A determinação de construir uma biografia de Roberto Carlos transformou-se numa epopeia na vida do historiador baiano Paulo Cesar de Araújo, que no novo Roberto Carlos Outra Vez Volume 1 – 1941-1970 reúne depoimentos que tomou entre 1990 e 2021 de um elenco vistoso de personagens. Muita coisa aconteceu nesses 31 anos, tanto na saga de Roberto Carlos como um dos mais bem-sucedidos compositores brasileiros do século passado quanto na trilha do biógrafo, que teve de amargar, 15 anos atrás, o recolhimento de seu primeiro trabalho sobre o cantor, Roberto Carlos em Detalhes (Planeta, 2006), em razão de um processo movido pelo biografado.
Antes do preparo de Roberto Carlos em Detalhes, Araújo havia estreado em livro com um trabalho de peso, o livro Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar (Record, 2002). Pode-se dizer que essa primeira obra mudou o curso de como a dita música popular brasileira era compreendida por seus fazedores e, sobretudo, por seus pensadores, até então alocados no conforto de avaliar a produção brasileira sempre sob recortes classistas, elitistas e desfavoráveis (quando não jocosos) à música realmente popular. Eu Não Sou Cachorro, Não mostrou sem meios tons o edifício de preconceito que se ergueu em torno da MPB, principalmente a partir do jornalismo musical/cultural, numa espécie de apartheid que separou os artistas genuinamente populares (ali classificados como “cafonas”) daqueles de extração mais, digamos, sofisticada. Essa foi, historicamente, a apreciação dos pares dessa segunda tropa, que governaram a opinião pública em tempos pré-internet, sempre mais sensíveis ao pelotão puxado por Chico Buarque e Elis Regina e refestelados debaixo das asas do poder midiático.
Era como se Araújo estivesse se preparando para mergulhar na obra de Roberto Carlos, que, como ele defende em Outra Vez, carrega o feito ímpar de ter construído uma sólida trajetória apoiada em três pontas de um tripé aparentemente instável: para o autor, tudo que Roberto construiu desde o início como aprendiz suburbano de João Gilberto foi ancorado por seu amor simultâneo pela bossa nova, pelo rock’n’roll e pela música romântica/”cafona”/”brega”. Uns mais assumidos, outros mais enrustidos, os cordeiros pertencentes a cada um desses rebanhos tiveram motivos diversos para se deixar seduzir pela obra simples-sofisticada, rebelde-conformista, libertária-conservadora do artista capixaba e de seu parceiro carioca Erasmo Carlos. Desenvolvido uma década após o início de caminhada de Roberto, o ideário tropicalista de 1967-1968 burilou as contradições do líder da jovem guarda e as transformou em manifesto, ideologia e contracultura – nasciam assim os artistas que até hoje não se alistaram a nenhum dos exércitos (embora pendam esteticamente para o lado mais elitizado): Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé, Gal Costa, Rita Lee, a matricial Nara Leão enquanto esteve por aqui.
Pois Paulo Cesar de Araújo mergulhou nesse imaginário e foi atropelado por Roberto Carlos, de longo histórico de atitudes censoras e autoritárias cultivadas nos anos gordos da ditadura civil-militar de 1964. Puxado pelo arroubo do cantor, o poder desmedido de personalidades públicas em controlar o que se escreve sobre elas foi questionado e subiu ao Supremo Tribunal Federal, que julgou o mérito enquanto Araújo escrevia O Réu e o Rei – Minha História com Roberto Carlos, em Detalhes (Companhia das Letras, 2014), narrando um confronto tipo Davi e Golias entre réu e “rei”. Mesmo de pernas quebradas, o historiador não se intimidou diante do poder de Roberto e encontrou apoio editorial para não deixar de barato a violência simbólica que sofreu. Não muito tempo depois da publicação de O Réu e o Rei, o STF determinou a suspensão da censura todo-poderosa a biografias de figuras públicas, e, após um período de forte retração e medo das editoras, o formato pôde voltar a circular no Brasil sem maiores percalços. À época do julgamento no STF, ironicamente, a elite libertária da MPB embarcou pela primeira vez nos desejos censores de Roberto Carlos e aderiu a seu lobby antibiografias, por intermédio do movimento Procure Saber, que abrigou de Chico a Caetano, de Gil a Milton Nascimento, de Erasmo a Djavan – uma contradição histórica que eles, assim como o sempre conservador Roberto, terão de levar à posteridade.
