A revolução descerá a ladeira num mosh espetacular

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Como se fosse o resultado de uma transfusão direta de sangue de Gil Scott-Heron para o Sepultura, a banda mineira Black Pantera lançou nesta semana um álbum, Ascensão (Deck Discos), que traz simplesmente o melhor e mais visceral rock das últimas décadas. Contra a tendência de envilecimento do antigo rock (hoje predominantemente conformista e reaça), o thrash metal wakandense do Black Pantera tem o efeito de uma bomba termobárica, um abalo sísmico que parece reavivar o mais agudo som de protesto da linha evolutiva do rock nacional – parece que o grupo pegou o fio desencapado exatamente ali onde os Titãs largaram Cabeça Dinossauro, em 1986.

É o melhor barulho que o rock produziu no pós-golpe de 2016, com uma vantagem: o nível de informação histórica e social da banda cria uma atmosfera que parece induzir o ouvinte a mergulhar num manifesto estético do tipo do filme Queimada, de Gillo Pontecorvo, só que com revolucionários negros do pós-colonialismo. Essa banda tem consciência de tudo que aconteceu e tudo que acontece no país e nos movimentos afirmativos desde a Marcha de Washington de 1963 – sua música é absurdamente informada, ao mesmo tempo que atemporal.

Charles Gama (guitarra e vocal), Chaene da Gama (baixo e vocal) e Rodrigo Augusto “Pancho” (bateria), o trio Black Pantera, não puseram esse nome no seu grupo por acaso. A primeira faixa, “Mosha”, já é um convite vertiginoso à rebelião: influenciados por grupos de hardcore norte-americanos como Bad Brains e mesmo Rage Against the Machine, a banda brasileira cria um clima de arrastão permanente da primeira à 12ª faixa do álbum, sem pausas para respiração.

Nas letras, como naquele manifesto oitentista dos Titãs, eles também elegem um cardápio de temas para abordar. Por exemplo: Política (“O país tá afundando, tio”), fascismo (“porcos nazistas na contramão”), religião (“elegem homens que, em nome de Deus, querem matar”), ambientalismo (“inala a fumaça, sem choro e sem drama”), capitalismo selvagem (“sem entrada, sem saída, quanto vale a sua vida?”), racismo (“saíram do armário, assumiram o preconceito”), Polícia (“não vem nos enquadrar”), socialismo (“a desgraça do sistema só ajuda a quem lhes convém”).

Adeptos da revolução permanente, ativistas do black power, os três rapazes do Black Pantera estão no palco para mudar a vida de quem está na plateia, e isso é uma dádiva. Estão escalados para o Palco Sunset do Rock in Rio (nos próximos dias 2 a 11 de setembro) em um encontro notável com a veterana banda punk pernambucana Devotos, há 35 anos na estrada. Atuando num território sonoro que, historicamente, mantém o canal de comunicação sonora mais direto com o proletariado, o metal, eles mandam recados inequívocos e de forma gutural:

“Jesus não era branco. A vida começou no continente africano”

“Famílias marcham pela cidade clamando por ditadura”

“Vão querer te dizer qual é o seu lugar”

“Os demônios em você não aguentam ver outro preto que desponta”

O enfrentamento dos clichês é uma das premissas. “Uma vez ouvi uma música antiga dizendo que ‘a coisa tá feia/ a coisa tá preta’. Quem disse isso? Quem determina o que é feio ou bonito? Aí escrevi esse verso ‘a coisa tá linda/ a coisa tá preta’. Não importa a sua cor, se você é gordo ou magro, se usa barba ou com quem você se relaciona. Na verdade, não existe padrão”, disse o baixista Chaene sobre a faixa “Padrão É o Caralho”. “A ideia é questionar todo tipo de padrão, muito além da estética. Nós mesmos somos uma banda fora do padrão, pois não nos enquadramos em um único estilo musical e essa letra, mesmo num rock pesado, é fora do padrão”, explicou.

Sua práxis, a união entre teoria e prática, é rigorosa. Por exemplo: a capa do seu disco traz uma foto de Victor Balde feita em 2019 na província de Meconta, localizada no norte de Moçambique. A foto é a imagem principal da coleção Lute Como uma Moçambicana, e é um remake de uma fotografia pregressa de Giovanni Marrozzini (que também inspirou a capa do best-seller Torto Arado, de Itamar Vieira Junior). Retrata as garotas moçambicanas Ana Francisca e Carolina Antônio, a quem foi adequadamente destinado o valor integral da negociação para o uso da fotografia.

Lançado em fevereiro, o single “Fogo nos Racistas” já  mostrava que o Black Pantera vinha para o combate. Agora, com o disco todo, já é possível ver o arrastão descendo a ladeira para acordar o rebanho cego.

Ascensão. CD do trio Black Pantera. Gravado e mixado no Estúdio Tambor (RJ). Produção de Rafael Ramos. Deck Discos.
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