Numa primeira audição, Purakê, o segundo álbum solo da paraense Gaby Amarantos, parece um apanhado de pura sofrência – ou de dor de cotovelo, ou fossa, como chamariam os mais antigos. Ela tira de lugar figuras como Elza Soares, Ney Matogrosso e Liniker, unidos em Purakê para cantar versos de desilusão amorosa no melhor espírito tecnomelody que revelou Gaby há mais de uma década, nas festas de aparelhagem de Belém, com o grupo de tecnobrega Tecno Show. Se no álbum solo de estreia, Treme (2012), a cantora se espalhava pelo repertório paraense de autores como Alípio Martins, Dona Onete e Maderito (da Gangue do Eletro), em Purakê ela toma rédea da própria produção e assina como autora as 13 faixas, sozinha ou com parceiros variados (como Jaloo, o pioneiro brega e “pai do tecnobrega” Tonny Brasil ou o discípulo dos mestres da guitarrada Lucas Estrela).
A sofrência, que ela prefere chamar de caos (a pandemia, o Brasil bolsonarista…), predomina na primeira metade de Purakê (e retorna ao final, na faixa e clipe dramático “Tchau”, um dueto com o produtor principal do disco, o também paraense Jaloo). Mas se trata de um alçapão, que despista e adia as faixas de celebração paraense predominantes na segunda metade, com auge nos duplos sentidos de “Rolha” e na energia de “Arreda”, essa última em trio com a diva tecnobrega Viviane Batidão e o ícone pop também paraense Leona Vingativa, nascida Leandro dos Santos. “Tecnobrega é foda”, brada o trio, em revide ao “a bossa nova é foda” de Caetano Veloso.
Batizado em honra ao peixe elétrico amazônico chamado poraquê, Purakê se constrói predominantemente no feminino, seja nas participações da carioca Elza, da maranhense Alcione, da paraense Dona Onete e da baiana Luedji Luna, seja na presença generosa de artistas trans/drag/fluidas/travestis: Leona, a paulista Liniker, a mineira Urias e a potiguar Potyguara Bardo. No conjunto, Purakê é das mulheres, das pretas, das indígenas, das gays, das trans, das drags, das periféricas – um pouco de tudo que também é Gaby, belenense periférica do bairro dos Jurunas.
O que não arrefeceu de Treme a Purakê é a identidade amazônica, que a artista exibiu na estreia solo produzida pelo gaúcho Carlos Eduardo Miranda (1962-2018) e pelo paraense Félix Robatto, fundador da banda La Pupuña. Sob produção de Jaloo e com intervenções de outros paraenses (como Waldo Squash, criador da Gangue do Eletro, e Félix, também presentes em Treme, ou Lucas Gouvêa e o jovem coletivo Laboyoung, que brilham na identidade visual), Purakê aprimora uma visão original da cultura e da música do Norte brasileiro, abrindo um leque amplo que evita quaisquer estereótipos e viaja do tecnobrega à cúmbia eletrônica, do aquífero de Alter do Chão às queimadas que têm consumido a Amazônia. Em “Rio”, por exemplo, Gaby elabora uma continuação feminina do clássico paraense “Esse Rio É Minha Rua“, de Paulo André Barata e Rui Barata, eternizado em 1976 na voz de Fafá de Belém. “Cada veia é meu coração/ tatuagem de amor no mapa/ desse rio que é a minha estrada/ e eu vou/ e de cuia vou te banhar/ águas negras da preamar/ pelo furo eu varei na baía”, escreve Gaby, atualizando poeticamente o rio-rua dos Barata, pai e filho, Rui e Paulo André.
Na entrevista a seguir, Gaby fala dos experimentos sonoros e também dos televisivos. Depois de participar dos programas Troca de Estilos, Saia Justa e The Voice Kids, ela se prepara para estrear como atriz em futura novela das 18 horas, ambientada nos anos 1940 e por enquanto chamada Além da Ilusão. Na Globo, a trajetória de afirmação feminina e racial ainda esbarra no racismo institucional brasileiro: a personagem de Gaby é descrita como uma faxineira que sonha em se tornar cantora de rádio. De volta ao século 21, enquanto os obstáculos se transformam em sofrência (e/ou sofrimentos mais profundos), o voo livre é a conquista principal de Purakê.