Resolvida a questão no STF, Araújo tinha um trunfo em mãos: na realidade, Roberto Carlos em Detalhes era um livro um tanto confuso, que ia e voltava nos tempos históricos ao sabor de temas eleitos pelo autor (rádio, vivência suburbana – a maior diferença entre RC e a bossa nova -, televisão, MPB, palco, transgressão, sexo, política, amor, sucesso etc.), reproduzindo o método que havia funcionado com fluência em Eu Não Sou Cachorro, Não. Fazia sentido classificar os diversos tipos de censura (em especial a militar) aos artistas “cafonas” dos anos 1970 pelos vários grupos de marginalizados a que eles (e suas canções) pertenciam – mendigos (como se dizia então), “loucos”, pequenos trabalhadores urbanos, trabalhadores rurais, sambistas, homossexuais, usuários de drogas, prostitutas, desquitados, trabalhadores domésticos (então quase sempre do sexo feminino) e assim por diante. À sua maneira, Araújo prenunciava ali o desabrochar das identidades marginalizadas que nunca cessou de progredir enquanto duraram os governos petistas (e que, apesar de todos os pesares, não foram estancados até hoje, nem pelo grotesco bolsonarismo).
Funcionava menos para a biografia de um personagem só, e RC em Detalhes resultou instável. A arenga judicial-cultural possibilitou a Paulo Cesar de Araújo rever o trabalho de Em Detalhes (até hoje disponível apenas via pirataria), e o resultado é Outra Vez, uma obra de profundidade (e quase mil páginas, apenas no intervalo do nascimento de Roberto, em 1941, e 1970), que resolve o quebra-cabeça histórico e mais uma grande quantidade de outras questões.
A mais importante delas é que o biógrafo perdeu o medo do biografado, e é amparado por quantidade e qualidade formidáveis dos depoimentos colhidos desde 1990, apenas parcialmente utilizados em tempo de maior prudência. Desta vez, ele encara os assuntos mais delicados de frente, a começar pelo tema-tabu do acidente em que Roberto, ainda pequeno, perdeu parte de uma perna. Por mais espinhosos que sejam, são tratados na versão estendida, sempre com seriedade e sobriedade, seja para contar sobre o caso extraconjugal do cantor com Maria Stella Splendore (então casada com o estilista Dener e personagem do clássico “Namoradinha de um Amigo Meu”, de 1966); a briga com Erasmo no auge do sucesso do programa televisivo Jovem Guarda; a guerra midiática entre iê-iê-iê e MPB (que atualizava em 1967 o atrito entre RC e bossanovistas, agora em termos de violonistas nacionalistas versus guitarristas alienados); as rusgas com a esposa Cleonice Rossi e a omissão pública da existência de uma filha nascida de um casamento anterior de Nice; as humilhações impostas pelo staff RC ao amigo de adolescência Tim Maia (que a Globo cancelou da história ao exibir a cinebiografia de Tim)… Figura de bastidor, o dono da TV Record à época dos grandes festivais, Paulinho Machado de Carvalho, aparece desnudando a mecânica que fundamentava a luta campal de aplausos e vaias (inclusive a Roberto): “A Record trabalhava com a cabeça e nós organizávamos os festivais mais ou menos com uma reunião de luta livre: tinha o mocinho bonito, tinha o bandido… e isso empolgava o público”.
Importantes são os trechos destinados a descrever a luta de classes no seio da música popular, materializada na rejeição dos rapazes da zona sul carioca aos garotos migrantes e/ou suburbanos que também queriam um pedaço do bolo – o Roberto iniciante chegou a ser classificado como “João Gilberto dos pobres”, e é sobre isso que Paulo Cesar de Araújo vem escrevendo desde 2002. Infelizmente Nara Leão não viveu para dar o depoimento de quem destoou do espírito corporativo da bossa e gravou um disco com canções de Roberto e Erasmo em 1978, às favas a mansa discriminação praticada por seus pares contra os patinhos feios da família musical.
