Gilberto Gil assina composições e violão no disco novo de Roberta Sá. “Giro” marca retomada da parceria do baiano com Jorge Benjor
Em geral geograficamente associada ao Rio de Janeiro onde se radicou, também por conta do samba que abraçou como gênero majoritário em seus discos, a potiguar Roberta Sá vai além em “Giro” [Deck, 2019], seu novo álbum.
O repertório é inteiramente dedicado a composições de Gilberto Gil, todas inéditas – a exceção é Afogamento, parceria com Jorge Bastos Moreno (1954-2017), já registrada pelo baiano, com a participação de Roberta Sá, em “Ok ok ok” [2018], seu trabalho mais recente.
É a segunda vez que a nordestina dedica um disco inteiro ao repertório de um nordestino, novamente um baiano. O primeiro foi Roque Ferreira, que cantou em “Quando o canto é reza” [2010], dividido com o Trio Madeira Brasil.
Em ambos os casos, o uso de percussões é sutil, como se ela desbaianizasse as composições de ambos – no sentido de despir da batucada que acabou por caracterizar o que se convencionou chamar de “música baiana”, sobretudo desde o advento da axé music, a partir de meados da década de 1980. Algo ousado, sobretudo em “Quando o canto é reza”, em que ela adentra particularmente a seara do samba de roda, cuja dança é marcada por palmas e batuques.
“Giro” reaproxima a cantora do Nordeste, com resultado também surpreendente, um disco feito de delicadas sutilezas que já nasce clássico. Além de compor a íntegra do repertório, Gilberto Gil toca seu violão sincopado em todas as faixas. O álbum marca também a retomada da parceria de Gil e Jorge Benjor, iniciada em 1975, quando dividiram o álbum “Gil & Jorge” (também conhecido como “Ogum Xangô”).
A história é no mínimo curiosa: encontrando a cantora por acaso, Jorge Benjor interpelou-a carinhosamente, afirmando que já estava na hora de ela gravar alguma coisa dele, ao que ela respondeu que estava preparando um disco com repertório inédito de Gilberto Gil. E provocou-o: se ele fizesse uma em parceria com ele, ela gravaria. Os dois fizeram então Ela diz que me ama, registrada com a adesão do carioca.
São amplos os leques de gêneros, temas e parceiros de Gilberto Gil (e Roberta Sá) em “Giro” – disco e faixa de abertura têm no título as primeiras letras dos nomes do compositor e da intérprete. Eles são parceiros nos xotes Cantando as horas, pontuado pela guitarra de Bem Gil (produtor do álbum), Fogo de palha, em que se sobressai o contrabaixo de Alberto Continentino, Xote da modernidade (com Bem Gil) e Outra coisa (com Yuri Queiroga), onde despontam a bateria e o MPC de Domenico Lancellotti.
O Gilberto Gil “filósofo” comparece em temas como Autorretratinho e A vida de um casal, cuja letra ensina: “a vida de um casal é uma escada/ que não se acaba nunca de subir/ degrau após degrau, longa escalada/ e o medo permanente de cair”. Nem (Gilberto Gil, Bem Gil e Alberto Continentino) parece refletir o Brasil de 2019: “nem que alguém diga cem mil vezes “bem que eu sabia”/ nem que alguém cante cem mil vezes tal cantoria/ “bem que eu sabia”, “bem que eu disse”, “bem que eu previa”/ nem que esse alguém vá mais além tornando-se um guia”, provoca a letra, para arrematar: “vai e vem/ mal e bem/ para sempre/ amém/ nem que alguém queira parar o trem”, Brasil desgovernado.
E por falar em refletir, o projeto gráfico de “Giro” bem traduz a simbiose Roberta-Gil: nas mãos de uma e outro, pequenos espelhos refletem outro e uma.