Pedro Alexandre Sanches: Se você pudesse resumir o que aconteceu na sua vida entre Treme e Purakê, o que contaria?
Gaby Amarantos: Primeiro quero lembrar que você sempre foi apaixonado pela nossa música, praticamente um paraense honorário. Nossa, Pedro, tanta coisa aconteceu desde o Treme para cá. Primeiro a busca de novas músicas, novas bagagens musicais, novas sonoridades. A gente estava faz muito tempo com vontade de fazer um álbum que falasse dessa Amazônia que eu tanto amo e defendo, mas de uma forma que não fosse estereotipada. Tem música que é de 2015, fiz várias imersões compondo, pensando no que eu queria falar nesse segundo álbum, até que veio o Jaloo. E nesse período aconteceu o Saia Justa, The Voice Kids, vou participar de uma novela. Perdi a minha mãe, em 2014. Várias coisas aconteceram. Isso tudo foi um grande amadurecer para chegar neste lugar.
PAS: Você fez vários singles nesse período, mas não é tão comum um artista demorar nove anos entre um disco e outro. Isso tem uma explicação?
GA: Acho que foi muito querendo encontrar a pessoa certa para produzir. Jaloo é a pessoa certa. Estou muito feliz de fazer essa parceria com ele, porque tem tantos produtores incríveis no Brasil, mas produtores que conhecem a sonoridade do Pará são poucos. Se chegar para alguém e disser “vamos fazer uma parada aqui meio carimbó, mas aqui quero uma batida de lundum”, as pessoas não sabiam do que eu estava falando. Falando “isso tem que soar uma roda punk na festa de aparelhagem”, a pessoa ficava: “Mas o que é uma festa de aparelhagem?”. Acho que dialogar com alguém que entende exatamente o que você está falando e traduz melhor ainda do que você imagina foi o que fez Purakê ser tão potente.
PAS: Quer dizer que tinha que ser alguém do Pará mesmo?
GA: Pois é, tinha que ser, mas tinha que ser um novo alguém, porque na verdade todo mundo que estava no Treme envolvido. Tem o Waldo Squash, o Félix Robatto. De certa forma tem a presença do Carlos Eduardo Miranda, porque Jaloo começou a produzir depois de fazer o disco de estreia com Miranda. E teve a partida do Miranda também. Eu brinco que o Miranda deixou o Jaloo para cuidar da minha carreira musical.
PAS: Você chegou a testar produtores que não eram paraenses e ver que não dava certo?
GA: Ah, testei uma galera, tanto do Pará como de outros estados. Era uma coisa minha também, porque chegava para alguém e dizia “o que eu quero está no futuro”, “o que eu quero está em 2050”, “quero falar de estilos e sonoridades que não existem ainda”. Se você pensar em “Opará”, por exemplo, o que é “Opará”? Não tem definição, não tem caixinha para “Opará”. Não tem caixinha para “Rio”. Talvez vá surgir daqui a mais algum tempo. Jaloo também teve um grande amadurecimento depois de lançar eu segundo álbum, também como produtor, e como pesquisador de música, em que ele é muito genial. Um fator que também fez a gente levar esse tempo e fazer tudo na calmaria é que a gente não é fábrica, sabe? A gente queria fazer, mas tem a coisa “hoje estou bem para fazer”, “hoje veio a inspiração” ou “hoje não rolou”. Eu quis dar esse tempo da coisa ser maturada.
PAS: A importância do formato álbum também mudou nestes dez anos, isso teve influência?
GA: Estou sentindo as pessoas tão enlouquecidas pelo Purakê que acho que elas justamente estavam com saudade desse formato, de um álbum contar uma história. É claro que sei que a indústria mudou, mas eu queria contar uma história. Gosto de contar histórias, de criar junto uma narrativa. Tem um monte de artista novo que também está envolvido no Purakê, um monte de meninos, uma cena LGBT, negra, da periferia de Belém, envolvida no trabalho visual do álbum. É uma galera muito novinha, que tem 20 e poucos anos e está pensando a periferia amazônica criativa. Então o Purakê não é um álbum só da Gaby. Está mostrando para o Brasil essa nova cena tão esperada do Pará, que não é mais só musical. Ela foi para além do musical, é uma cena visual também.
