Controlado pelos bombeiros por volta das 20h da noite desta quinta-feira, o fogo que destruiu um edifício de apoio da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, ao lado do Ceagesp, foi uma das tragédias mais largamente anunciadas do recente pesadelo que assola a cultura brasileira desde o golpe de Estado capitaneado por Michel Temer em 2016. Era tão previsível o incêndio que a Sociedade Amigos da Cinemateca, organização da sociedade civil que busca zelar pelo patrimônio armazenado na instituição, deveria ter assumido uma gestão de emergência da Cinemateca no dia 12 de janeiro, mas foi barrada pelo secretário Especial de Cultura, Mário Frias.
O governo federal demonstrou um repentino e bizarro interesse no maior acervo audiovisual da América do Sul. No início, parecia que era apenas uma questão de vaidade aliada à conveniência política – o presidente Jair Bolsonaro tinha prometido dar a presidência da Cinemateca (cargo que não existe) como um prêmio de consolação para a militante Regina Duarte, a mais breve (e inócua) figura pública a passar pelo cargo maior da cultura nacional. Mas havia empecilhos burocráticos. Nesse movimento de apropriação privada de um bem público, a secretaria Especial de Cultura retomou estrepitosamente as chaves da Cinemateca há um ano, com escolta da Polícia Federal, desalojando seu antigo gestor, a Associação Roquette Pinto. Parece que só então descobriu que não tinha a menor ideia do que a Cinemateca significava e, a partir daí, nada fez para profissionalizar novamente sua gestão, editando um monte de portarias improvisadas para contratar os serviços que mantiveram a Cinemateca respirando por aparelhos, fechada e sem plano de atividades. O resultado não se fez esperar muito.
Segundo disse (em uma defumada coletiva de imprensa logo após a contenção das chamas, na rua) a capitã Karina Paula Moreira, a porta-voz do corpo de Bombeiros de São Paulo, o fogo desta noite de quinta destruiu uma área de 300 m2 no qual podia ou não estar a reserva técnica do anexo da Cinemateca (a sede principal fica na Vila Mariana), algo como três salas, e tudo começou com a ação de uma empresa terceirizada contratada para operar a climatização. Os funcionários da terceirizada mexeram em algo e esse algo teria causado uma faísca, iniciando o incêndio.
É preciso salientar que o prédio que queimou abrigava uma grande parte do acervo da Cinemateca, especialmente filmes de 35 mm e 16 mm, segundo informou a Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API). Os filmes ali armazenados eram cópias de exibição, não os rolos originais, que estão guardados em outro local. Além desses filmes, ficavam guardados no local o acervo da Programadora Brasil e documentos e equipamentos museológicos, como projetores antigos. Essa noite, o Corpo de Bombeiros não soube informar o quanto disso efetivamente se perdeu, tal levantamento só será possível após o rescaldo das ações de contenção da circunstância de fogo, mas não houve feridos e não há mais riscos a vidas humanas no atual cenário do prédio queimado. A sede principal da Cinemateca, no entanto, o antigo Matadouro Municipal, padece dos mesmos problemas e isso já foi largamente denunciado aqui no FAROFAFÁ.
A responsabilidade do governo federal no destino da Cinemateca é integral. Não apenas porque retomou intempestivamente sua tutela, destituindo todos os servidores especializados e impedindo especialistas de ter acesso ao edifício, aos procedimentos de gestão e aos cuidados com a reserva técnica. Mas principalmente porque interrompeu o diálogo com a sociedade e com os cidadãos diretamente envolvidos não só no entorno da Cinemateca, mas com toda a área audiovisual do País, fazendo o possível para perseguir, criminalizar e censurar a liberdade de expressão no setor, um dos mais críticos e independentes. A Cinemateca tornou-se um tipo de refém desse grupo em sua cruzada de aniquilação de toda a vitalidade da cultura brasileira.
A desestruturação da Cinemateca é um processo que já atravessa mais de uma década. O cineasta Roberto Gervitz costuma dizer que a instituição entrou na “espiral do Inferno” em 2013, mas sua fragilização intensificou-se a partir da decisão do antigo Ministério da Cultura de Michel Temer de repassar sua gestão a uma Organização Social que não tinha a menor especialização no setor, a Associação Roquette Pinto. O contrato, assinado pelo ex-ministro Sérgio Sá Leitão (hoje secretário de Cultura e Economia Criativa de São Paulo), já nascia com uma irregularidade – a fundação também já tinha contratos para gerir outras estruturas do Estado brasileiro, o que é vetado por lei.