É curioso observar que, como destrincha Araújo (inclusive em rica entrevista no longínquo 1993), o chefão da gravadora CBS e produtor dos discos de Roberto nessa fase, Evandro Ribeiro, era um apreciador de jazz e música erudita e omitia o próprio nome nos créditos dos LPs do astro em ascensão, possivelmente por algum desconforto em alçar ao topo um artista que era o contrário do que ele, o produtor, via no espelho. Foi Ribeiro que, segundo Araújo, reprovou a ideia de que Roberto gravasse um álbum com clássicos da MPB, no calor da transição da era do iê-iê-iê para a dos festivais. Dessa fase é o “manifesto do iê-iê-iê contra a onda de inveja” resgatado pelo biógrafo, com farpa bem endereçada à emergente MPB: “Fazer música reclamando da vida do pobre e viver distante dele não é o nosso caso. Preferimos cantar para ajudá-lo a sorrir e, na hora da necessidade, oferecer-lhe uma ajuda mais substancial”. Foi nesse contexto que Roberto Carlos desperdiçou a primazia de gravar a versão com letra de “Wave” (ou “Vou Te Contar”), de Tom Jobim. Coube então a Elis lançar mais um clássico da bossa, em 1968.
Araújo tomou depoimentos da maioria dos compositores (se não todos) que ajudaram na ascensão do futuro “rei” com ingênuas composições de romance e juventude. É tocante, por exemplo, a história de Helena dos Santos, compositora mulher, negra e pobre que Roberto gravava em todos os seus LPs entre 1963 e 1966. Quando o imaginário infanto-juvenil de Helena começou a se tornar inadequado para o intérprete que amadurecia a bordo da soul music e da influência retórica de Frank Sinatra, Roberto passou a assinar composições de outros autores (inclusive ele próprio) em nome de Helena, até 1972. A galeria de autores corresponsáveis pela disparada de Roberto faz lembrar, guardadas as proporções, os compositores que nos anos 1980 o sambista pernambucano Bezerra da Silva trouxe do morro para o asfalto em sua escalada, portadores das profissões de bombeiro, carteiro, mecânico, pai de santo, pedreiro, camelô etc.
Aqui e ali, o livro de Araújo exaspera por descer a minúcias demais, em episódios irrelevantes como o do título de cidadão paulistano concedido pela câmara de vereadores ao jovem ídolo, a varredura que Araújo faz para detectar a influência da jovem guarda junto à imprensa, no uso de expressões como “jovens tardes de domingo”, ou a ultradescrição do enredo do filme Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa (1970). Noutras passagens a narrativa delicia, em especial na descrição dedicada dos músicos que trabalharam nas gravações de cada um dos primeiros discos de RC, sempre omitidos das fichas técnicas originais junto com o nome do produtor Evandro Ribeiro.
Com fôlego aceso para concluir a história num segundo volume com o período 1971-2022 de Roberto Carlos, quando as atitudes polêmicas e censórias cresceram à medida que diminuía o brilho das composições (mas não da voz), Paulo Cesar de Araújo deve encerrar sua epopeia particular legando uma obra de vulto à bibliografia musical brasileira e, em particular, à de Roberto Carlos. O ex-censor terá de conviver com um número crescente de títulos sobre sua história, inclusive os de dois editores de FAROFAFÁ, este redator, com Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004) e Jotabê Medeiros, com Por Isso Essa Voz Tamanha (Todavia, 2021).
Além de todos os méritos, Araújo carregará a façanha de fechar uma porta pesada de censura e intimidação e abrir possibilidades para autores de fora do clubinho de elite biógrafa (Ruy Castro, Nelson Motta, quase mais ninguém), o que, afinal de contas, é o motor da obra do historiador desde sempre. Uma carga de sacrifício se impôs a ele por conta da tenacidade e da insistência: quantos livros teria escrito e quais temas teria abordado Paulo Cesar de Araújo se a mão pesada de Roberto Carlos não tivesse caído sobre ele?
Roberto Carlos Outra Vez Volume 1 – 1941-1970. De Paulo César de Araujo. Record, 928 pág., R$ 75.