PAS: Uma boa parte do disco eu colocaria na gaveta da sofrência, ou de algo anterior, porque o melody e o brega também já tinham isso desde sempre. Essa característica está mais forte neste disco, não?
GA: Sim. Porque o Treme cumpria o papel de mostrar o que eram o tecnobrega e todas as suas nuances, do tecnomelody, do eletro, daquela sonoridade que a Gang do Eletro também faz muito. E o Purakê era mergulhar em todos esses rios, então eu pensei muito em atos. Quando a gente lançou a primeira música, “Vênus em Escorpião”, com a Urias e o Ney Matogrosso, era para falar muito desse caos todo que a gente ainda está vivendo. Depois veio “Tchau”, que é um clipe com Jaloo e também fala de caos, mas já está bebendo nessa fonte da sofrência. Todas essas músicas que você coloca nessa gavetinha que chama de sofrência eu chamo de caos. Porque a gente querer se libertar de um amor de pica é estar muito no caos, de relacionamento tóxico supercaótico (“eu te conheci em fevereiro/ foi aquele amor de pica/ tantas vezes eu pensei/ será que a gente vinga?/ a vibe tava rolando legal/ até que descobri que era tudo farsa / a tua falsidade derrubou todas as tuas máscaras“, diz a letra de “Tchau”). Então o primeiro ato é o caos, com essas músicas em lugar de sofrência como “Selfie”, “Amor Fake”. Depois, vem um bloco que é se reconectar com a natureza, com “Opará”, “Rio”, “Iniciação”.
E tem também o renascimento, que se mistura um pouco com o caos, porque quando vem “Sangrando”, o feat com a Potyguara Bardo, é sangrar para poder renascer. E acaba tudo em festa, vêm “Arreda” – tinha que ter um tecnobrega para fazer esse elo -, “Rolha”, “Iniciação”, que fala de rebolar, “Embraza”, as músicas mais de festa. Mas para a gente chegar nesse momento a gente tem que passar pelo caos, reconectar com a natureza, renascer.
PAS: Esse caos está relacionado com a situação política do Brasil e com a pandemia, apesar de o disco não tocar nesses assuntos diretamente?
GA: É, é super. Por exemplo, a gente escreveu “Vênus em Escorpião” antes da pandemia e fez o clipe no meio da pandemia. O clipe é para fazer as pessoas se sentirem no meio de uma queimada. Tem uma cena no meio em que a música para e a floresta começa a queimar. Eu não preciso dizer “salve a Amazônia”, “galera, a floresta está pegando fogo, olha aqui”. Acho que essa linguagem comunica muito e vai se somando com todas as outras, de todos nós, artistas, que usamos a nossa arte para fazer com que as pessoas se conscientizem. Se a gente quer salvar a Amazônia, como é que eu vou dizer para uma criança o que é a Amazônia se ela nem sabe direito o que é?
Tem um monte de gente que acha que a Amazônia é o pulmão do planeta, porque a gente aprendeu assim. Purakê vem também com essa missão, muito mais do que pretensão, de fazer as pessoas entenderem que a Amazônia também é rio, é água. O elemento da floresta é a água, que umidifica o planeta, é um rio flutuante. Essa folha, essa árvore, essa samaumeira, essa terra que evapora e forma esse rio flutuante que vem e umidifica o mundo. Por conta de nossa floresta estar queimando, veio aquela fumaça cinza que cobriu São Paulo em 2018 e deixou todo mundo assustado. É porque está faltando a umidificação, e a gente tem que aprender que se não tem Amazônia não tem água, se não tem água não tem energia, não tem planeta. E mostrar a beleza também, porque, nossa, Alter do Chão, onde se passa o cenário de praia do rio de “Embraza”…
PAS: Alter do Chão é o único lugar do Pará que você cita nominalmente no disco, por quê?
