mar fugir do céu/ e o luar fugir do monte/ a dor que o mundo sempre sentiu/ será uma visão infantil/ toda a solidão que forma a Terra/ se concentra lá no sol / em mim/ sentimentos complicados/ fazem cantar assim/ se você me olhasse e visse/ mudava o sol/ mudava o mar”.

Roberto Carlos, “Vou Chegar em Casa Mais Cedo” (Roberto Carlos-Erasmo Carlos), 2017 – Roberto Carlos grava uma parceria inédita com Erasmo pela primeira vez em 12 anos, desde a já errante “Arrasta uma Cadeira” (2005) – de 1998 em diante, haviam sido apenas seis, duas delas canções católicas robertianas e nenhuma de grande prestígio midiático. Com a morte de Erasmo, “Vou Chegar em Casa Mais Cedo” tornou-se a última canção inédita gravada da parceria dourada Roberto & Erasmo. “Vou chegar mais cedo em casa/ me receba com carinho/ me esfregue as costas no banho/ me dê um copo de vinho/ ponha o que tiver na mesa/ e se sente do meu lado/ me faça todas as vontades/ eu preciso de um agrado”, canta Roberto, amante (machista) à moda antiga. Nos álbuns de Erasmo, desde 1992 não houve mais nenhuma composição inédita da dupla, sinal de que ele precisou voar sozinho (ou com muitos novos parceiros) nas três últimas décadas de carreira. Na prática, enquanto a criação de Roberto descia a quase nada, a de Erasmo vicejou nos 22 anos em que viveu na década de 2000.

https://www.youtube.com/watch?v=-zTUFbC9m20

Erasmo Carlos e Emicida, “Termos e Condições” (Erasmo Carlos-Emicida), 2018 – Depois do delicado CD ao vivo Meus Lados B (com muitas pérolas da fase samba-soul dos anos 1970), o antirroqueiro ...Amor É Isso (com faixa-título de Nando Reis) chega para fixar o carimbo de último álbum de canções inéditas de Erasmo Carlos, inaugurando parcerias derradeiras com Samuel Rosa (“Novo Sentido”) e Emicida, que também participa rappeando a balada “Termos e Condições”. “Putz, o tempo passou”, constata o samba-soul sobre temas cibernéticos. “O digital desossa o indivisível”, complementa o rapper paulistano, levando Erasmo ao mundo distante do protesto anticapitalista: “O conforto é uma arapuca de Wall Street onde alguns estão presos em postes, outros em posts”. Novamente com saudades de Tim Maia, Erasmo verte o antigo soul “New Love” (1973) para o português, como “Novo Love”.

https://www.youtube.com/watch?v=-LMxvZKM3Kc

Gal Costa e Maríliía Mendonça, “Cuidando de Longe” (Marília Mendonça-Juliano Tchula-Júnior Gomes-Vinícius Poeta), 2018 – Em seus últimos anos, Gal insistiu numa fórmula combinada de iluminar autores de gerações mais novas, como em Hoje, e de investir em arranjos modernizados à maneira do Caetano de , como em Recanto. Em voz ensombrecida e agora bem grave, cantou um elenco vasto e nem sempre contínuo, em Estratosférica (2015) e A Pele do Futuro (2018), com Arthur Nogueira, Céu, Thalma de Freitas, Criolo, Thiago Camelo, Mallu Magalhães, Jonas Sá, Rogê, Domenico Lancellotti, Zeca Veloso, Dani Black, Tim Bernardes, Emicida. O álbum de 2018 termina com “Abre-Alas do Verão”, composta por Emicida e Erasmo Carlos: “Moça, seja forte/ tretas sempre tem/ ok, a morte é certa/ mas a vida também”. Os arranjos oscilaram do oito ao 80, do rock experimental à discothèque antiquada, entre várias escalas. No álbum derradeiro, Nenhuma Dor (2021), Gal revisitou melancolicamente canções que havia gravado nos anos 1960 e 1970, em duetos com artistas de gerações mais recentes, todos eles do sexo masculino: Rodrigo Amarante, Silva, Criolo, Zé Ibarra, Seu Jorge, Tim Bernardes, Rubel, Zeca Veloso, o português António Zambujo, o uruguaio Jorge Drexler. No momento mais espontâneo da última Gal, ela recebeu a jovem Marília Mendonça em “Cuidando de Longe” (2018), de autoria da cantora e compositora goiana, então com 23 anos, numa troca intergeracional de afirmação feminina. Infelizmente, Marília morreria em 2021, aos 26 anos, num acidente aéreo.

