Se dependesse do pai, Ítalo, Sérgio Mamberti seria um diplomata. Virou ator, para desespero da mãe, que um dia ouviu de uma amiga, mãe de Plínio Marcos, que ela não tinha do que reclamar: “Teatro? Que beleza. Se console, Maria José, o meu filho foi fazer circo.” Aos 80 anos e 63 de carreira, Sérgio Mamberti está na 5ª temporada de Visitando Sr. Green, no Teatro Renaissance, em São Paulo, peça que acaba de ser apresentada no Festival Tchecov, no Teatro Maiakovski, em Moscou. Homenageado com o Grande Prêmio da Crítica da APCA, ele está cheio de projetos: duas peças, uma exposição de colagens, personagem de uma biografia e um documentário já filmado. Na entrevista a seguir, o ator que fez personagens memoráveis como o Doutor Vitor (do Castelo Rá-Tim-Bum), o copeiro Eugênio (da novela Vale Tudo) e o vilão Dionísio Albuquerque (Flor do Caribe) fala de suas visões sobre a política cultural no Brasil com a experiência de 12 anos trabalhando no Ministério da Cultura (MinC). Ocupou os cargos de secretário de Música e Artes Cênicas, da Identidade e da Diversidade Cultural, de presidente da Fundação Nacional de Artes, e, por fim, de secretário de Políticas Culturais. De certa maneira, foi nas exitosas gestões do MinC nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff que o sonho do senhor Ítalo se realizou: seu filho se tornou um diplomata da cultura brasileira.
A 1ª SECRETARIA DA IDENTIDADE E DIVERSIDADE CULTURAL
Todo o projeto do Lula já era fundamentando na diversidade cultural, onde só a participação da sociedade civil é que a legitima. O Lula fez as Caravanas da Cidadania, onde redescobre um Brasil que estava oculto e revaloriza todos esses segmentos, das tradições indígenas, quilombolas às culturas tradicionais. Quando fiz o primeiro encontro das culturas populares, juntamos mestres da cultura, gente que não se conhecia, sempre com o protagonismo das pessoas, dos artistas e criadores. A partir de então, começaram a se criar secretarias de diversidade em todo o Brasil. No mundo, o tema da diversidade já acontecia, mas no Brasil tivemos um papel importantíssimo. O Gilberto Gil foi chamado de ministro dos ministros. No dia da aprovação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, na Unesco, só os Estados Unidos e Israel votaram contra. Eles não a queriam em vista da globalização, já dentro da perspectiva do streaming, de anular a diversidade. Esse é o grande desafio que temos, o de incorporar a globalização, mas sem perder a identidade. A convenção é o órgão definidor, por excelência. Participei de todas as seções. Cheguei a ser o diplomata que meu pai queria que eu fosse. O Itamaraty foi o grande parceiro.
PROGRAMAS DO PT
Fui coordenador do primeiro programa, ao lado de (Augusto) Boal e da Esther Goés, em 1994, chamado “Cultura como Invenção do Futuro”. Ele alimentou os projetos dos outros anos. Quando Fernando Henrique (Cardoso) ganha em 1994, entreguei oficialmente, em nome do Lula, para (o ministro Francisco) Weffort, através do Gilberto Gil e do Otaviano de Fiore, o nosso programa como uma contribuição para o novo governo. A primeira brochura lançada pelo Weffort, que tinha sido do PT, fala em “Cultura é um Bom Negócio”. Eu estava na Universidade da Bahia e o José Álvaro Moisés levou uma grande vaia geral. Como tem a dimensão da cultura dentro da convenção da diversidade, ele veio falar que a cultura era um bom negócio, falando mais de indústria cultural.
PRIMEIROS ANOS NO GOVERNO
A expectativa era que um de nós do coletivo assumisse o Ministério da Cultura. Como possíveis ministeriáveis, tinham eu, Antonio Grassi, Hamilton Pereira. E o Lula viu que havia uma disputa. Jamais me coloquei nessa posição, não pleitiei, sou muito do coletivo. Quando Lula escolhe o Gil, foi um terremoto. O Gil tinha sido secretário do governo Fernando Henrique. Ele falou para o Gil que ele iria ter de fazer um acordo com todos os que fizeram o programa, e que o PT tinha grande contribuição. O Gil entendeu e me convidou para ser o Secretário de Músicas e Artes Cênicas, que era a que mais movimentava a Lei Rouanet. Fizemos uma reestruturação do ministério para que não fosse mais temático. O Lula falou de ter centros culturais por todo o Brasil. Mas tínhamos a visão de que se a gente fosse se preocupar em fazer iríamos gastar um dinheiro enorme e não teríamos recursos para desenvolver as políticas. E a gente buscava o protagonismo e a participação da sociedade. Já havia a expressão “política pública”, mas praticamente a gente instituiu, nos governos do PT.