GA: Porque a gente foi para o barco compor as músicas. Tem um clipe do álbum do Jaloo, chamada “Q.S.A.”, gravado num barco, num cenário todo amazônico. A gente foi fazer esse clipe e pirou, ficou enlouquecido, “a gente tem que voltar, pegar esse barco, montar um estúdio móvel e fazer o disco aqui”. Se vai fazer um disco que fala da Amazônia, a gente tem que ir para a Amazônia, para esse lugar que é um dos maiores aquíferos de água potável do planeta. É um oceano de água doce, com o rio Arapiuns, o rio Tapajós, o rio Amazonas… Tem um lugar ali onde eles se encontram, você olha para todo lugar e só tem água, e água doce. A gente foi com esse barco, ficou comendo filhote, tomando banho de rio e fazendo música. O disco nasceu no meio desse cenário. Foi em 2019, antes da pandemia.
PAS: O rio Tapajós passa por Alter do Chão? É o mesmo cenário?
GA: Passa, é esse cenário. Lá é o maior aquífero de água potável da Amazônia. O encontro do Amazonas com o Tapajós é tão lindo quanto o encontro do rio Negro com o Solimões, que a galera conhece muito. E na praia de Alter do Chão sempre está rolando roda de carimbó – ou estava, antes da pandemia, mas já deve estar rolando de novo -, o povo dançando na praia, tomando banho de água doce, e cada por do sol absurdo. Esse lugar virou um point agora, tem uma paulistada, virou o novo Trancoso da galera. É essa biodiversidade que a gente tem que compreender e salvar.
PAS: O nome do disco é de um peixe amazônico, mas em português se escreve “poraquê“. Por que Purakê? Qual é a mitologia desse peixe, para virar o nome do disco?
GA: A gente teve uma licença poética de mudar o nome, que se escreve do jeito que você falou. Mas se pronuncia “purakê”, o “o” com som de “u”. A gente achou que ia facilitar mais para a nossa linguagem modernizar a etimologia da palavra. O poraquê é um peixe muito presente na minha vida, porque o meu avô pescava. É um peixe muito difícil de pegar, porque ele dá choque. Precisa de um mutirão de pescadores para conseguirem pegar um poraquê. É uma coisa extraordinária acontecer de você conseguir ver ou pegar um poraquê. É um peixe que também é mitologia, lenda, representa a eletricidade natural. Todas as músicas de Purakê têm uma parada eletrônica, mas não é aquela coisa frenética que o Treme tinha, a função de trazer o frenesi. É uma eletricidade que vai te tomando aos poucos, te envolvendo, em algum momento te faz chorar, em outro te levantar, faz rir quando você escuta “Rolha” e fala “nossa, essa doida fez essa música, que mulher maluca, adoro ela”. Muita gente tem falado isso. Também tem a mitologia de ser um peixe raro da Amazônia, pré-histórico, que representa o poder de todos os elementos da floresta. Nesse lugar, Santarém, tem um outro lugar, chamado Floresta Encantada, onde fui passar a virada deste ano com minha família, numa casa isolada na floresta. É um lugar inacreditável, tem um conglomerado de igarapés, você escolhe, “hoje vou tomar banho nesse igarapé”, “agora vou no outro”. E é um lugar de poraquê. Foi quase um insight, uma epifania, o nome ainda não tinha chegado, ao contrário do Treme, que desde o início eu sabia que ia ter esse nome. Quando cheguei naquele lugar e me deparei com aquela outra natureza amazônica, que eu não conhecia, falei: pronto, está aqui, nasceu, esse é o nome do álbum.
PAS: O poraquê é um perigo para quem está se banhando?
GA: Não, porque ele não vai chegar nunca no lugar onde tem banhistas. Ele se esconde, não quer ser visto. A minha avó dizia que, se você toma banho num rio e passa um poraquê, essa água é abençoada, você pode fazer um desejo. É uma sorte absurda conseguir ver um. Não tem histórias de pessoas que estavam se banhando e levaram um choque de poraquê. As pessoas sabem que existe, mas ele se mete nuns lençóis freáticos, fura o fundo do rio, é muito difícil de ver. Eu tive a sorte de ver quando era criança porque meu avô pescava. Era uma parada de subsistência, comiam o poraquê. Ele é grande, era alimento para a família por uma semana. É um peixão. E tinha uma coisa de troféu, “nossa, fulano conseguiu pegar um poraquê”. É um símbolo de poder também para os ribeirinhos que tinham a liberdade de pescar esse peixe.
