- Na transcrição das narrativas orais, podem sobrevir elementos da ética, da moral, da estética e da espiritualidade do coletor. Mas, no caso da transcrição que Darcy Ribeiro (1922-1997) fez dos relatos do povo Urubu-Kaapor em seus Diários Índios, o que se extraiu foi a grandiosa cosmogonia de uma civilização, uma viagem de rigor e investigação, mas principalmente de imersão no maravilhamento da descoberta pelo antropólogo.
Darcy fez duas expedições à terra dos Urubu-Kaapor no Pará e no Maranhão: em 1949 e 1950 ,nas áreas do Rio Gurupi e do Rio Pindaré. O material saiu em livro pela primeira vez em 1996. Agora, está sendo lançada, pela Global Editora, a segunda edição, 24 anos depois da primeira.
O antropólogo mineiro considerou Diários Índios mais importante que sua obra-chave teórica, O Povo Brasileiro. “É o livro pelo qual serei lembrado daqui a cem anos”, sentenciou. Os Urubu-Kaapor são os últimos representantes dos Tupinambás na costa brasileira. “Teorias, por mais consistentes que sejam, são consumidas pelo tempo. Mas o relato frio da realidade jamais se esgota”, explicou o autor.
O “relato frio” de Diários Índios não tem nada de indiferente, na verdade. Só não possui a dramaticidade típica dos povos brancos, permeada pela culpa ou pela punitividade. Funde a criação dos mitos com a descrição (sempre pelos interlocutores, os indígenas) de fatos relativos a caça, agricultura, modos de ser e de fazer. Darcy caminhou mais de 700 quilômetros durante dois anos com os Urubu-Kaapor, partilhando de seu cotidiano de uma forma e com uma intensidade que ele mesmo não se julgava capaz.
Nos relatos de Darcy, há fabulosos contos dentro dos contos, um imaginário da vida na floresta que fascina pela equiparação entre homem e terra, homem e bicho, homem e mito. Uma das histórias narra a vingança de uma aldeia contra uma onça que emboscou e matou três de seus integrantes, e o consequente ritual de devoração do inimigo. Há mulheres engravidadas pela divindade, da mesma forma que na religião cristã, e parábolas que elucidam a formação de um povo ou então que prometem elucidar. O antropólogo escreveu os diários como uma espécie de correspondência para a companheira, Berta Ribeiro.