A LEI ROUANET
A gestão do Fernando Henrique, através do Weffort, muitas vezes usava a nossa narrativa, mas fazendo exatamente o contrário. Toda a política de cultura do Fernando Henrique foi feita através da Lei Rouanet, que não era operacional quando foi criada. Mas a partir da Lei Mendonça (em São Paulo), ela se tornou uma possibilidade real fora dos recursos diretos. E foi uma luta permanente dentro do próprio governo Lula. Quando entramos no ministério, os recursos para a cultura eram em torno de 200 e poucos milhões de reais, e a Lei Rouanet não chegava a 500 (milhões de reais). E foi uma lei que privilegiou o Sudeste. Como ela tem essa abertura para que o patrocinador use o percentual do dinheiro devido, descontando do imposto de renda, ao mesmo tempo quer que a marca dele se sobreponha. Os departamentos de marketing passaram a determinar, de certa maneira, a dramaturgia que estava sendo feita. Passou a haver uma grita pelo fim da Lei Rouanet, mas seria uma irresponsabilidade nossa. Durante nove anos, fizemos discussões. O (ex-ministro) Juca Ferreira fez uma reformulação, que é o Procultura e está no Congresso. Se esse governo (de Jair Bolsonaro) fosse sério, ele retomaria o Procultura como base para uma reformulação. Mas eles demonizaram a lei e criaram um teto. O problema não é o teto. O problema é que as contrapartidas que pedem, praticamente inviabilizam a bilheteria. Mas os musicais, que são os maiores prejudicados (com a nova Rouanet), dão muito emprego. O (ex-ministro) Sergio Sá Leitão levantou o teto de tal maneira que o que já estava concentrado superconcentrou. O mercado é devorador. Eu me lembro de a Fernanda Montenegro dizer, em 2001, que não ia mais produzir espetáculos, porque começaram a dizer que ela se aproveitava da Lei Rouanet. ‘Eu não quero, depois de tantos anos, ser acusada de estar usando dessa benesse de forma espúria. Estou numa certa idade, que só quero que me produzam’, a Fernanda disse.
ANA DE HOLLANDA
A (ex-ministra) Ana de Hollanda, de uma certa maneira, veio num momento em que precisava haver reformulações. O Procultura estava para sair. O Lula fez o 1º Plano Nacional de Cultural, e a Ana me tira da Funarte e me coloca na Secretaria de Políticas Culturais, para implementar o plano, o primeiro do Brasil, que é o planejamento da cultura por dez anos. Já o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) se utilizou dela, mas ela não tinha relações espúrias com o Ecad de jeito nenhum. A Ana ficou muito estigmatizada porque mexeu no Creative Commons. Ela queria criar um sistema brasileiro e fizemos os encaminhamentos para criar essa licença. Quando mexeu nisso, o pessoal das redes caiu duro em cima dela. Foi uma coisa muito complicada. A Ana é uma pessoa muito preparada, inteligente, era mais reflexiva, mas não tinha uma agilidade que estava sendo exigida no mundo político. Discordo muito dessa demonização que foi feita contra ela, porque foi injusta, e tenho uma apreciação muito grande. Ela era um pouco teimosa, uma personalidade forte.
COMUNICAÇÃO E CULTURA
O único processo transformador que reconheço é o da cultura. A educação é um braço hierárquico da cultura. O que diz a convenção da diversidade: a cultura deve permear todas as ações de um governo democrático, inclusive os conceitos de desenvolvimento sustentável. Na Rio+20, na Espanha, a cultura era o quarto pilar do desenvolvimento sustentável. Acho que a nossa grande falha foi a questão da comunicação, cujo ministério foi entregue ao PMDB, com Helio Costa, e depois quando entra o Paulo Bernardo, ele não percebeu que aquele era o momento de fazer a grande transformação. De certa maneira, continuou e aprofundou essa hegemonia dos meios de comunicação. Onde nasce a EBC? Dentro do Ministério da Cultura. O Franklin (Martins), um homem importantíssimo, se junta e a gente cria a EBC, um órgão de comunicação pública, que infelizmente não conseguiu decolar. Há uma crítica pertinente que, embora tenhamos dado voz a toda essa diversidade cultural, a gente não chegou a fazer com que através dos meios de comunicação, ela permeasse também essa emancipação econômica para que fosse vista como uma conquista de direitos e não inserida dentro de um processo mercadológico. Essas pessoas passaram a consumir, inclusive cultura, mas faltou essa conscientização, principalmente essa grande ascensão social, que absorvesse as conquistas culturais. Daí, ela reverberou, mas ficou concentrada em determinadas camadas e não conseguiu ter a abrangência que deveria ter.