PAS: “Rolha” é uma canção única no disco, a mais explícita sexualmente. O que é a rolha?
GA: Ah, eu gosto muito de vinho e gosto de colecionar rolhas (risos). Tenho minha coleção na minha casa. E gosto de vários tipos de vinhos. Tem dia que eu quero tinto, outros rosê, outros branco, todos os vinhos. Tinha que fazer uma música sobre isso, porque tem muita gente que gosta de vinho e de colecionar rolha que nem eu (risos).
PAS: Dá a impressão que você está mais sossegada nesse disco, e essa faixa é quando bota as antenas para fora.
GA: Amor, mas eu já tomei muito vinho por aí (risos), não esquece o passado, não. Tanto que tenho minha coleção de rolhas em casa. É muito legal, do ponto de vista feminino. A gente já está nesse processo de empoderamento também sexual, e é muito legal poder falar no duplo sentido, mas também ter a liberdade para expressar isso. Muita gente está se identificando. Eu sabia que muitas mulheres iam, mas não só mulheres, todos os tipos de mulheres, as gays, as trans, as mulheres cis.
PAS: Todas as que gostam de rolha…
GA: Todas estão se identificando muito com essa música (risos). Mas acho que tem outras que também são primas de “Rolha”. Ela é uma cúmbia eletrônica, é filha única por isso, mas “Amor Fake” e “Selfie” também, de certa forma, são um pouquinho bem-humoradas. Eu gosto muito do humor, de misturar isso, mas sem perder a relevância. Precisa ser entendido que a gente tem que falar desse tipo de assunto.
PAS: Por que, entre os vários tipos de mulher, as drags e as trans são onipresentes no seu disco e no clipe de “Tchau”?
GA: Ah, porque elas são maravilhosas, muito talentosas, e eu gosto de cantora. Eu precisava ter cantoras talentosas, com voz, para poder vir com tudo. E queria representar todos os femininos em que acredito.
PAS: Acho divertido que você colocou Ney Matogrosso, Elza Soares, Liniker, Potyguara para cantar músicas de dor de cotovelo, de fossa. Eles saíram um pouco do lugar habitual deles para participar do disco, não?
GA: Muito, e foi tão legal ver eles embarcando. Para mim foi tão rico ver o Ney, quando mandei para ele, uma música que eu escrevi, dizer “nossa, adorei, quero, sim, vou gravar”. O público só ganha quando a gente sai do lugar comum. E esses feats foram acontecendo muito naturalmente. Quando vi Potyguara falei, meu Deus, que coisa maravilhosa essa pessoa que traz o folclore de uma forma tão atual assim. Ela é maravilhosa. A Urias canta para caramba, é linda, é potente. A Liniker, nossa, é essa coisa maravilhosa. E ter Dona Onete, Elza Soares e Alcione numa faixa é sorte para zerar a vida.
PAS: A Viviane Batidão entra como representante da era do tecnobrega?
GA: Sim, a Vivi é muito forte lá no Pará, o povo é enlouquecido por ela. E é também para ter uma continuidade, trazer uma pessoa de lá para o Brasil poder conhecer, junto também com a Leona Vingativa, minha bebê, minha filha, minha afilhada, para a gente cantar esse “Arreda”, que é um grito. Eu vi nalgum lugar que o tecnobrega, o brega, finalmente vai ser reconhecido como patrimônio imaterial do Pará. Está tramitando, parece que vai rolar, é uma coisa que já era para ter acontecido há muito tempo. Caetano Veloso falou que a bossa nova é foda, e “Arreda” é um grito de guerra da gente, falando: aceita, tecnobrega é foda, periferia é foda, a música que a gente faz é foda.
PAS: Não só a bossa nova…
GA: Todos esses estilos que bebem da fonte da música preta brasileira. Tudo vem da música negra e está tudo interligado.