https://www.youtube.com/watch?v=IEYb2turgRo

Gal Costa, “Viagem Passageira” (Gilberto Gil), 2018 – Ainda sobre A Pele do Futuro, o título do álbum nasce dos versos de uma linda canção inédita de Gilberto Gil, “Viagem Passageira“, daquelas antecipadoras do inevitável por vir: “O sonho dessa canção passageira/ mochila da viagem passageira/ passagem nessa vida passageira/ para uma vida ainda passageira/ o sonho é ter tudo dissolvido/ o corpo, a mente, a fonte da lembrança/ enfim, ponto final na esperança/ somente as ondas soltas no oceano/ não mais o esperma e o óvulo da morte/ não mais a incerteza do binário/ um tempo liso, sem o fuso horário/ não mais um sim, um não, um sul, um norte”. Também de 2018 é Trinca de Ases, resultado de turnê conjunta no ano anterior de Gal, Gil e o discípulo Nando Reis, mais ou menos nos moldes dos Tribalistas Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte. Gal tem a chance de cantar ao lado dos companheiros de palco músicas que nunca gravou, como “Copo Vazio” (1974), ‘”Meu Amigo, Meu Herói” e “Palco” (1980), de Gil, “O Segundo Sol” (1999) e “Relicário” (2000), de Nando.

https://www.youtube.com/watch?v=bqbzmLd-D0g

Erasmo Carlos, “Maria e o Samba” (Erasmo Carlos)/ , 2019 – No álbum curto Quem Foi Que Disse Que Eu Não Faço Samba…, Erasmo ajusta contas com o jovem samba, gravando em voz própria (e bem fragilizada) os sambas mornos que compôs com Roberto para o Trio Mocotó (“Samba da Preguiça“, 1973), para Max de Castro e para Marco Mattoli e seu Clube do Balanço, além de rebuscar os primórdios do sambalanço erasmiano num pot-pourri de “O Menino e a Rosa” (lançado pelo tecladista jovem-guardista Lafayette, na voz de Dina Lucia), “Toque Balanço, Moço” (idem, mas também em versão dos Golden Boys) e “Samba na Palma da Mão” (por Luiz Carlos Ismail), todos de 1965, compostos pelos jovens Roberto e Erasmo, exatamente quando o roqueiro iê-iê-iê nascia para o sucesso, conduzido pelo toque de Midas do parceiro. A maior e mais antiga novidade, no entanto, é “Maria e o Samba”, samba composto por Erasmo aos 17 anos, em 1959, e jamais gravado até aqui. “A coisa melhor nesse mundo é ouvir/ o samba com inspiração/ ao compasso do meu coração”, tateava o adolescente que viraria garotão roqueiro que viraria homem multitalentoso com pendor para o samba torto.

Erasmo Carlos, “A Volta” (Erasmo Carlos-Roberto Carlos), 2022 – O final da história de Erasmo Carlos é o seu começo. O Futuro Pertence à Jovem Guarda, lançado dez meses antes de sua morte, revolve sucessos do iê-iê-iê que não foram lançados em sua voz, a partir da balada “O Ritmo da Chuva“, versão gravada pelo pré-jovem-guardista Demetrius em 1964. O curto repertório inclui “Nasci para Chorar” (1964) e “Esqueça (1966), ambas versões lançadas por Roberto Carlos; “Alguém na Multidão” (1966), hit dos Golden Boys, em versão tristíssima; a infantojuvenil “Tijolinho” (1966), sucesso com Bobby de Carlo; “Devolva-Me” (1966), carro-chefe de Leno e Lilian; e “O Bom” (1966), do repertório rebelde de Eduardo Araujo. O único exemplar autoral é “A Volta” (1966), de Erasmo e Roberto, mas lançada originalmente pela dupla Os Vips. Agora, não havia mais volta.

https://www.youtube.com/watch?v=IwRZP9V-gYE

Baco Exu do Blues, “Lágrimas” (Diogo Moncorvo), 2022 – Não surgiram gravações novas de Gal Costa após o lançamento do nostálgico Nenhuma Dor (2021), que portanto encerra a discografia de Gal com a faixa-título, obscuridade presente no primeiro álbum da artista, Domingo (1967), dividido com Caetano (e cantada agora com seu filho, Zeca Veloso). Em 2022, a voz da artista se ouviu apenas numa gravação do rapper baiano Diogo Moncorvo, conhecido publicamente como Baco Exu do Blues. Em “Lágrimas”, ressurge a Gal de 1974, de 29 anos, contando num sample que “lágrimas negras caem, saem, doem”, da obra-prima “Lágrimas Negras“, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. “Belezas são coisas acesas por dentro”, canta Baco pela voz de Gal, omitindo o complemento que ensinava que “tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”.

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