O AFRO-SAMBA PAULISTA

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Douglas Germano - foto de Adriana Aranha

O mineiro João Bosco e o carioca Aldir Blanc marcaram a música brasileira dos anos 1970, numa galeria de sambas que enfrentavam a ditadura pelo alinhamento completo aos humilhados e ofendidos pelo regime de então. Aos 51 anos, o paulistano Douglas Germano traz para seu terceiro álbum solo, a obra-prima Escumalha, a vocação de representar para os anos 2010 o que Bosco e Blanc significaram para os 1970, com o adendo de uma poética irada, que se lança frontalmente contra o sistema cujo rosto mais feio se chama Jair Bolsonaro

O próprio Aldir Blanc comparece como letrista de Valhacouto, um samba-enredo vigoroso contra uma “escumalha” que “fez armas virarem leis”, uma “canalha” que “roubava vidas sem talvez”, um “valhacouto” de “crianças matando, imitando tiras, vale da morte, estupidez”, “escroques, laranjas, fantasmas, vilões, um horror”. Trata-se da Alemanha da primeira metade do século passado, avisa o samba, mas… “acabou mesmo, hein?”.

Escumalha acompanha em sua integridade o pulso desse samba-enredo sobre o puro terror. Àgbá abre o CD se entregando às afro-divindades que João Bosco louvou em alguns de seus discos mais vigorosos, como Tiro de Misericórdia (1977) e Cabeça de Nego (1986). Vil Malandrão desfere desaforos para você sabe quem, em potente arranjo acústico de afro-samba. Babaca emprega aliterações em pique de trava-língua, arremetidas em honra ao mesmo personagem, hegemônico no álbum. Chapa filia-se à linhagem do samba para os ofendidos e traça uma incrível linha evolutiva entre afro-samba, João Bosco, vanguarda paulista de Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé e o presente vanguardista do grupo paulistano Metá Metá. O lirismo dá uma trégua à ira em faixas como Marcha de Maria e Tempo Velho, nem por isso menos indignadas que os outros sambas.

Apesar de pouco reconhecido pela elite da MPB, até por ser paulistano, Douglas tem trajetória longa como compositor, desde que o Grupo Fundo de Quintal gravou Vida Alheia (1991), co-assinada por ele sob o pseudônimo Cuca. De lá para cá, lançou dois bons álbuns, associou-se à nova vanguarda paulista liderada por nomes como Kiko Dinucci e Juçara Marçal e foi gravado por gente como Fabiana Cozza, Juliana Amaral e, mais recentemente, Elza Soares. Escumalha grita o que estava há muito tempo calado: Douglas Germano é uma potência irrefreável do samba moderno, em tempos de horror.


Escumalha. De Douglas Germano. Selo Boca de Lobo.

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