Por um lado, Jorge Mautner, 78, é brasileiro por acaso: chegou aqui na barriga da mãe, onde nasceu um mês depois da chegada de seus pais ao país, fugindo do holocausto. Por outro lado, tornou-se um dos mais brasileiros compositores, no conteúdo de suas letras e no que tange à musicalidade, que desde sempre incorporou elementos do candomblé.
Sua obra sempre esteve impregnada de forte carga política. Sutil, foi menos perseguido – se é que se pode mensurar – pela ditadura militar que pares de geração como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, entre outros. Atualmente Mautner resiste a uma segunda ditadura, em que arte e pensamento estão sob constante ataque.
Refletindo o momento conturbado por que passa o Brasil, ele abandona as sutilezas para escancarar o enfrentamento já desde o título de seu novo álbum: “Não há abismo em que o Brasil caiba” [Deck, 2019], título pescado do filósofo português Agostinho da Silva, que viveu no Brasil durante o regime salazarista.
Jorge Mautner (voz, violão e violino) se faz acompanhar pela Banda Tono, que assina a produção do disco: Ana Cláudia Lomelino (voz), Bem Gil (guitarra, tres cubano, sintetizador, flauta, violão), Bruno Di Lullo (contrabaixo, violão, vocal) e Rafael Rocha (percussão, percussão eletrônica, bateria, vocal).
Dispensável dizer tratar-se de banda de jovens: acercar-se deles reforça a jovialidade de Mautner, cujo pensamento é contestatório por natureza. Além do acompanhamento, Mautner divide a autoria de algumas faixas com a rapaziada: a letra de Segredo (Mautner/ Bem Gil/ Bruno Di Lullo/ Domenico Lancellotti) chega a citar o grupo.
O disco mantém acesa uma característica da obra de Mautner, impregnada de referências filosóficas e literárias, outros campos de atuação do compositor. Aqui e ali aparecem o Fausto de Goethe e a Bíblia, nos versos falados de Ruth Rainha Cigana (Mautner), O diabo (Mautner/ Rafael Rocha) e Yeshua Ben Joseph (Mautner).
Mais conhecido como violinista, Mautner aparece, na embalagem do disco, de calção, sentado numa cama empunhando um violão, instrumento do parceiro de décadas Nelson Jacobina (1953-2012), a quem o disco é dedicado. O artista presta reverências a nomes próximos: a esposa Ruth, na faixa de abertura (Ruth Rainha Cigana) – “somos casados há 50 anos”, diz verso da homenagem –, “Júlia, nossa netinha” (idem) e a filha Amora (homenageada também em Oy Vey, Oy Vey (Mautner/ João Paulo Reyes).
Outra homenageada é uma professora, que dá título a Catulina (Mautner/ Afonso Henriques), em que toca numa chaga brasileira, o analfabetismo, e a cantora Preta Gil, a quem dedica Bloco da Preta Gil (Mautner/ João Paulo Reyes).
“Não há abismo em que o Brasil caiba” é um dos discos mais urgentes da temporada, obra necessária, em que Mautner coloca o dedo em feridas nacionais, sem meias palavras. Em Veneno (Mautner/ Bruno Di Lullo) dialoga com a política tresloucada de Jair Bolsonaro de liberação de novos agrotóxicos. Em Bang bang (Mautner/ Bem Gil/ Bruno Di Lullo) critica a violência e o preconceito racial que marcam, grosso modo, a atuação de polícias e exército: “a bala perdida/ lá do bang bang/ abre uma ferida/ de onde escorre o sangue”, diz a letra, que cita o abolicionista Joaquim Nabuco, “que pregou a necessidade absoluta da segunda abolição da escravidão”.
Obra-prima, Marielle Franco (Mautner) é uma homenagem à vereadora carioca cujo brutal e covarde assassinato ano passado segue crime sem solução. Na letra, elementos que sempre permearam a obra de seu conterrâneo: “Uma força furiosa me impele a gritar/ com os nervos à flor da pele/ é preciso exterminar/ a doença mental, física e assassina/ do racismo, do anti-feminismo/ e do neonazismo”, começa, para arrematar, certeiro: “é preciso arrancar/ da medula dos ossos/ dos nervos até a epiderme da pele/ este medonho cancro/ que matou Anderson Gomes/ e que matou Marielle Franco”.