PAS: Gaby, e seu lado televisivo, era uma coisa que você desejava também quando ainda estava em Belém? Por que aconteceu?
GA: Antes de cantar eu era do teatro, Pedro. Eu era de uma companhia, a gente fazia espetáculos, a minha primeira aspiração era ser atriz. E a música veio, porque comecei a cantar MPB em bar, e depois o Tecno Show veio, a música me arrebatou de um jeito que não tinha mais espaço para fazer outras coisas. Mas agora me organizei, tenho uma equipe maravilhosa, vai dar tempo de realizar meu sonho, que é esse triângulo da música com a dramaturgia e o lado de apresentadora, do Saia Justa, do The Voice. Eu sempre queria ser apresentadora, desde criança. Ainda tenho muita coisa que quero ser, mas estou quase fazendo tudo o que quero ser.
PAS: E a novela? Que tipo de personagem você vai fazer?
GA: Sei muito pouco sobre a minha personagem, ainda vou começar as preparações. Tudo que eu sei é o nome dela, Emília, e que ela também é uma cantora. É um processo que vem acontecendo, da gente querer fazer com que a televisão, a publicidade, a mídia, tudo fique mais com a cara do nosso povo brasileiro. A gente quer ver esse sotaque, esses corpos. É muito bom poder ter essa diversidade, realmente ver isso acontecendo. Acho que agora a gente está no caminho de conseguir normalizar mesmo.
PAS: Eu quis perguntar para saber se seria um personagem subalterno como tantos que os artistas negros e indígenas têm que interpretar. A novela das empreguetes (Cheias de Charme, 2012) já mexia com essa questão, mas carregava ainda o estereótipo.
GA: É, eu quero ver cada vez mais projetos na televisão que mostrem pessoas negras e indígenas ricas, milionárias, para que a ficção possa realmente imitar a vida.
PAS: Você se mudou para o Rio para fazer novela na Globo?
GA: É, vou ficar um período lá, mas ainda me sinto morando no Jurunas, amor (risos). Ainda tenho resistência de dizer que não moro no Jurunas. Tenho uma base aqui em São Paulo, por causa do Saia Justa, porque com a pandemia não dava para eu ficar indo para Belém e voltando, então estou em São Paulo.
PAS: Você gosta desses períodos de São Paulo e Rio, ou prefere Belém?
GA: Nada se compara, né (risos)? Mas gosto muito de São Paulo, e do Rio também. Gosto muito exatamente dessa vida que tenho de poder ser nômade, ficar um período em cada lugar. Vou ficar um mês aqui, trago a família. Dois meses de férias, vou para Belém, vamos para Alter do Chão, vamos desbravar o Pará.
PAS: Seu filho continua em Belém? Ele deve estar grandão já…
GA: Sim, minha família toda está lá. Davi está no clipe de “Amor pra Recordar”. O menino da primeira fase é ele, e a menina que faz minha filha é a minha sobrinha-filha. Eu tenho uma maternidade compartilhada com a minha irmã. Nós juntas temos três filhos. A nossa mais velha estava na pré-produção, mas ela é adolescente, não gosta de aparecer. Mas a pequenininha estava lá super-artista, e o Davi faz o personagem do meu filho na primeira fase.
PAS: Então elas são suas sobrinhas, mas são suas filhas também?
GA: Minhas filhas, sobrinhas-filhas. Se não falar sobrinha-filha, elas ficam bravas. São duas meninas pretinhas lindas, maravilhosas.
PAS: As próximas Gabys?
GA: As próximas Gabys. A caçula, com certeza. Quero falar também dos meninos da Laboyoung, que fizeram os figurinos, o sushi de sereia. Esses meninos da nova cena do Pará são incríveis, você tem que sacar o trabalho deles, são maravilhosos.
PAS: Por falar nisso, você tinha feito um filme, é com essa turma?
GA: Não, é uma outra turma. Não tenho muita informação sobre o filme, porque o audiovisual está superprejudicado e a gente não sabe quando vai sair. É Serial Kelly, com uma outra turma, bem legal também. Eu sou a serial killer, a Serial Kelly (risos). Você vai amar, tenho certeza.
Purakê. De Gaby Amarantos. Deck, 2021.