OS MOVIMENTOS SOCIAIS
Logo de cara veio o pessoal das culturas populares. Veio o movimento LGBT e se junta. De repente, recebo, no primeiro dia de governo, o MST (Movimento dos Sem-Terra). Recebo 20 sem-terra, todos se sentam na sala do Gil, todos violeiros, e ele pega o violão e ficamos duas horas. O Gil doa uma terra sua na Bahia para o MST. São coisas emblemáticas. O Ministério cresce, se alarga. Chefiei missões em toda a América Latina. Fui presidente da Funarte, criei essa relação de interação entre as culturas tradicionais e o movimento cultural, as artes.
ROBERTO ALVIM
Eu não conheço o Roberto Alvim, conheço o trabalho dele, é um artista que tem um trabalho de qualidade. Ele não foi marginalizado porque aderiu ao Bolsonaro. A Regina (Duarte) assumiu posições de apoio ao Bolsonaro, mas não vi ameaças. O Roberto entrou em um processo contradição. Mas quando pensa em 1964, você vai falar que Tonia Carreiro e Paulo Autran eram comunistas? Nós éramos comunistas, mas estávamos de braços dados nas manifestações, porque defendíamos a liberdade de expressão. Ninguém está tolhendo a liberdade do Roberto Alvim. O Ministério da Cultura foi simplesmente hostilizado desde o governo Temer, que tentou duas vezes acabar com ele, como o Collor. Acho que o Roberto Alvim não pode falar que está sendo vítima de um complô.
EXTERMÍNIO CULTURAL
Existe uma política de extermínio cultural, de fazer com que a cultura perca seu papel de agente transformador, sendo que há um desmonte sistemático de todas as conquistas dos últimos anos, e não só as do nosso governo. A maior tragédia que a gente vê agora é com as culturas indígenas. O que está havendo com o meio ambiente e as culturas indígenas, há uma questão cultural, de sobrevivência. As mortes no campo, as tragédias nas terras indígenas, são tão graves quanto nas comunidades periféricas. São ações de extermínio cultural, de dizimar toda a diferença, porque as mortes são no sentido de um preconceito.
A CULTURA COMO RESISTÊNCIA
Não conseguimos fazer com que tenha a abrangência que ocorreu no período de 1964. Antes era muito rápido para conseguir formar uma unanimidade. Hoje há muitas posições divergentes, por conta da questão da informação. A cultura continua tendo esse papel. Quando você vê a produção cultural, há uma produção inquietante. O cinema havia sido exterminado depois do fim da Embrafilme. O Lula fez um trabalho para que as estatais tivessem um comprometimento cultural e participaram de grandes projetos culturais. Para destruir é muito rápido. Isso é chocante para mim, porque trabalhamos o tempo inteiro no fortalecimento de uma institucionalização do projeto cultural brasileiro. Fizemos quatro grandes conferências nacionais, onde foi criado o Sistema Nacional de Cultura, e o fomento passa a ser uma questão fundamental. Todo um processo de um SUS da cultura, tudo isso está sendo desmontado. Não quero que fique no mimimi. Institucionalmente, o governo está muito frágil. Mas ao mesmo tempo ostensivamente agressivo do ponto de vista do desmonte desses valores construídos e pregando, com palavras de ordem, que vão contra conquistas nacionais e internacionais de direitos humanos, que coincidem com manifestações de outros países, como Polônia, Hungria, e é a própria essência do governo Trump. Esses movimentos liberais são uma contraposição a todas as conquistas históricas e uma reação às mudanças.
O FUTURO DA CULTURA
Eu não sou pessimista, estou com 80 anos. Isso é luta, é conscientização, é processo, que devemos construir. A educação foi para as ruas. A cultura já começou a ir para as ruas, mas concordo que tem que avançar. Por enquanto, está nos palcos, mas já temos manifestações. Essa luta do fomento, por exemplo, a cultura foi para as ruas e foi legal. Acho que a cultura tem de assumir essa liderança, e tem de estar com a classe trabalhadora. Precisamos olhar para trás e aprender um pouquinho. Os estudantes foram fundamentais (na resistência à ditadura civil-militar). E temos os movimentos do campo, como o MST que é revolucionário, e o MTST. Falta juntar tudo isso. Acho que os elementos estão aí. A cultura é o elemento aglutinador desse processo.
LULA LIVRE
No dia do prêmio (da APCA), não pude deixar de falar ‘Lula Livre’. Falei dos meus filhos, que estão, de certa maneira, continuando meu trabalho. Falei da Cacilda (Becker), como um elemento aglutinador, que assumiu uma liderança de classe, de consciência, que deu a ela essa imantação, ela sobreviveu como mito, no sentido de libertária, e falei de outro homem que foi meu grande inspirador e hoje está privado de sua liberdade, e falei Lula Livre. Aí eu vi um grande jornal que não citou meu nome, nem o prêmio de minha produção. Tenho 63 anos de carreira, na 5ª temporada (de Visitando Sr. Green), e estou indo representar o Brasil num dos mais importantes festivais de teatro, todo o esforço para relançar a peça no Renaissance e não encontrei um espaço na mídia. A grande mídia simplesmente ignorou.