Um círculo vicioso

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As cenas de ultraviolência se empilham feito cadáveres tombados durante uma pandemia. No município de Mafra, em Santa Catarina, uma mulher é imobilizada por policiais militares, que a jogam no chão e a deixam com o rosto todo ensanguentado e uma fratura exposta na perna. O vídeo com as imagens sem censura jorra por todos os meios virtuais.

Segundo aponta o noticiário responsável, o episódio aconteceu no dia 19 de fevereiro, mas só foi divulgado e passou a varrer as redes sociais na última terça-feira, 10 de março. Foi, portanto, o “presente” atrasado dado pela institucionalidade, em parceria com o submundo virtual, a cada mulher brasileira, pela passagem do Dia Internacional da Mulher, dois dias antes.

Parece haver método no uso da tática. O gabinete de ódio tem sempre imagens degradantes prontas para serem usadas na neutralização de quaisquer avanços, conquistas, manifestações de massa nas ruas, celebrações. O programa ideológico é reduzir-nos à ferocidade sobre quatro patas. E os cultuadores da barbárie estão nadando de braçada sobre nossos corpos.

Permaneço aferrado à decisão de não ajudar a transmitir e difundir imagens desse quilate, ainda que elas não parem de aparecer diante de meus olhos. É o programa dos cultivadores da barbárie, eu não pertenço ao programa deles e nem o programa deles pertence a mim. Mas como engolir a seco as imagens? Como testemunhar a escalada fascista da Polícia Militar sobre um corpo feminino e simplesmente seguir adiante, como se tudo não estivesse esquisitíssimo aí fora? Não sei.

Os contragolpes existem, estão pululando por aí afora em escala muito menor. Na mesma terça-feira, 10, por exemplo, o coreógrafo e bailarino Wagner Schwartz reapresentava em São Paulo, em duas sessões, sua performance La Bête, que em 2017, no Museu de Arte Moderna da cidade, se prestou a refúgio e aparador da loucura fundamentalista, devido à nudez do protagonista. Desta vez, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, nenhum maluco violento apareceu para jogar pedra na Geni. Defensores da “moral” e dos “bons costumes” estavam, talvez, ocupados distribuindo vídeos de espancamento feminino por agentes do poder público.

Entre as dimensões simbólica e concreta da ultraviolência em marcha, vamos nos equilibrando, numa corda-bamba instalada no 17º andar de um edifício em chamas. Nos deixamos capturar pela banalidade do mal, muitos de nós ajudando a popularizar as imagens mais sórdidas, as que mais detestamos.

Como comunidade, estamos totalmente reféns do bolsonarismo, até mesmo nos atos de combate. Em tempos recém-passados, seres furibundos como o jornalista Reinaldo Azevedo (entre centenas de outros) percorreram os anos petistas popularizando Lula e o lulismo em tempo integral, ainda que fosse criticando, xingando, cunhando expressões jocosas (“petralhas!”, “apedeuta!”, “anta!”). Agora, parece, é nossa vez de dar voz a J.B. e aos métodos caros ao bolsonarismo, 24 horas por dia, sete dias por semana.

Quando e como vamos começar a quebrar esse círculo vicioso?

 

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